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Serão os filhos propriedade dos pais?

A Nota sobre a Educação da Sexualidade da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), já referida pela Mariana e pelo Carlos, e o parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV), suscitam a questão do papel que os pais e o Estado podem ou devem ter na educação das crianças e adolescentes.

O CNECV, no seu parecer, afirma ser aceitável que um adulto recuse transfusões de sangue, mas rejeita que uma criança o possa recusar, mesmo quando os seus pais assim o queiram. Este órgão consultivo estatal afirma assim o princípio de que o Estado deve proteger os filhos das consequências das convicções religiosas dos pais (no caso, das crenças das Testemunhas de Jeová). Simultaneamente, aproxima-se de aceitar a eutanásia passiva de adultos, o que é, no mínimo, curioso.

A Nota da CEP (o órgão dirigente da ICAR portuguesa) defende «para a família, o direito de cooperar no planeamento da educação da sexualidade na escola (…) incluindo a selecção e a formação dos professores» e que «compete à família decidir as orientações educativas básicas que deseja para os seus filhos». A CEP assume portanto a defesa da interferência dos pais católicos na escola estatal, o que cria um problema: é que se os pais podem, efectivamente, educar os filhos nas convicções religiosas que entenderem, a escola pública tem o dever de instruí-los sobre os factos básicos da sexualidade e sobre os princípios éticos mínimos: respeito por si próprio, pela autonomia do outro e higiene. A CEP defende explicitamente que o Estado deverá ir mais longe: «a educação da sexualidade não se resume a mera informação sobre os mecanismos corporais e reprodutores (…) desta forma, deturpa-se o sentido da sexualidade, isolando-a da dimensão do amor e dos valores, e abre-se caminho (…) à aceitação, por igual, de múltiplas manifestações da sexualidade, desde o auto-erotismo, à homossexualidade e às relações corporais sem dimensão espiritual».

As famílias nunca são laicas, e os pais encontram nas religiões justificações para afirmarem o seu poder sobre os filhos. Os pais católicos desejam que a escola desaconselhe aos filhos comportamentos inofensivos, os Testemunhas de Jeová que os filhos não recebam transfusões de sangue, os pais judeus retalham o prepúcio dos filhos do sexo masculino, os muçulmanos também, e estes últimos, em algumas variantes culturais, velam as filhas ou mutilam-lhes o clítoris. Por tudo isto, os filhos não podem ser tratados como propriedade exclusiva dos pais, e a sua educação escolar deve ser programada e decidida pelo Estado de forma a colmatar as falhas das próprias famílias. É o Estado laico que pode emancipar as crianças da violência, do obscurantismo e dos variados condicionamentos das famílias.

Ouvi uma vez Emídio Guerreiro recordar que, nos seus primeiros anos de escola, os alunos comentavam entre si que a República proibira os castigos corporais nas salas de aula. Ninguém duvida que, nas famílias, a violência física continua. Mas os excessos que as famílias cometem sobre os menores, muitas vezes em nome de convicções religiosas, podem e devem ser limitados pelo Estado. Emídio Guerreiro, que nunca transigiu na luta pela liberdade individual, testemunhava-o.