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Dia: 1 de Março, 2006

1 de Março, 2006 Ricardo Alves

«Juntos contra o novo totalitarismo»

Um grupo de escritores e intelectuais em que se incluem, entre outros, Salman Rushdie, Ayaan Hirsi Ali, Taslima Nasreen, Ibn Warraq, Caroline Fourest e Bernard-Henri Lévy, publicou ontem um Manifesto intitulado «Juntos contra o novo totalitarismo». Nele, os autores afirmam que o mundo se encontra «face a uma nova ameaça totalitária global: o islamismo», e que a resposta passa pela «promoção, para todos, da liberdade, da igualdade de oportunidades e dos valores laicos», valores esses que consideram universais.

O Manifesto foi publicado no jornal dinamarquês Jyllands-Posten e no jornal satírico francês Charlie-Hebdo e faz referência à crise desencadeada pela publicação das caricaturas de Maomé. Distancia-se das análises que insistem no «choque de civilizações» ou no antagonismo entre «Ocidente» e «Oriente», respondendo-lhes que assistimos, isso sim, a uma «luta global que confronta democratas e teocratas». Dado que ainda recentemente insisti que a clivagem é entre laicistas e clericais, não posso deixar de concordar. O Manifesto critica também o «relativismo cultural», que define como a aceitação de que «homens e mulheres de cultura muçulmana deveriam ser privados do seu direito à igualdade, à liberdade e aos valores laicos em nome do respeito pelas culturas e tradições». A terminar, os autores expressam o desejo de que «o nosso século seja um século de Iluminismo e não de obscurantismo». É um desejo que, evidentemente, partilho.
1 de Março, 2006 Carlos Esperança

Fátima – o antro do embuste

O documentário aqui anunciado é impressionante. Homens e mulheres, rostos doridos, corpos cansados, peles tisnadas pelo sol, pés inchados e chagados da caminhada, vão a Fátima expiar pecados e em busca de milagres que nunca acontecem.

Um pagador de promessas paga à Virgem o compromisso de um desconhecido. Em casa alguém espera uma graça, o alívio de uma aflição ou a cura de uma moléstia.

Em Fátima as azinheiras estão despidas de virgens, o Sol finge a caminhada diária no sentido inverso à rotação da Terra, sem cambalhotas patéticas nem embustes do clero.

No ar misturam-se os odores dos pés por lavar, da cera que arde e do incenso exigido pela liturgia. Na pira ex-votos ardem em devoção pirómana. No chão esfolam-se joelhos e arrastam-se infelizes em busca de refrigério.

A farsa é alimentada pelos padres e padecida pelos penitentes. O terceiro mundo está ali recriado pela ignorância, ampliado pela angústia, mantido pelo sofrimento.

Que raio de Deus que se rebola de gozo com a humilhação dos homens.

A quem se baixa mingua a estatura; a quem se ajoelha falta amor-próprio e a quem se prostra foge-lhe a dignidade.

Tenho pena dos desgraçados que dão o que não podem, sofrem o que não devem e acreditam no que não há, com a cupidez do clero, a cumplicidade do Vaticano e o desinteresse das associações de consumidores.

1 de Março, 2006 lrodrigues

Ave Maria, cheia de graça

Tom Monaghan ficou mundialmente conhecido quando decidiu vender a cadeia de restaurantes de que era proprietário nos Estados Unidos, a célebre «Domino’s Pizza», pela bonita e simpática soma de mil milhões de dólares.
Aparentemente Tom Monaghan quis passar a ser o paradigma e o exemplo vivo do multimilionário que não sabe o que fazer ao dinheiro.

Mas como é um fervoroso e devoto católico, o bom do Tom Monaghan lá arranjou maneira de gastar uma boa parte da sua fortuna a investir no seu lugar no Céu, não vá o Diabo tecê-las quando chegar a altura de entregar a alma ao seu (dele) criador.

Segundo a «Newsweek», Tom Monaghan decidiu fundar uma cidade inteiramente nova que será localizada a sudoeste do estado americano da Florida.

