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Dia: 16 de Agosto, 2004

16 de Agosto, 2004 Palmira Silva

Da sexualidade e da ICAR, II: Contra Natura

O pessimismo sexual de Agostinho, intensificado pelo Responsum do Papa que inventou os sete pecados mortais, Gregório Magno (590-604), «O prazer sexual nunca ocorre sem pecado», dominou a época da escolástica, «a idade áurea da teologia», como é chamada. O expoente máximo dos escolásticos, Tomás de Aquino, a autoridade católica em questões sexuais depois do inenarrável Agostinho, criou todo o contexto para a demonização do sexo e ainda cunhou a expressão contra natura para se referir à homossexualidade.

Tomás de Aquino incorpora o empirismo aristotélico ao idealismo platónico agostiniano. A citação tomista «A geração de uma mulher resulta de defeitos no princípio activo» é inspirada na prosa de Aristóteles, que afirmava, a comprovar a sua inferioridade, terem as mulheres menos dentes que os homens (História dos Animais, livro 2, parte 3). E representa a convicção de Aquino de que a mulher é imperfeita, inferior ao homem física, moral e psicologicamente.

A responsabilidade do Malleus Maleficarum, o Martelo das Bruxas, (1484) do Papa Inocêncio VIII, 200 anos depois da morte de Tomás, não pode ser atribuída a este outro ilustre santo, mas sem a crendice supersticiosa de Aquino na relação sexual com o demónio e a sua exortação à destruição dos hereges, aquele documento, responsável pela morte na fogueira de incontáveis «bruxas», não seria concebível.

Outro eclesiástico que difundiu a tendência feminina para copular com o demo foi o franciscano galego Álvaro Pelayo ou Pais, que enquanto bispo de Silves teve graves discórdias com Afonso IV de Portugal em relação aos impostos cobrados sobre os bens eclesiásticos (para sustentar a guerra do monarca contra Castela). Este redigiu por volta de 1330, a pedido de João XXII de quem foi confessor, o «De Statu et Planctu Ecclesiae» (Do Estado e Pranto da Igreja) dirigido ao mundo dos «clérigos encarregados de dirigir as consciências». Esse primor de misoginia e retrato dos vícios que assolavam a ICAR da época traz um catálogo de 102 «vícios e más acções» da mulher. Um destes era a cohabitação com demónios. Testemunhado in vivo num convento de freiras pelo próprio frei, que foi incapaz de pôr cobro à tal repugnante prática.

No entanto, toda esta regulamentação do sexo, que incluia considerar como pecado qualquer desvio à posição «normal» dita de missionário no léxico corrente (excepto nos casos regulamentados como, p.e., obesidade comprovadamente renitente) destinava-se exclusivamente aos créus seculares, já que escândalos sexuais como os recentes são recorrentes na História da Igreja.

Com um nadir no conturbado período conhecido pelos historiadores como pornocracia entre o final do século IX e o início do século XI, período em que um terço dos muitos papas que o agraciaram morreu de forma violenta. De um texto na Enciclopédia Britânica sobre a desmistificação da lenda urbana da papisa Joana podem retirar-se alguns dados «abonatórios»:

«Pope John X., elected in 914, owed his elevation entirely to his mistress Theodora, whose beauty, talents, and intrigues had made her mistress of Rome about the beginning of the tenth century. At a late period Theodora’s daughter, Marozia, wielded a similar influence over Sergius III., and finally raised her son by that pope to the pontifical throne, with the title of John XI. At a still later period, John XII. was so completely governed by one of his concubines, Raineria by name, that he entrusted to her much of the administration of the holy see.»

O papado conheceu mais períodos marcados por imoralidade e corrupção, a Renascença proeminente entre eles. Uma das causas da reforma Protestante, apesar de alguns excessos no que respeita a indulgências por parte de Giovanni di Lorenzo de Medici, o papa Leão X, terem ajudado.

Nesta época, destacam-se Pio II, um celebrado autor de literatura erótica antes de assumir o papado. E pai de uma prole considerável. Ou Inocêncio VIII, o tal que de tão preocupado com a cópula com o demónio tinha encomendado o manual de caça às bruxas, que, menos preocupado com a cópula terrena, deixou 16 filhos, igualmente repartidos pelos dois sexos: Octo Nocens pueros genuit, totidemque puellas; Hunc merito poterit dicere Roma patrem. Sobre os excessos (sexuais e não só) de Alexandre VI, Roderigo Borja ou Bórgia, acho que não é necessário acrescentar algo. Mas podem relembrar os factos mais importantes.

E quem estiver interessado em saber mais sobre a actividade sexual de um papado tão devotado ao longo dos séculos em controlar a vida sexual dos outros pode encomendar o livro de Nigel Cawthorne «Sex life of the Popes».

