Loading
20 de Março, 2008 Carlos Esperança

A Europa com sinais contraditórios

A secularização dos europeus tem-se acelerado nos últimos anos como o demonstram os números dos casamentos civis e uniões de facto, a ultrapassarem as uniões canónicas, a desertificação das cerimónias litúrgicas, o afastamento da catequese e a dificuldade de criar vocações para o clero regular e secular.

No entanto a laicidade, tal como se desenvolveu a partir do Renascimento, que faz parte da matriz cultural europeia, está em decadência, assistindo-se a uma infiltração do clero nos aparelhos de Estado para condicionar as políticas, obter privilégios e dominar largos sectores da educação e da assistência.

O acicate da contestação islâmica devolveu às igrejas cristãs a obsessão prosélita que estava adormecida. Numa primeira fase unem-se para vergar os Estados ao seu poder de influência eleitoral para obterem novos direitos, depois guardam-se para o ajuste final entre elas.

Perante a débil resistência e nula vigilância das instituições democráticas, as Igrejas reclamam cada vez mais privilégios e conquistam novas posições de poder. Conseguem isenções fiscais, negados às empresas laicas, subsídios robustos proibidos às empresas em dificuldades, para não violar a lei da concorrência, e terrenos gratuitos para a construção de templos, lares, escolas e outros edifícios comerciais, não excluindo os tempos de antena e publicidade gratuita nos órgãos de comunicação social do Estado.

Para além da grosseira violação dos critérios de equidade permite-se a acumulação de poder e privilégios que não vai ser pacífico reduzir. Perante a falta de ética republicana que nos conduz ao domínio das sotainas e ao regresso anterior ao século das luzes, são perigosos os tempos que se avizinham quando a instabilidade social e a miséria criarem o ambiente favorável ao clericalismo.

Nessa altura serão muitos os que se ajoelham e mais os que rastejam.

19 de Março, 2008 Carlos Esperança

A agonia de Deus

Deus não morreu, está na reanimação mas ninguém se iluda quanto ao cadáver. Será escondido pelos parasitas da fé que não prescindem do rendimento do mito. De todos os antros clericais saem prosélitos à solta, sem cabresto nem rédea, aos pinotes, rinchando a existência de Deus, anunciando o seu martírio e alegando a sua bondade.

Quanto maior for o sofrimento humano mais fácil se torna a promoção de Deus, quer traga como brinde o Paraíso, como chamariz, quer leve, em desespero, o Inferno como ameaça.

Um livro antigo e sinistro, conhecido por Antigo testamento, um compêndio de ódio que escorre de cada uma das folhas milhares de vezes reescritas, alteradas e plagiadas, está na origem do obscurantismo que resistiu a grandes descobertas, ao avanço da ciência e à modernidade para cujo combate esse livro iníquo serviu de pretexto.

O Paraíso é um luxuoso condomínio fechado com apartamentos inesgotáveis, edificado para quem se deixe embrutecer pela fé e manobrar pelo clero. O Inferno é um antro de horrores com que se atemorizam os créus e se ameaçam os réprobos.

Com provas tão débeis e mentiras tão grosseiras é milagre (afinal, há milagres) que haja quem embarque nas patranhas religiosas e se borre de medo com as ameaças do clero.

O livre-pensamento combate o obscurantismo. O medo, esse é um sentimento comum à humanidade que cada pessoa domina melhor ou pior.

O regresso agressivo do sagrado anda aí à espreita como rinites no início da Primavera. É como a varíola, uma doença por ora erradicada, que pode regressar como pandemia se as amostras guardadas do vírus forem violadas. Será o retorno da fé. Puro e duro.

18 de Março, 2008 Carlos Esperança

Dalai Lama disposto a abdicar da divindade

Sua Santidade o Dalai Lama é o líder espiritual e político de uma anacrónica teocracia tribal em que ele próprio é o Deus autóctone. O país é feudal e os monges dispõem do poder a que os súbditos tribais são obrigados a submeter-se, uma violência consentida pelo respeito divino e igualmente reivindicada pelos dirigentes chineses.

O Tibete é um espaço de fome e tradição em que a ditadura teocrática foi esmagada pela ditadura chinesa, uma mistura de liberalismo económico atrevido e de repressão policial maoísta.

Quando o Deus vivo morre, renasce num outro corpo mais jovem. Não se confunda o ar pacífico deste monge, que o marketing despojou para consumo ocidental, com um democrata ou libertador. O 14.º Dalai Lama foi, como qualquer outro teocrata, dos 15 aos 23 anos, um biltre que oprimia, embrutecia e mantinha o seu povo na miséria, habitando palácios, antes de ter fugido para o exílio na Índia.

A esta dinastia de ditadores há-de voltar o Diário Ateísta, uma dinastia em que o Deus-Rei é escolhido por monges e programado para ser vitalício, como convém a um tirano, e eterno, através dos seus avatares, como é próprio de um Deus.