O nome da cidade está já decidido e não podia ser mais apropriado aos objectivos que o beato milionário pretende atingir.
E já tem um site promocional na Internet e tudo!

A nova cidade terá o bonito e apropriado nome de… Ave Maria.

Será construída uma enorme catedral com mais de 30 metros de altura, e um crucifixo de 20 metros servirá de guia às 11.000 habitações cuja construção está projectada, e que só serão arrendadas ou vendidas a quem provar ser um bom católico.
Mas não é só a construção civil que já está planeada.
Também a peculiar forma como Tom Monaghan interpreta e difunde o catolicismo e os respectivos valores ultra-conservadores terá reflexo no modo de vida dos habitantes da futura cidade.
Aliás o pio milionário nunca escondeu que pretende investir o seu dinheiro “no mesmo sítio onde está a sua fé” e sempre disse:
«Acredito que toda a História não é mais do que uma gigantesca batalha entre o bem e o mal. E eu não quero ficar à margem».

Provavelmente por isso fez uma doação de muitos milhões de dólares à Igreja Católica da Nicarágua para a reconstrução da catedral de Manágua que tinha sido destruída por um terramoto, embora não tenha dado um cêntimo sequer para a reconstrução das casas de centenas de milhar de pessoas que viviam miseravelmente e que tinham ficado sem abrigo.

Decerto atormentado e, sem sombra de dúvida, psicologicamente traumatizado pelo seu passado, já que foi educado em orfanatos por freiras católicas, coitado, Tom Monaghan, agora com 68 anos de idade, há muito que pretende vender o seu fanatismo religioso.
Fundou estações de rádio, escolas, uma pequena universidade e até uma faculdade de direito católica de onde estão neste momento a sair os primeiros advogados, cuja devota formação inegavelmente promete vir a dar que falar.

A nova cidade será, assim, um exemplo de virtudes católicas.
Para já, as farmácias da cidade serão impedidas de vender preservativos ou quaisquer contraceptivos, e será completamente proibida qualquer forma de planeamento familiar.
O aborto estará absolutamente fora de questão, quaisquer que sejam as circunstâncias.
A venda de artigos que possam ser considerados pornográficos ou pecaminosos será proibida.
Os programas que serão difundidos nos canais de televisão por cabo disponíveis na cidade serão cuidadosamente escrutinados.
Serão construídas capelas por toda a cidade em sítios estrategicamente estudados, de forma a que todas as pessoas se possam deslocar facilmente a pé para ir à missa.
Apesar disso, na catedral serão rezadas missas de hora a hora, sete dias por semana.

Numa altura em que nos Estados Unidos os fundamentalistas católicos tudo têm feito para tentarem substituir o estudo da teoria da evolução de Darwin pelo “criacionismo” nas Universidades americanas, também não é difícil de prever que tipo de ensino será ministrado em Ave Maria.
Até porque pelo menos um quarto dos professores serão membros do clero católico, e o ensino terá obrigatoriamente como primeiro objectivo incentivar os jovens a tornarem-se padres ou freiras.
Também não é difícil de prever que livros existirão nas bibliotecas e como será o quotidiano da cidade.

Embora mais triste seja imaginar como serão educadas as suas crianças…

Neste tempo em que tanto se tem falado em fundamentalismo islâmico, é curioso como os fanatismos religiosos, mais burqa menos burqa, mais Ave Maria menos Ave Maria, são, afinal, todos iguais.
E como é irresistível para todas as crenças, sejam elas quais forem, a tentação de procurarem tornar o Estado dependente das religiões.
E como é cega a sua persistência em determinar a vida das outras pessoas de acordo com os seus cânones, professem elas ou não a mesma religião.

Esta cidade será, pois, um gigantesco monumento ao fundamentalismo e ao fanatismo religioso.

O próprio Papa Bento XVI em pessoa tem manifestado interesse por Ave Maria, inteirando-se sempre que pode do avanço da construção da nova cidade.
O que, convenhamos, não é nada de surpreender…

(Publicado simultaneamente no «Random Precision»)