16 de Agosto, 2004 Palmira Silva

Da sexualidade e da ICAR, I: o pecado original

Estreio-me no Diário de Uns Ateus com um artigo em duas partes que tenta contextualizar a demonização do sexo e explicar (se é que no século XXI se consegue perceber) esta obsessão da Igreja em ser juíza da libido alheia. Que tem simultaneamente a ver com a demonização e menorização da mulher pela ICAR. Dia 31 de Julho Joseph Ratzinger da Congregação para a Doutrina da Fé (ex- Santo Ofício da Inquisição) divulga a sua carta aos Bispos católicos onde condena o feminismo, a «ideologia do sexo» e reitera a proibição da ordenação de mulheres. Neste pequeno excerto pode comprovar-se que o pensamento de Agostinho continua actual:

«Nas palavras que Deus dirige à mulher a seguir ao pecado, é expressa de forma lapidar, mas não menos impressionante, o tipo de relações que passarão a instaurar-se entre o homem e a mulher: «Sentir-te-ás atraída para o teu marido e ele te dominará» (Gen 3,16).»

De facto, foi Agostinho de Hipona que moldou o ideal da «piedade» cristã mais do que qualquer teólogo antes ou após ele e para Agostinho as mulheres eram um perigo moral. A fobia da mulher que se encontra em Agostinho, apenas entendida como uma aberração particularmente grotesca, que infelizmente se consolidou de pedra e cal na Igreja pela pena fácil e erudita de Agostinho, que o colocou entre os imortais da literatura mundial, teve consequências nefastas, especialmente para as mulheres e para uma sexualidade saudável.

Uma «pérola» de Agostinho:

«Mulheres não deveriam ser educadas ou ensinadas de nenhum modo. Deveriam, na verdade, ser segregadas já que são causa de horrendas e involuntárias erecções em santos homens».

Um pouco antes de completar o penúltimo livro da suas «Confissões», aproximadamente em 400, Agostinho implorou a Deus que se fosse ele o encarregado de escrever o Génesis como anteriormente o fora Moisés, desejaria «receber de Vós uma tal arte de expressão que…até aqueles que não podem compreender como é que Deus cria… acreditassem nas minhas palavras.»

Assim, sem qualquer incumbência divina mas tentando resolver as suas torturas pessoais, com a espantosa capacidade literária que os seus escritos testemunham, após ter terminado as Confissões iniciou uma interpretação pessoal do Génesis – De Genesi ad Litteram – em que o sexualidade e a depreciação do sexo são a nota dominante.

Donde viria, indagava ele, essa miséria que nos cerca, a corrupção, as heresias e a maldade? Existia na sociedade, concluiu ele, uma mancha indelével motivada pelo pecado original proveniente do impulso sexual. Pecado original que acompanhava a humanidade desde a queda do Paraíso: a queda de uma natureza angelical, incorpórea, para uma realização do corpo, do sexo, cometido com a dentadinha na maçã da maldita Eva que levou Adão a reconhecer a nudez (e implicitamente a sexualidade).

Tentando resolver a aparente contradição entre o «crescei e multiplicai-vos» e o acto impuro subjacente à multiplicação ou seja, como permitir a reprodução sem prazer sexual, Agostinho, bispo de Hipona, criou a sua doutrina sobre o casamento, o sexo e a privação carnal. Adoptada entusiasticamente pela nossa Santa Igreja até hoje. Infelizmente…

A pena de Agostinho deu à sexualidade uma conotação de algo maligno, humilhante, de perversão e vício. Para a ICAR depois de Agostinho o sexo passou a ser associado a um discordium malum, a «prenda» do Mafarrico disfarçado de serpente à pecaminosa Eva que para sempre agrilhoou a carne à Terra e a afastou dos céus e de Deus!

E como qualquer Freud de trazer por casa pode explicar, o problema de Agostinho foi o mesmo que os ex-fumadores experienciam: não suportam sequer o «cheiro» do que renunciaram…

Isto é, a obsessão de Agostinho em denunciar a sexualidade deve-se a ele ter sido um renegado do erotismo. Como abjurado das paixões sensuais, votou intenso ódio ao que, no passado, o atraiu, lamentando ter desperdiçado tanta energia nos prazeres carnais. Ele mesmo não negou ter sido dominado na sua juventude por uma intensa volúpia, pela lascívia, ao ponto de que, em determinado momento, quando pediu a Deus que o fizesse casto, acrescentou… «mas não ainda!».

Com a sua conversão ao cristianismo (Agostinho era originalmente maniqueísta), atribui as culpas do seu anterior pecaminoso comportamento a outrem. Ou seja, a culpa da sua perversidade devia-se às mulheres que o tinham seduzido. Daí todo o anátema em relação às mulheres.

