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Da ICAR e da polis, III: Renascença

Um dos grandes teólogos do catolicismo, o inescapável Tomás de Aquino, explica na Política que os governos de um só, de alguns e de muitos podem ser bons ou maus, legítimos ou ilegítimos. Nos bons, o primeiro chama-se monarquia ou reino, o segundo, aristocracia, e o último politia (república). Os maus regimes designam-se por tirania, oligarquia e democracia, respectivamente. A cristianização deste conceito aristotélico dá-se apenas em que na política tomista os bons e maus regimes distinguiam-se tão só pela religião dos seus governantes. Se fossem católicos e impusessem o catolicismo aos governados os governos eram bons; caso contrário seriam maus.

Durante a Idade Média o direito divino não foi contestado até porque a população não tinha acesso a educação e era mantida num estado santo de ignorância e obscurantismo. Não obstante, mesmo durante a imersão da Europa na estagnação intelectual e sedimentação do poder feudal na Idade Média, e apesar dos rígidos padrões de controle do pensamento pela estrutura eclesiástica, surgiram vozes dispersas que se insurgiam contra o abuso e a arrogância do poder de Igreja de Roma.

Mas a peste negra que dizimou milhões de europeus alterou radicalmente a estrutura sócio económica europeia. Havia poucos trabalhadores, sem preparação para as muitas tarefas que necessitavam ser feitas pelo que relutantemente foi permitido o acesso à educação. E o nível de vida dos então poucos trabalhadores melhorou substancialmente. O que propiciou a Renascença em que se redescobriram as diversas escolas filosóficas greco-romanas (nomeadamente as proscritas como o epicurismo/atomismo) e se assistiu a um privilegiar da educação.

Ironicamente a própria ICAR pode ter dado uma ajuda para criar as condições socio-económicas que propiciaram a Renascença. Numa fúria persecutória para erradicar especialmente o culto pagão da deusa Freia (ou Frigga) associada aos gatos estes foram chacinados aos milhões (os gatos sempre estiveram associados a deusas da fertilidade como Bastet no Egipto, Afrodite na Grécia, Vénus no panteão romano e Cerridwen no culto celta). Os gatos foram completamente exterminados em cidades como Veneza. A sua morte foi incorporada numa série de rituais católicos, simbolizando o Demo sob o controle da Igreja. Por isso quando a pulga Xenopsylla cheopis com a variante patogénica do bacilo Pasturella pestis, que se crê estar na origem do flagelo, atravessou com os ratos dois continentes, vinda das estepes asiáticas, as epidemias de peste negra assumiram proporções catastróficas apenas nos países católicos.

Na Renascença o governo por direito divino foi contestado por Machiavelli (final século XV princípio século XVI), que introduziu uma nova concepção de Política, separando o pensamento racional político da religião e da moral religiosa. Ainda hoje, maquiavélico é conotado como algo negativo porque Machiavelli no seu Príncipe (inspirado em César Bórgia, filho do papa Alexandre VIII) foi o pioneiro a contestar o direito divino e propôr a separação igreja-estado.

Conceito retomado no século seguinte por Mandeville, Voltaire, John Locke, Thomas Hobbes, Montesquieu, et al., que culminou no iluminismo e na Revolução Francesa com os seus conceitos de Liberdade, Igualdade e Fraternidade e começaram a fazer perigar no mundo ocidental a hegemonia da Igreja Católica na esfera política. Contra o que ela lutou de unhas e dentes. Por exemplo Clemente XII, em 1738, 32 anos depois da Independência dos Estados Unidos, debitou a Bula In Eminente em que institui a excomunhão para quem integrasse grupos que promoviam o que considerava serem ideais incriminatórios e contra os princípios da Igreja, nomeadamente: a pretensão de legislação sem os auspícios da ICAR; a separação entre Estado e Igreja e a existência de educação laica.