Curioso é o facto de o Dalai Lama ameaçar resignar à santidade e ao carácter divino, embora o povo saiba que é Deus, mesmo que o próprio se veja obrigado a negá-lo, tal como aconteceu ao imperador do Japão em 1945.

De qualquer modo, a ignóbil tirania chinesa merece o mais activo repúdio. A China, independentemente da legitimidade territorial sobre o Tibete, continua a ser um país opressor, uma ditadura policial indigna de receber os Jogos Olímpicos. E, hoje, é isso que está em causa.

18 de Março, 2008 Carlos Esperança

A superstição não mata. Nem o ridículo

Demorei a perceber o motivo por que os elevadores não paravam no 13.º andar dos hotéis onde a profissão me levou centenas de vezes. Simplesmente não tinham o andar n.º 13. Do 12 passavam ao 14, numa cedência à superstição dos fregueses.

Há poucos anos, a Grécia recusava transpor para o direito nacional uma qualquer lei europeia a que calhou o n.º 666, numa inflexibilidade típica da teologia reaccionária da Igreja ortodoxa.

Agora foi a vez do presidente da Câmara de Reeves, Luisiana (USA), que, após uma longa batalha, conseguiu obter a mudança do prefixo telefónico da cidade: o 666, número da Besta, substituído por um anódino 749.

«Era uma marca, um estigma na nossa cidade. Nós somos bons cristãos.» – declarou o pio edil Scott Walker.

17 de Março, 2008 Carlos Esperança

As eleições no Irão

A União Europeia considera que «as eleições no Irão não foram livres ou justas». Não sei onde está a surpresa se se excluir o facto de costumar ser Bush e não a Europa a decidir quando são justas, bem como quais são os países do Eixo do Bem ou do Eixo do Mal e qual a época em que autoriza transferências.

Onde o poder é de origem divina jamais pode ser exercido sem intermediação do clero. O Conselho de Guardiães encarrega-se de impedir a candidatura de qualquer suspeito de desvio à ortodoxia. A teocracia é a antítese da democracia e no Irão o poder reside no Guia Supremo da Revolução, o imã Ali Khamenei. É este biltre que manda, segundo os princípios islâmicos e constitucionais da hegemonia do poder religioso.

As eleições parlamentares são uma farsa para aumentar o seu poder pessoal. Os 290 deputados são figurantes experientes em jejuns e orações, escolhidos pela fidelidade pessoal e religiosa.

Este bando de fanáticos vai manter a provocação nuclear e a ditadura religiosa enquanto a crise económica se agrava. A juventude, apesar da brutalidade da repressão, revolta-se e é torturada e assassinada pela polícia religiosa. Pode nascer aí a alteração à correlação de forças com o banho de sangue que se adivinha.

Estas eleições foram um exercício de aquecimento para a grande batalha que se travará nas presidenciais de 2009. Curiosamente, apesar do esforço do clero para o disfarçar, a abstenção foi elevada. Hoje a informação circula com rapidez. As antenas parabólicas mostram que há mais mundo para lá das cinco orações diárias e da proibição de urinar virado para Meca.

Quando os iranianos urinarem à vontade os velhos imãs recolhem ao regaço das virgens que os esperam no paraíso. Até lá, é mais uma violenta ditadura religiosa que persiste e um perigo para a paz que se prolonga no tempo e se agrava todos os dias.

15 de Março, 2008 Carlos Esperança

Variação semântica do anti-semitismo

Sexta-feira santa, os padres católicos usando o missal tridentino, reabilitado em Julho de 2007 por Bento XVI, não rezarão já, «libertar o povo judeu das trevas», mas mais sobriamente «a fim de que Deus ilumine o coração dos Judeus e que eles acreditem em Jesus Cristo». A intenção é a mesma, mas é preciso reconhecer que é dito de forma mais bonita.

Fonte: Le Monde des Religions (mars/avril 2008 – N.º 28)     

15 de Março, 2008 Carlos Esperança

No rescaldo das eleições espanholas

Agora que assentou a poeira sobre as eleições espanholas e que Zapatero viu sufragadas nas urnas as medidas contestadas na rua pela da Conferência Episcopal espanhola aliada ao PP de Aznar (Mariano Rajoy é mais moderado), vale a pena recordá-las:

– Fim da obrigatoriedade das aulas de Religião católica nas escolas públicas;
– Legalização dos casamentos homossexuais;
– Extensão do direito de adopção aos casais homossexuais;
– Criação da disciplina de Educação para a Cidadania;
– Lei da memória histórica;
– Apagamento dos símbolos franquistas dos edifícios públicos que, para vergonha do clero, permanecem provocatoriamente nas igrejas;

Só falta legislar sobre a eutanásia para completar o programa da primeira legislatura em relação aos temas que mais incomodavam a direita e o episcopado. Mas, agora que o cardeal Rouco Varela, ligado ao Opus Dei, presidente da Conferência Episcopal e amigo do Papa, garante a sua oração a Zapatero, não irá ser difícil.

E a eutanásia é um angustiante problema que não pode ser tratado com preconceitos e anátemas. É urgente e precisa de discussão pública. Em Espanha e em Portugal.