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15 de Janeiro, 2015 Carlos Esperança

O homem era um santo (crónica)

A mulher, que chegava do trabalho antes dele, chegou ao ponto de lhe dizer que não era sua criada, que um dia acabava o hábito de ser ela a única a cozinhar, a lavar e a passar a ferro a roupa, a fazer a cama e a limpar a casa.

O homem, um santo, aguentava a desfaçatez, suportava a sopa, a que faltava ou sobrava sal, sem um queixume, a salada que estava mal temperada, o peixe mal grelhado e ainda a ouvia resmungar enquanto lia o jornal e ela arrumava a mesa e lavava a louça.

Casados há mais de vinte anos, a mulher queria agora gozar dos mesmos direitos, exigir iguais deveres para ambos, depois de ter criado dois filhos sem que o marido soubesse o que era mudar uma fralda ou onde era a creche ou a escola.

Suportou ao longo dos anos que a mulher tivesse um vencimento maior que o seu, sem mostrar a irritação que isso lhe causava, ouvia-a cantar quando queria silêncio e sentia-a emudecida na altura em que queria conversar. Começou a arremessar para a roupa suja as camisas onde via uma ruga, o homem era um santo mas não podia aguentar mais.

Um dia, estava ela na lide da casa, depois de um dia de trabalho de que viera exausta, o homem não podia adivinhar, fez-lhe uma pergunta e não obteve resposta. Nesse dia, depois de anos a aguentar aquela mulher, agarrou na faca da cozinha e deixou-a a esvair em sangue, enquanto se foi entregar à polícia.

No tribunal, presidiu ao coletivo de juízes uma mulher, sem capacidade de compreensão para a bondade do homem que, naquele dia, se excedeu. As testemunhas eram unânimes a denunciar os maus tratos de que o santo homem fora vítima, mas poderia uma mulher compreender o tormento de um homem!? Na sua beca, imaculadamente passada a ferro, a juíza acusou-o de crueldade, violência gratuita e amoralidade, enfim, um exagero que as mulheres cometem, sem se esquecer de o acusar de ter repetido as facadas 12 vezes.

Quando a morta devia ter sido condenada foi o pobre do viúvo que ouviu um longo e penoso acórdão que o condenou a 18 anos de prisão. Já não há justiça. Essa defunta foi uma das 40 de que os companheiros, fartos de tanto sofrimento, acabaram por matar no ano que há pouco findou.

Não sei porquê, lembrei-me da perseguição dos polícias franceses aos que piedosamente executaram os desenhadores do Cahrlie Hebdo. Mataram os santos homens que rezavam cinco orações diárias e só queriam uma assoalhada no Paraíso recheada de 72 virgens.

Já não há justiça!

14 de Janeiro, 2015 David Ferreira

Da cosmética

Tenho por hábito dizer que os seres humanos são um paradoxo ambulante. Um poço sem fundo de contradições. Essa imagem está bem espelhada nos livros mitológicos e religiosos que refletem de certa forma a primitiva essência da espécie humana e o parto doloroso que foi o dealbar da civilização.

O Deus mau, vingativo e cruel é, ao mesmo tempo, o Deus da paz, do amor e da tolerância. Tem dias, como todos nós (eu que o diga ao acordar, antes de tomar o primeiro café). Porque ele É nós. Nasceu de nós e não para nós. De nós, um animal selvagem que julga ter ludibriado as leis da natureza e que agora se tenta domesticar a todo o custo com os custos que isso acarreta.

Viver é gerir conflitos. Com os outros e com o Eu. Mas é também competir. Com os outros e com o Eu sempre presente. É tão simples como isto.

Necessitamos de energia para viver, por isso comemos. Para comer necessitamos de um espaço que nos forneça alimento, por isso somos territoriais. Necessitamos de nos reproduzir, competimos uns com os outros por machos e fêmeas. Necessitamos do apoio mútuo e colaboração, organizamo-nos em sociedades. E competimos para sobreviver. Assim, de uma forma tão simples e tão essencial. Tudo o resto é como o açúcar fino que deitamos por cima de um bolo. Não lhe acrescenta muito em doçura, apenas o torna mais apresentável. É a essa fina camada de pó branco que chamamos humanidade. E nós seremos sempre o bolo. Um bolo bipolar maquilhado a tentar recalcar a sua verdadeira natureza. Mas há quem constantemente o prefira ignorar. A uns chamamos crentes, a outros idealistas.

