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Dia: 23 de Agosto, 2004

23 de Agosto, 2004 Palmira Silva

Da ICAR e da polis, IV: laicidade

O século XIX foi um século marcante para a laicidade. Com grande luta dos sucessivos papas. No início do século XIX surge em Itália o Risorgimento, isto é, o processo que conduziu à reunificação da Itália e que culminou com a perda dos estados papais, apesar de todos os esforços envidados por Pio IX na manutenção dos territórios pontifícios sob autoridade papal.

Pio IX fugiu de Roma para Nápoles levando como conselheiro político Marcantonio Pacelli, avô do Pio XII de má memória. De Nápoles invectivou a «ultrajante traição da democracia» ameaçando de excomunhão todos os italianos que se atrevessem a votar.

O Santo Pio publicou a encíclica Quanta Cura afirmando que os princípios de filosofia, ciência moral e as leis civis podem e devem ser feitos para se curvarem às autoridades divinas e eclesiásticas, seguida pouco depois do Syllabus errorum, no qual condenou os erros do modernismo, mais concretamente 80 erros monstruosos das «ideias modernas», condenando a democracia como um «princípio absurdo», a liberdade de opinião como «loucura e erro» e condenando especialmente o laicismo, terminando com o último erro atroz a que se arrogavam os laicistas: de que «o sumo pontífice podia e devia reconciliar-se com o progresso, o liberalismo e a civilização moderna».

O acesso de Leão XIII ao papado em 1878 moderou um pouco o tom da guerra aberta entre o Vaticano e as democracias emergentes mas este também descreveu qualquer noção de separação de Igreja-Estado como erro fatal. No contexto italiano, era especialmente condenatório dos Maçãos e das ideias liberais destes. Descreveu-os como parte do reinado do Mafarrico, em luta contra a Igreja e a Cristandade. Uma conspiração em andamento que perigava a própria fábrica da civilização cristã. Expresso na encíclica Immortale Dei de 1885.

As primeiras décadas do século XX foram um tempo de grande ansiedade entre os líderes católicos na Alemanha, França, Polónia, especialmente apreensivos de que o modelo liberal da República de Weimar, associado com judeus e hereges ateus, iria causar o colapso total da noção cristã da ordem social e política. Apreensão essa partilhada por muitos líderes protestantes. O Papa Pio XI expressou a esperança de que o colapso do mercado e a experiência da brutalidade da Revolução Russa afastassem as pessoas na Europa dos laicos liberalismo, democracia e socialismo na direcção da visão tomista dos regimes «bons».

Os dois papas da era do Holocausto, Pio XI e Pio XII, actuaram no âmbito de uma cruzada contra o laicismo. Não eram exactamente grande fãs do nazismo (especialmente Pio XI) mas… quer o fascismo quer o nazismo eram opções de longe preferidas para proteger os interesses institucionais católicos. Com os quais colaboraram entusiasticamente.

23 de Agosto, 2004 Carlos Esperança

Carta aberta aos créus

Alguns créus acusam o Diário de uns Ateus de intolerância. Se chamam intolerância ao combate à hipocrisia, à defesa dos direitos humanos, ao ataque ao pensamento único, à defesa da liberdade, têm razão.

Se, pelo contrário, acham que somos capazes de defender o racismo, a xenofobia, o fascismo, uma qualquer ditadura ou restrições ao direito de associação, onde cabem as religiões, não nos conhecem.

Se um regime despótico privar os crentes de qualquer religião do acesso aos templos, da manifestação dos seus cultos, do direito de reunião e da livre expressão escrita e oral, contará com a oposição determinada e a luta sem tréguas dos ateus.

A ICAR combate o que julga serem os nossos erros, nós combatemos o que pensamos serem as suas mentiras. Onde está, da nossa parte, a intolerância? Porventura propomos a punição de quem vive da exploração da fé? Queremos queimar os quatro evangelhos que Constantino coligiu dos oitenta que foram considerados para o Novo Testamento? Alvitramos coimas para quem se empanturra de hóstias, faz jejuns, reza novenas ou se péla por uma procissão?

Podemos considerar burla o negócio dos milagres, a venda por atacado de indulgências, a purificação obtida com borrifos do hissope e condenar a atmosfera terrorista que as Igrejas criam com o temor do Inferno. Desmascaramos os negócios que fazem com os transportes do Purgatório, com veículos movidos a missas e oferendas, ou com os óbolos que fazem esportular aos crentes para comprar um espaço no Paraíso. Mas não aceitamos a mais leve perseguição, nem pedimos que nos deixem fazer homilias ateias nos seus locais de culto.

