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Pensamento Veleitário IV – As instituições religiosas

Grande parte das culturas que – na ignorância do funcionamento do cérebro – desenvolveram uma crença na vida eterna, também desenvolveram a crença numa forma de julgamento após a morte.

Isto é fácil de entender à luz da tendência bem humana para o pensamento veleitário – encarando as injustiças do mundo real, e desejando um universo «justo», quem acreditasse na vida eterna teria uma maior propensão para acreditar num julgamento ao qual ninguém poderia escapar.

No entanto, algumas religiões professam crenças a este respeito muito diferentes daquilo que poderia ser justificado pelo pensamento veleitário. O Cristianismo e o Islão são dois bons exemplos: tanto num caso como noutro apenas um grupo relativamente restrito de pessoas será salvo. Esse grupo terá de ter um código de conduta bastante rígido e restrito. O castigo para quem não está à altura é descrito como aterrador e eterno.
As pessoas não tendem a achar desejável que exista um castigo tão severo para quem leva uma vida «normal». Como explicar que as religiões apregoem tais crenças, se o pensamento veleitário deveria aumentar a propensão para as rejeitar?

Imaginemos uma pequena aldeia com cerca de 200 pessoas, com um conhecimento científico-tecnológico de há cerca de dois, três milénios atrás. O Joel, o Abel, e o Patrício vão divulgar aquilo que acreditam ser a verdade.
O Joel alega que não existem deuses nem vida eterna.
O Abel defende que existe um deus chamado Trobelu, que julga os mortos. As pessoas em geral são recompensadas pelo comportamento virtuoso, e castigadas pelo comportamento considerado maligno. Depois gozam a vida eterna. Para uma pessoa que tenha mantido um comportamento social e ético normal, aquilo que ela espera depois de morrer é desejável.
O Patrício prega a existência de FraTul, que julga os mortos. Novamente as pessoas boas são recompensadas, e são castigadas as que apresentarem um comportamento maligno, antes de gozar a vida eterna. Mas aquelas que não pagarem X moedas para que Patrício divulgue a mensagem de FraTul também serão castigadas.

Qual destas crenças se vai divulgar com mais facilidade pela aldeia?
Depende.

Se X for muito alto, o pensamento veleitário vai previligiar significativamente a mensagem de Abel face às mensagens de Patrício e de Joel.
Mas se X for suficiente para sustentar Patrício, mas não for muito alto, as coisas podem não ser assim.. Enquanto Abel e Joel estiverem a trabalhar, Patrício estará a pregar. Mesmo que o pensamento veleitário previligie ligeiramente a mensagem de Abel face à mensagem de Patrício, a pregação muito mais intensa deste último vai encorajar uma muito mais rápida divulgação da sua crença.

As instituições religiosas que tendem a sobreviver e prosperar ao longo dos tempos são aquelas que conseguem estabelecer uma interacção com a sociedade envolvente que tende a maximizar a sua capacidade de sobrevivência e crescimento. Para isto é importante que as crenças difundidas sejam compatíveis com as crenças «naturais» dos indivíduos dessa sociedade, mas também que exista uma forte capacidade de alterar estas últimas.
Tal capacidade não se consegue apenas com a palavra e a pregação, mas também com a violência, a repressão e outros usos do poder político, económico e social.

Como exemplo prático temos o caso da Igreja Católica. Durante a Idade Média, a Igreja Católica era uma instituição muito poderosa na Europa. Com tanta influência nos valores e crenças, a Igreja chegou mesmo a exigir uma percentagem muito elevada dos rendimentos dos crentes católicos (a dízima). Nessa altura, muitos estavam conscientes que, de acordo com a Bíblia, apenas uma minoria dos crentes iria para o céu. A religião tinha um papel central na vida de muita gente, pois muitos acreditavam que, não se sendo obediente à Igreja Católica, o Inferno era certo.

Longe vão esses tempos de miséria cultural, económica, social, científica e intelectual em quase todo o território europeu, em que a Igreja Católica tinha um tão grande e indisputado poder. Com as diferentes conquistas de Liberdade, desde as grandes revoluções americana e francesa até ao nosso 25 de Abril, a Igreja foi perdendo poder. Hoje, não sendo capaz de exercer tanta influência nas crenças das pessoas, muito poucas acreditam em tudo aquilo que a Igreja Católica prega.

Grande parte dos católicos acredita que não existe nenhum mal em discordar do Papa, mesmo em matéria de Doutrina. Grande parte dos católicos acredita que os crentes de outras religiões e até os descrentes podem ser salvos. Grande parte dos católicos acredita que um indivíduo «normal» que não torne a religião uma parte central da sua vida pode ser salvo. Tudo isto contradiz não apenas a palavra da Igreja como o próprio Evangelho: a palavra de Jesus.
Mas, não tendo o poder de outrora, a Igreja Católica já não consegue evitar que as crenças das pessoas voltem a ser influenciadas pelos enviesamentos cognitivos mais simples – como o pensamento veleitário.

Não é fácil que um padre consiga convencer algum crente que, se ele não tornar Cristo parte central da sua vida, se continuar a lembrar-se de Jesus apenas na Páscoa e no Natal e a faltar às eucaristias semanais, então sofrerá eternamente no Inferno. O católico «moderado» dirá que não quer ser «fundamentalista».
Aqui o pensamento veleitário e o efeito de manada jogam contra o padre, mesmo que ele tenha uma fundamentação teológica sólida do seu lado.
É que se fosse para pôr tais enviesamentos cognitivos de lado, optando pela coerência, o crente teria melhor opção do que acreditar na palavra do padre: podia avaliar friamente os indícios que a ciência nos trouxe nos últimos anos, e deixar de acreditar na vida eterna.