13 de Janeiro, 2015 Carlos Esperança

A FRASE e a PULSÃO CENSÓRIA

A frase:

«Se no passado os valentes cartoonistas mortos em França puseram Hollande com o seu ‘coiso’ de fora, o presidente português também podia ser desenhado de calças na mão e com as letras BPN tatuadas na nádega direita».
(Rui Cardoso Martins, in Pública – Revista 2)

A pulsão censória:

Existem nas sociedades europeias e noutras sociedades do mundo conquistas que são irrecusáveis e que têm que ver com os direitos humanos, onde está o direito à vida, à liberdade e à responsabilidade de expressão e o direito a ser considerado naquilo que são as convicções e na expressão das ideias».
( Manuel Clemente, Patriarca de Lisboa)

Fonte: DN, 12-01-2015, pág. 14.

13 de Janeiro, 2015 Carlos Esperança

A prudência e a coragem

A dia de ontem deu emprego a imensos comentadores que repetiram até à náusea que os terroristas nada têm a ver com o Islamismo. Pareciam papagaios amestrados a negar as evidências. Basta ver os chacais que hoje se pronunciaram a favor da legitimidade do ataque ao jornal satírico Charlie Hebdo, aceitando a crueldade e o assassínio.

Devemos, no entanto, compreender a legião de mentirosos, que procuram honestamente defender de retaliações os muçulmanos. Quem os molestar deve ser punido com o rigor que os crimes sectários merecem mas não se pode absolver uma religião anacrónica que não foi capaz de fazer a Reforma, de aceitar a laicidade ou de abdicar da propriedade masculina das mulheres.
O islamismo é perverso e intoxica os crentes. É um sistema totalitário controlado por boçais, posto ao serviço das frustrações e do atraso de quem não aceita a modernidade.

Defender os muçulmanos, tal como os cristãos, hindus, budistas ou judeus é a obrigação dos democratas. Combater a superstição, o preconceito e a barbárie é um dever, quer se trate dos cristãos evangélicos que impõem o estudo do mito criacionista nas escolas dos EUA, assassinam médicos e enfermeiros em clínicas onde se pratica o aborto legal ou inspiram o Tea Party; quer sejam islamitas que raptam meninas cristãs na Nigéria e as reduzem à escravatura; quer sejam católicos devotos de João Paulo II que, seguindo a teologia do latex, deixaram morrer centenas de milhares de negros a quem privaram do uso do preservativo; quer sejam hindus nacionalistas, budistas do Tibete ou os judeus de trancinhas à Dama das Camélias, que na pausa de cabeçadas ao Muro das Lamentações, inspiraram os massacres de Sabra e Chatila e promovem o sionismo.

Dizer que o Islão é pacífico, tal como outras religiões, antes da repressão política sobre o respetivo clero, é uma mentira que, de acordo com o mito do Pinóquio, não deixaria o nariz de qualquer crente, que o afirme, caber no maior dos templos.

É preciso defender os crentes e combater as crenças. O Renascimento, o Iluminismo e a herança republicana da Revolução Francesa são irrenunciáveis.

12 de Janeiro, 2015 David Ferreira

A marcha dos alinhados

Não sei se a manifestação que teve lugar em França foi contra o terrorismo, a favor da tolerância ou uma catarse em grupo. Sei que não me recordo de ver tanta gente gritar “Não temos medo!” com o coração nas mãos.

Sei que de tanto se gritar por liberdade acabámos por ensurdecê-la e amordaçá-la. Uma manifestação pacífica em nome da tolerância que necessita da escolta de um exército armado por questões de segurança não é uma manifestação, é uma procissão alinhada de condenados com síndrome de Estocolmo a recitar auto censura.

Decorrida a homilia, retiraram-se em silêncio. Em silêncio, a recalcar as fobias de que lhes dizem padecer. À noite colocarão o silício e rangerão os dentes de dor enquanto sussurram: “Por minha culpa, por minha grande culpa.”

Amanhã, quando acordarem, voltarão a ser tentados. As tentações são mais que muitas. E vão continuar a recalcar os pecados que alguém disse que têm. Até à próxima homilia. Porque vai haver uma próxima homilia. Que ninguém duvide. Então voltarão a tomar a hóstia e a engolir em seco. Em silêncio. Sempre em silêncio.

12 de Janeiro, 2015 Carlos Esperança

Paradoxos

Nem todos fomos Charlie, a começar pelo gang Le Pen, que tentou integrar a onda de comoção coletiva, e a acabar nos inimigos do humor corrosivo e da blasfémia. Uns fizeram-no por convicção, outros por cobardia. Há quem honestamente pense que não de devem ferir sentimentos alheios e quem não aceite apenas que se ofendam os seus.

