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Dia: 23 de Junho, 2006

23 de Junho, 2006 Carlos Esperança

Andam santos pelos cemitérios

A ICAR continua a fúria canonizadora despertada pelo bem-aventurado JP2, um polaco supersticioso de quem o Opus Dei, uns tantos cardeais e o espírito Santo fizeram Papa.

B16, especialista em moral e bons costumes, pós-graduado em relações com Deus, vai canonizar no próximo dia 1 de Julho quatro novos santos.

Desta vez a lotaria da santidade saiu à casa. Os canonizados, todos agentes e promotores de vendas da ICAR, são os seguintes:

Rafael Guizar Valencia (1878-1938), Bispo Mexicano;

Filippo Smaldone (1848-1923), sacerdote e fundador do Instituto das Irmãs Salesianas dos Sagrados Corações;

Rosa Venerini (1656-1728), fundadora da Congregação das Irmãs Mestras Pie Venerini;

Theodore Guerin (1798-1858), fundadora da Congregação das Irmãs da Providência de Santa Maria ad Nemus.

O anúncio, feito hoje, significa que os emolumentos, liquidados pelas igrejas dos países interessados, já entraram na tesouraria do Vaticano.

A Agência Ecclesia é omissa quanto aos milagres obrados pelos taumaturgos, mas a experiência diz-nos que são no ramo da medicina, ignorando-se apenas a especialidade e os miraculados. As provas são, como sempre, arrasadoras e os atestados rubricados por médicos de imaculada honestidade.

A ICAR é recordista de milagres por sepultura e por cadáver. Deus, na sua infinita venalidade, não deixa de atender os pedidos feitos por intercessão de um esqueleto com algumas décadas de terra.

A intermediação milagreira é um negócio florescente do sector terciário (o terço é, a seguir ao óbolo, o instrumento mais estimável para a corrupção divina e com provas dadas).

Apesar da opacidade do Orçamento de Estado e de se desconhecer o IVA aplicado, sabe-se que a rubrica «beatificações e canonizações» passou a ter um peso crescente no erário do Vaticano.

23 de Junho, 2006 Carlos Esperança

Protocolo de Estado e falta de pudor republicano

Pretender integrar o clero na lista de precedências dos titulares dos órgãos de soberania e altos funcionários do Estado é um anacronismo incompatível com um país laico. Afigura-se tão despropositado como colocar nos templos uma cadeira junto ao altar para os representantes do Estado ou das autarquias.

Surpreende que um político experiente como o açoreano Mota Amaral, que não é um demagogo, persista na defesa de uma promiscuidade entre o Estado e a Igreja que tão maus resultados deu no passado e que só pode prejudicar ambas as instituições.

Mas, mais anacrónico, é a peregrina ideia de incluir no protocolo de Estado o Sr. Duarte Pio, um descendente do ramo miguelista da família de Bragança, a menos que se pretenda desprestigiar o regime democrático e transformar o País numa República de ananases, já que as bananas são características da outra Região Autónoma.

O pudor republicano é incompatível com os delírios místicos de um deputado ou com o pendor monárquico de quem sabe que a monarquia constitucional portuguesa se extinguiu com a morte de D. Manuel II.

Que o CDS dê particular destaque «quer às Forças Armadas, quer às instituições religiosas – com realce para a Igreja Católica», é uma atitude que se compreende num partido que foi expulso do Partido Popular Europeu, por ser demasiado conservador e anti-europeu. No fundo é um partido de duvidoso ideário republicano e de hesitantes sentimentos democráticos.

23 de Junho, 2006 Palmira Silva

Histórias do Paleolítico

Várias perspectivas das duas conchas encontradas em Skhul. A linha desenhada para comparação tem 1 cm.

A descoberta de objectos pré-históricos cuja morfologia indica terem sido alvo de acção humana deliberada (por vezes difíceis de distinguir de objectos naturais) levanta algumas questões aos arqueólogos sobre o fim destes objectos, nomeadamente se a sua função última tinha cariz prático ou simbólico.

Os arqueólogos e (antropólogos) identificam arfefactos simbólicos com uma competência cognitiva que normalmente é assumida como tendo aparecido relativamente tarde na evolução humana, mais concretamente tem sido considerado que a cultura humana moderna, capaz de interpretar a realidade simbolicamente e incorporar e transmitir esse simbolismo no seu comportamento, surgiu há cerca de 40 000 anos quando os homens anatomicamente modernos chegaram à Europa.