O cristianismo plagiou crenças antigas. Cristo não foi o primeiro a nascer de uma virgem, a ressuscitar ao terceiro dia ou a dedicar-se ao lucrativo ramo dos milagres. Não vem mal ao mundo que haja quem acredite no poder dos santos, nos dons do Espírito Santo ou na omnipotência divina. O perigo reside nas perseguições a quem desmascare a tramóia, duvide que o corpo e o sangue do JC se encontrem na rodela de pão ázimo depois de consagrada, negue a eficácia terapêutica da água benta ou a eficácia da oração no aumento da pluviosidade.

Não somos nós, ateus, que somos intolerantes. Somos solidários com os direitos dos crentes, mas não nos peçam que renunciemos a desmascarar quem os engana, explora e fanatiza.

23 de Agosto, 2004 Palmira Silva

Da ICAR e da polis, III: Renascença

Um dos grandes teólogos do catolicismo, o inescapável Tomás de Aquino, explica na Política que os governos de um só, de alguns e de muitos podem ser bons ou maus, legítimos ou ilegítimos. Nos bons, o primeiro chama-se monarquia ou reino, o segundo, aristocracia, e o último politia (república). Os maus regimes designam-se por tirania, oligarquia e democracia, respectivamente. A cristianização deste conceito aristotélico dá-se apenas em que na política tomista os bons e maus regimes distinguiam-se tão só pela religião dos seus governantes. Se fossem católicos e impusessem o catolicismo aos governados os governos eram bons; caso contrário seriam maus.

Durante a Idade Média o direito divino não foi contestado até porque a população não tinha acesso a educação e era mantida num estado santo de ignorância e obscurantismo. Não obstante, mesmo durante a imersão da Europa na estagnação intelectual e sedimentação do poder feudal na Idade Média, e apesar dos rígidos padrões de controle do pensamento pela estrutura eclesiástica, surgiram vozes dispersas que se insurgiam contra o abuso e a arrogância do poder de Igreja de Roma.

Mas a peste negra que dizimou milhões de europeus alterou radicalmente a estrutura sócio económica europeia. Havia poucos trabalhadores, sem preparação para as muitas tarefas que necessitavam ser feitas pelo que relutantemente foi permitido o acesso à educação. E o nível de vida dos então poucos trabalhadores melhorou substancialmente. O que propiciou a Renascença em que se redescobriram as diversas escolas filosóficas greco-romanas (nomeadamente as proscritas como o epicurismo/atomismo) e se assistiu a um privilegiar da educação.

Ironicamente a própria ICAR pode ter dado uma ajuda para criar as condições socio-económicas que propiciaram a Renascença. Numa fúria persecutória para erradicar especialmente o culto pagão da deusa Freia (ou Frigga) associada aos gatos estes foram chacinados aos milhões (os gatos sempre estiveram associados a deusas da fertilidade como Bastet no Egipto, Afrodite na Grécia, Vénus no panteão romano e Cerridwen no culto celta). Os gatos foram completamente exterminados em cidades como Veneza. A sua morte foi incorporada numa série de rituais católicos, simbolizando o Demo sob o controle da Igreja. Por isso quando a pulga Xenopsylla cheopis com a variante patogénica do bacilo Pasturella pestis, que se crê estar na origem do flagelo, atravessou com os ratos dois continentes, vinda das estepes asiáticas, as epidemias de peste negra assumiram proporções catastróficas apenas nos países católicos.

Na Renascença o governo por direito divino foi contestado por Machiavelli (final século XV princípio século XVI), que introduziu uma nova concepção de Política, separando o pensamento racional político da religião e da moral religiosa. Ainda hoje, maquiavélico é conotado como algo negativo porque Machiavelli no seu Príncipe (inspirado em César Bórgia, filho do papa Alexandre VIII) foi o pioneiro a contestar o direito divino e propôr a separação igreja-estado.

Conceito retomado no século seguinte por Mandeville, Voltaire, John Locke, Thomas Hobbes, Montesquieu, et al., que culminou no iluminismo e na Revolução Francesa com os seus conceitos de Liberdade, Igualdade e Fraternidade e começaram a fazer perigar no mundo ocidental a hegemonia da Igreja Católica na esfera política. Contra o que ela lutou de unhas e dentes. Por exemplo Clemente XII, em 1738, 32 anos depois da Independência dos Estados Unidos, debitou a Bula In Eminente em que institui a excomunhão para quem integrasse grupos que promoviam o que considerava serem ideais incriminatórios e contra os princípios da Igreja, nomeadamente: a pretensão de legislação sem os auspícios da ICAR; a separação entre Estado e Igreja e a existência de educação laica.