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A identidade contra a liberdade

Zita Seabra, cabeça de lista do PPD/PSD pelo círculo de Coimbra, protestou quarta-feira o seu «grande respeito pelo papel desempenhado em Portugal pela Igreja Católica», uma afirmação ritual comum em muitos políticos apostados na conquista do favor institucional da dita igreja e da sua (presumível) «orientação de voto». A afirmação, de tão rotineira, não choca, mesmo se um pouco de rigor histórico e de decência exigiriam que quem a faz ressalvasse, subtilmente que fosse, os crimes da inquisição, os pogromes católicos e a colaboração da ICAR com a ditadura fascista. Mas Zita Seabra foi mais longe ainda, e arriscou que «ao não reconhecer essa tradição [a da ICAR], alguns países da Europa – como a França, a Alemanha e a Espanha – correm um sério risco de perda de identidade». Aqui, confesso que a minha irritação explodiu. A palavra «identidade» serve hoje em dia para justificar todas as opressões e formas de controlo dos grupos sobre os indivíduos, e isso vê-se desde a defesa icarística de uma menção às «raízes cristãs» no projecto de Constituição da União Europeia, até à obrigação de raparigas de origem muçulmana usarem o véu islâmico. E quem fala em nome da «tradição» e da «identidade»? Sempre, sempre, o clero. (E o mais extremista, claro…)

Pessoalmente, como ateu que sou, jamais me conseguirei identificar com um Estado português que, como quer a candidata a deputada, seja baseado nos «nossos (…) valores católicos». Eu não faço parte do «nós» que ela conjuga, tenho todo o direito a isso, e passo bem sem as crises de identidade da senhora Zita Seabra. A «identidade cultural» ou é dinâmica ou não é democrática, e se há necessidade de valores comuns, e eu reconheço que pode haver, que sejam os da República e da Democracia, e as leis que democraticamente a comunidade política decida dar a si própria. Dispenso leis e valores «revelados» por uma entidade sobrenatural em que não acredito, e transmitidos por intermediários terrestres de que a História me aconselha a desconfiar. Evidentemente, o direito de se orientar por esses valores (no quadro das leis comuns) é intocável. Simplesmente, a comunidade política e a comunidade eclesial são entidades distintas e devem sê-lo cada vez mais.