Nas últimas décadas uma série de descobertas tem indicado que esta capacidade cognitiva evoluiu com o próprio homem quiçá tendo estado presente no Neanderthal e nas populações Sapiens mais antigas. As sociedades simbólicas interpretam detalhes do mundo natural, incluindo o corpo humano, ou seja, procuram características do mundo que os rodeia em que baseiam todo um sistema de sinais- e por extensão um sistema de crenças – que transmitem às gerações subsquentes.

Isto é, as sociedades que criam uma «história acumulada», as «sociedades quentes» de Claude Lévi-Strauss – que se opõem às «sociedades frias» que vivem num eterno presente – podem ser anteriores ao que muitos acreditam. Até hoje tão anteriores como 75 000 anos como a descoberta de conchas Nassarius kraussianus perfuradas na caverna de Blombos na África do Sul indica.

No número de hoje da Science figura o artigo «Middle Paleolithic Shell Beads in Israel and Algeria» (artigo completo reservado a assinantes) que sugere a existência de culturas simbólicas há pelo menos 100 000 anos.

De facto, o artigo descreve descobertas arqueológicas em Skhul, Israel, e Oued Djebbana, Argélia, proeminentes entre elas mais conchas Nassarius perfuradas, análogas às encontradas em Blombos. A datação dos artefactos encontrados em Skhul indica que as duas conchas aí encontradas têm mais de 100 000 anos e que as de Oued Djebbana podem ter 90 000 anos.

«O nosso artigo suporta o cenário que humanos modernos em África desenvolveram comportamentos que são considerados modernos muito cedo, de forma que estas pessoas são não apenas biologicamente modernas mas igualmente modernas cultural e cognitivamente, pelo menos num certo grau» afirmou à World of Science um dos cientistas responsáveis pelo trabalho, Francesco d’Errico do Centre Nationale de la Recherche Scientifique, CNRS, em Talence, França.

Porque, como afirma por sua vez Marian Vanhaeren, a outra cientista responsável, também do CNRS «Comportamento mediado simbolicamente é um dos indicadores da modernidade incontestados e aceites universalmente. Uma característica chave de todos os símbolos é que o seu significado é atribuído por convenções arbitrárias socialmente construídas que permitem o armazenamento e transmissão de conhecimento».

Convenções arbitrárias e socialmente construídas como são as religiões, que quasi podem ser encaradas como sub-culturas «frias» na medida em que não foram penetradas pela «história acumulada» da Humanidade e persistem num simbolismo anacrónico e num sistema de crenças completamente dissociado do conhecimento actual. Nomeadamente nas religiões do livro a crença no «pecado original», com a concumitante concepção do ser humano como naturalmente perverso, a explicação para a existência do Mal, é um disparate «frio» que continuarei a analisar durante o fim de semana em conjunto com as contradições debitadas pelo Vaticano em relação à evolução.

23 de Junho, 2006 fburnay

A fé pessoal

Uma das críticas que faço à fé é a capacidade que tem de pôr as pessoas a acreditar em coisas sem que tenham para isso qualquer tipo de justificação. Não acho plausível acreditar em algo sem que me seja mostrado que de facto faz sentido fazê-lo. É por isso que não acredito na existência do éter. Pegando na existência dos deuses como hipótese (mesmo que isso não seja, a meu ver, tão válido como propor a existência do éter enquanto explicação natural do mundo) rapidamente se chega à conclusão de que não vale a pena acreditar neles. Epistemologicamente, não há razões para acreditar na existência do éter. Isso rapidamente nos leva a uma forma de agnosticismo – não há provas empíricas da existência do éter e não é um conceito relevante para explicar o Universo, como tal, sou levado a concluir que a existência ou não existência do éter é irrelevante. A partir daqui, acreditar na existência do éter é uma prática insubstanciada.

Se eu quiser continuar a acreditar que o éter existe, posso fazê-lo. Por capricho, por teimosia, por fé – seja por que razão for, estou no meu direito de o fazer. No entanto, tenho de concordar em que não posso esperar que os outros também acreditem. Sou só eu que acredito, pelas minhas razões pessoais.