Os fascistas franceses da FN já renegaram a solidariedade a quem os zurzia, a quem fez da ofensa e da provocação uma bandeira que deu cobertura às formas mais benignas de crítica. Ninguém tenha ilusões, se não houver quem arrisque mais do que nós, quem se exponha até aos limites, seremos nós os alvos da intolerância.

Eu defendo o direito à ofensa, apenas não admito que repliquem às ofensas pela palavra e pelo desenho com armas diferentes. Não se responde ao insulto a tiro, não se limpa a nódoa da desonra com a lixívia do duelo. Sempre que um papa abençoa os portugueses, ofende-me, mas não ultrapasso um protesto ou uma maldição, sabendo que a bênção e a maldição não passam de placebos, à semelhança dos maus olhados. Valem o que valem.

Passado o pico da emoção, que condicionou os bem pensantes e os cobardes, já vozeiam por aí os que pensam que o respeitinho é muito bonito, que as vítimas se puseram a jeito e que o Charlie Hebdo era imoral. São herdeiros de Krus Abecasis a impedir a exibição de Je Vous Salue Marie, de Jean Luc-Godard, em 1985, quando presidia à Câmara CDS de Lisboa; são filhos de censores d’As Horas de Maria (1979), de António de Macedo e dos escribas que desencadearam campanhas contra a exibição desses filmes e da Última Tentação de Cristo (1988), de Martin Scorcese.”.

Do Portugal de Cavaco e Sousa Lara, censores d’O Evangelho segundo Jesus Cristo, de Saramago, Passos Coelho voa para Paris, num ato de solidariedade cuja honestidade se aceita por, certamente, não frequentar livros e revistas satíricas antifascistas.

É abominável responsabilizar as vítimas e atenuar a violência dos algozes. O jornalista Ferreira Fernandes lembrou bem, no DN, a analogia com um acórdão do STJ, que não pode ser designado ignóbil por ser crime, acórdão em que os conselheiros consideraram atenuante ao crime de violação, de duas jovens estrangeiras, o facto de trazerem roupa demasiado leve «em plena coutada do macho ibérico», no Algarve.

Os facínoras incendiaram hoje um jornal alemão que publicou caricaturas de Maomé.

Se todos soubessem quantas vítimas custou a liberdade de que ainda usufruímos…

11 de Janeiro, 2015 Carlos Esperança

O proselitismo e a violência

O pior que algumas religiões encerram é o seu proselitismo. Não lhes bastam os crentes próprios, exigem a conversão dos alheios ou a sua eliminação. A evangelização cristã é hoje, felizmente, uma tara acalmada com a repressão política sobre o clero. Abandonou há muito os métodos cruéis de evangelização que usou em vários continentes e, de forma particularmente violenta, na América do Sul.

Na Europa , a paz de Vestefália, pôs fim à sangrenta Guerra dos 30 Anos e a Igreja católica só aceitou a liberdade religiosa na década de 60 do século passado, no concílio Vaticano II. O azedume de João Paulo II e de Bento XVI apenas fez mal aos próprios e foi irrelevante para a liberdade religiosa europeia onde o secularização dos países tornou impensável qualquer perseguição.

O Islão, pelo contrário, na cópia grosseira do cristianismo introduziu a guerra como um instrumento de contágio e submissão, agravado pela decadência da civilização árabe e o ressentimento dos crimes de que foi alvo por países saqueadores de matérias primas, em especial o petróleo.

É incontestável que os crentes não são piores nem melhores do que os não crentes mas ninguém faz o mal com tanto entusiasmo e satisfação como os que são movidos pela fé.

Não é inocentando os crimes sectários das religiões que se estabelece um modus vivendi num mundo onde as diferenças deviam ser fatores de enriquecimento e não motivos de conflito.

Quando os crentes se convencerem de que as suas religiões refletem as formas de pensar da época em que surgiram e não palavras ditas por um ser ilusório, sem aparelho fónico, podem cumprir os preceitos que se habituaram a observar, desde crianças, e deixar no templo a obsessão de submeter os outros às suas próprias convicções.

Ao proselitismo não se podem tolerar outras armas para além da palavra e do exemplo e as armas devem ser banidas da evangelização. As democracias, por mais que sangrem, não podem ultrapassar os limites do Estado de Direito contra o terrorismo, sob pena de perdermos o Estado e o direito e ficarmos apenas reféns do terrorismo recíproco.