Até hoje os celibatários da Igreja acreditam que o perigo tem feições femininas, as mulheres são impuras e como tal se opõem ao que é santo. Ou seja, são seres humanos de segunda classe a que muito relutante e tardiamente concederam a benesse de possuirem alma!

16 de Agosto, 2004 Carlos Esperança

Fim de semana em Lourdes

1 – O Papa JP2, antes de visitar a mais concorrida Agência de milagres – Lourdes -, ainda no Vaticano, mandou uma bênção para os gregos, anfitriões dos jogos olímpicos.

Embora inútil, sabe-se que a bênção é desejada pelos católicos, mas é um abuso quando se dirige a quem não a pede e despreza o benzedeiro. É o caso dos cristãos ortodoxos.

Imagine-se que, durante o Euro 2004, o Arcebispo de Cantuária, da Igreja anglicana, o Patriarca Bartholomeo, primaz dos ortodoxos em todo o mundo, o Imã da mesquita de Meca, o rabi de Jerusalém, um importante Ayatollah e outros parasitas de Deus distribuídos pelo planeta, tinham enviado a sua bênção aos portugueses! Até os ateus poderiam ter sido agredidos com um acto de prepotência e autoritarismo idêntico ao que JP2 se atreveu a protagonizar. Ridículo.

2 – JP2 esteve 31 horas em Lourdes e presidiu a uma missa em que colaboraram quinze cardeais, cem bispos e centenas de padres. Segundo a Conferência Episcopal Francesa – associação dos bispos da sucursal francesa da ICAR – assistiram à missa 300 mil peregrinos. Mesmo sem descontar o exagero habitual dos publicitários trata-se de um número modesto de clientes, longe do entusiasmo que os primeiros comícios do seu pontificado provocavam. Bom sinal.

3 – Nesta viagem – a 104.ª que realiza vestido de Papa – JP2 considerou-se um «homem doente entre os doentes», igual a todos os outros que se deslocam ao santuário, à espera de uma cura miraculosa. Sabe-se que Deus não o atendeu pois a doença mantém-se estacionária. Eis um mau sinal para os crentes que vêem o representante do único Deus verdadeiro abandonado pela entidade patronal.

16 de Agosto, 2004 pfontela

Erros, abusos e má fé

Ontem o decrépito líder católico dirigiu-se aos peregrinos em Lourdes, proferindo um discurso de «apoio à vida» onde condenou a eutanásia e o aborto. Não há nada de surpreendente nestes factos, já desde há muito que não esperamos ouvir nada de razoável dos representantes dessa corte medieval que é o Vaticano. O facto de um embrião com dias ou poucas semanas não ser vida humana por nenhum padrão aceitável cientificamente não impende a ICAR de continuar a insistir na sua versão errónea. Mas há uma história algo divertida por detrás de toda esta posição. Tudo começa com Tomás de Aquino, que defendia que o embrião não tem alma até várias semanas depois do inicio da gravidez, aceitando assim o princípio de Aristóteles que dizia que a alma é a «forma substancial» do ser humano. De forma simples este princípio implica que não existe alma até se ter um corpo distintamente humano. Ora, Tomás de Aquino sabia que um embrião não tem uma forma humana desde o momento da concepção e assim chegou à sua conclusão de que até ao fim de algumas semanas não havia alma. A ICAR aceitou este ponto de vista oficialmente em 1312 no Concílio de Viena. Durante o Séc. XVII ao observar óvulos fertilizados em microscópios primitivos vários cientistas pensaram ter observado pequenas pessoas completamente formadas (chamaram-lhes homúnculos). A ICAR, seguindo o seu ponto de vista, afirmou que visto terem forma humana desde a concepção, tinham que ser tratados como seres humanos e seguiu-se a condenação total do aborto. Ora hoje sabemos que tais homúnculos não existem, tratou-se apenas de um erro de observação. Mas enquanto a ciência progrediu a posição da Igreja manteve-se inalterada, mesmo sendo sustentada por um erro com quase 400 anos. É de notar que a posição do concílio de Viena nunca foi revogada.

Depois temos a posição sobre a eutanásia que além de atentar contra a mais básica liberdade do indivíduo (a de dispor da sua vida como entender) é francamente desumana. Para quando políticos com coragem para enfrentar estes MIB (Men In Black – também conhecidos por padres) e repor a dignidade e liberdade humanas?

Ao longo de uma cerimónia que durou 3 horas (zzzz…) houve ainda tempo de exortar as mulheres católicas contra o materialismo e a secularização… não vá um dia acontecer que essas duas coisas possam de facto torná-las iguais.