O mesmo raciocínio aplicado às divindades chega a uma conclusão semelhante. Se bem que o conceito de deus é, em si, uma recusa explícita de uma explicação científica ou racional para qualquer tipo de fenómeno (é por isso que sou ateu) e, neste sentido, claramente diferente do conceito de éter, eu poderia não obstante continuar a acreditar num determinado deus, se quisesse. Isso seria, obviamente, uma prática individual. Acho que ninguém, racionalmente, tem razões senão para ser ateu. No entanto é justamente o Individualismo que resgata a possibilidade da fé, ainda que seja, a meu ver, uma prática extremamente perniciosa. Consegui provar a alguns crentes, julgo, que apesar de concordar com o facto de as provas (num contexto de testemunho enquanto vivência e não de provas empíricas) que me apresentam para a sua fé ter um imenso valor para eles, esses testemunhos são intransmissíveis.

Pessoalmente, não posso conversar de forma igual com pessoas diferentes. Que posso eu dizer a uma pessoa que acredita piamente nos milagres de Fátima senão que é a minha opinião de que se trata de um disparate acreditar em semelhante coisa? A uma pessoa que, seja por que razões, leva à letra os textos que considera sagrados não posso dizer-lhe mais de que não faz sentido levar à letra esses textos. Posso mostrar que este milagre é falso ou que esta profecia não se revelou, ponto a ponto, num exercício que, muito provavelmente, não vai mudar a opinião do meu interlocutor. No entanto, não penso que seja infrutífero fazê-lo – muitos crentes recusam-se, simplesmente, a acreditar que o mundo tem 5000 anos ou que o Sol rodou três vezes mas só na Cova da Iria. E não acreditam não por razões de fé – mas porque é implausível. É difícil acreditar nessas coisas e não no sentido em que é difícil para um católico acreditar na divindade de Maomé. É difícil porque a nossa razão e a nossa inteligência nos dizem – não faz sentido. Esta é a beleza da coisa.

Porque, vendo bem as coisas, as pessoas acreditam todas elas em algo diferente, ainda que se baseiem num substrato comum. Porque os líderes das religiões conhecem mais do que o comum fiel os textos sagrados. Terão, então, os fiéis as mesmas razões para acreditar que os seus sacerdotes?

Curiosamente – e este é o meu ponto – sempre que se ataca a fé nos pequenos “milagres” do dia-a-dia, nas benzeduras, nos exorcismos, quem sai em defesa do crente comum não é o crente comum. São crentes, sim, mas mais educados nas questões da fé. Pessoas com formação, inteligentes, com catequeses mais aprofundadas e menos literais. Porquê? Essas pessoas, mais que outras, deveriam perceber o porquê dessas críticas. Esses crentes têm uma noção muito mais refinada dos melindres da sua religião – não representam, de todo, o bruto dos crentes. E no entanto, continuam muitas delas (com raras e admiráveis excepções) a defender crenças medievais e os anacronismos mais repelentes. A distorcer a História na tentativa de ocultar manifestações de vivências pré-modernas para preservar dogmas. A deturpar conceitos como o de laicidade, liberdade, ciência, ateísmo, para salvaguardar o que de mais primitivo há na religião. E não as pessoas com catequeses mais provincianas mas sim as pessoas mais alfabetizadas. Os crentes que, fazendo uso da sua liberdade de pensamento e da sua individualidade procuram testemunhos que acreditam enriquecer a sua fé e a sua humanidade não percebem que defendem noutras alturas dogmas completamente contrários a essa expressão de individualismo? Como é isso ainda possível no século XXI?

Na minha opinião, isso apenas é possível graças a memes que foram transmitidos de forma diferente – no fundo, lavagens cerebrais mais eficientes. Isso talvez explique porque são, afinal de contas, os crentes comuns que abandonam a fé mais facilmente que os outros.

Quanto mais conhecemos mais contraditório se torna permanecer na fé. É este o medo que as religiões têm da Ciência e do livre-pensamento. Só uma educação fortemente orientada na religião e uma dependência memética extremamente enraizada impedem que uma pessoa com acesso a educação concilie a fé profunda com o mínimo bom senso.

23 de Junho, 2006 jvasco

30 minutos de radio

30 minutos de radio é tudo quanto Julia Sweeney precisa para explicar como deixou de ser crente. Para quem está à vontade com o inglês, aconselho vivamente: o texto é delicioso.