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15 de Novembro, 2004 lkrippahl

Porque sou ateu

Para muitos na sociedade em que vivemos é uma questão de escolha pessoal se havemos de acreditar neste ou naquele deus, não acreditar em deuses, ou nem sequer decidir sobre o assunto. O ateísmo, o agnosticismo, e a fé são vistos como algo que cada um decide. Em parte isto está correcto, mas também está errado.

Um aspecto deste problema é objectivo: existe ou não existe algum deus? Sendo objectivo, não é uma questão de escolha. Eu não escolho se faz chuva ou sol, ou se a gravidade me puxa para a Terra. As coisas são como são. Parte do meu ateísmo é a conclusão que não há deuses, ou pelo menos que não há Deus como o costumam definir: omnipotente, omnipresente, criador do universo, entre outros atributos.

Esta conclusão deriva apenas da forma como o Universo se apresenta, e não da minha escolha pessoal. Não há fenómeno algum para o qual um deus seja a melhor explicação, e muitas observações contrariam a hipótese. Quantas crianças pisariam minas se houvesse um deus omnipresente e benévolo que lhes pudesse dizer para brincar noutro sitio?

Mas há outro aspecto da crença no divino. Deus também pode ser uma fonte de valores morais, um exemplo a seguir, uma ideia para nos orientar, e isto independentemente da sua existência objectiva. No que toca aos nossos valores, temos que escolher. Mas a minha escolha é que os meus valores são meus, e não são função do que outro ser possa ditar, por muito poderoso que seja.

Se um deus disser que a contracepção é pecado, eu discordo. Se um deus me mandar ir à missa todos os Domingos, eu recuso, porque acho que tenho esse direito. Se um deus ditar que quem não acreditar nisto ou naquilo será condenado ao sofrimento eterno, eu protesto, porque acho que ninguém deve sofrer pelas suas crenças. Não escolho os meus valores pelo que alguém poderoso me diz, mas pelo que dita a minha consciência.

Objectivamente o meu ateísmo não é escolha minha. As coisas são o que são, e tudo indica que não há deuses de verdade. E subjectivamente não escolho os meus valores ao sabor do que me dizem. As coisas que para mim parecem justas ou injustas continuam a parecê-lo mesmo que alguém todo poderoso dite o oposto. Em suma, sou ateu não porque escolhi ser ateu, mas porque escolhi aceitar a realidade como ela é, e assumir eu próprio a responsabilidade pelos meus valores.

15 de Novembro, 2004 Palmira Silva

Sobressaltos na Índia

A prisão de um líder religioso hindu, Jayendra Saraswathi, acusado de ter assassinado um antigo contabilista do templo que dirige, está a causar grandes distúrbios no sul da Índia. O religioso, reverado pelos seguidores, é uma das principais figuras de um secto Hindu da comunidade Brahmin e lidera o Kanchi Shankara Mutt, no templo Hindu em Kanchipuram, no estado Tamil Nadu.

O grupo Hindu Vishwa Hindu Parishad (VHP), que afirma ser a prisão de Saraswathi um «ataque grave à comunidade hindu», planeia uma demonstração para hoje na cidade de Chennai.

«É necessário precaução contra exortações apressadas por indíviduos e organizações que apresentam a prisão do líder religioso de Kanchi como uma conspiração diabólica contra o hinduismo», lê-se no jornal The Indian Express.

14 de Novembro, 2004 Carlos Esperança

Crimes em nome de Deus

As religiões, ao longo da História, destruíram impérios, desenharam fronteiras e aniquilaram povos. A fé arruinou nações, impediu a liberdade e esmagou a felicidade dos povos. Deus foi sempre pretexto para destruir os inimigos e cometer os mais hediondos crimes, com o alibi de satisfazer a sua vontade.

Deus está, de facto, para azar dos homens, em toda a parte. O deus mais verdadeiro é aquele que está em maioria, tem por si as armas e tem o fanatismo a seu favor. Sempre que deus está em alta, a liberdade entra em queda; quando os homens adoram o seu deus, odeiam o deus dos outros. Os crentes imploram os seus favores com o mesmo fervor com que acalentam o ódio ao deus alheio.

É por isso que a democracia fenece onde a religião floresce, a liberdade mingua onde a fé prolifera e o progresso estiola onde a piedade medra.

Não há democracia onde a religião domina o aparelho de Estado. Os direitos do homem não são respeitados onde o poder temporal e o religioso se confundem. Foi na base da separação de poderes e, sobretudo, na separação da Igreja e do Estado, que os modernos Estados de direito se construíram. Foi o laicismo que permitiu o pluralismo ideológico, opondo uma barreira de protecção à vocação totalitária das religiões.

E, quando parecia que o Estado laico se transformava em paradigma das nações civilizadas, quando a sociedade multicultural se convertia num modelo de convivência cívica, quando os preconceitos étnicos e culturais pareciam derrotados pela instrução, inteligência e sensibilidade dos povos civilizados, eis que os demónios totalitários acordam ao som das orações e se revigoram com jejuns, pregações e liturgias.

A Holanda, a doce Holanda, era o exemplo de convivência cívica entre etnias diversas e diferentes culturas, um oásis de tolerância entre distintas opções políticas e religiões divergentes. Há um ano ficou em choque, quando Pim Fortuyn, um político da direita populista foi assassinado. Agora, o assassínio do cineasta Theo Van Gogh, após a denúncia que fez da forma como o Islão trata as mulheres, associado aos requintes de crueldade com que o fanático religioso o tratou, tornaram periclitante a manutenção da sociedade multicultural holandesa.

Incendeiam-se os templos e a opinião pública. O racismo e a xenofobia crescem. A extrema direita, que vive da aversão e da intolerância, vê a possibilidade de manipular paixões, instilar o medo e acicatar o ódio. A hostilidade aos estrangeiros começou. A fé das pessoas cultas e civilizadas nas sociedades multiculturais vacila. O fascismo islâmico rejubila com a intolerância de que é alvo. As religiões precisam de mártires. Os deuses querem sacrifícios. Os templos convertem-se em quartéis onde se faz a recruta para a guerra santa. Os homens entram em desvario ao serviço da esquizofrenia divina. A religião tem de ser contida. Os Direitos do Homem têm de ser defendidos. A igualdade entre os sexos tem de ser reafirmada. A democracia tem de ser salva. Há que erguer um dique à fé que corrompe, intimida e mata.

Apostila – A ICAR, em Espanha, abriu as hostilidades ao Governo. O ensino laico, o aborto, o divórcio, a eutanásia, o financiamento do clero e a investigação em células estaminais, puseram a santa corja em luta aberta contra o Governo democrático. São os mesmos que apoiaram Franco e fizeram campanha por Aznar. São os mesmos que querem canonizar os «reis católicos». São a eterna lepra que corrói a democracia ao serviço de Deus.

13 de Novembro, 2004 Ricardo Alves

Concordata promulgada

Segundo a legenda de uma fotografia de Sampaio com o Papa na última página do Expresso (corroborada pela Ecclesia de ontem), a Concordata de 2004 foi promulgada esta semana pelo Presidente da República portuguesa, Jorge Sampaio.
13 de Novembro, 2004 Palmira Silva

Violência religiosa na Tailândia

Os últimos dias serão lembrados na Tailândia como dos mais violentos da história de (mais) um conflito de origem religiosa. Uma série de explosões atingiu hoje alvos civis nas províncias de Yala e Narathiwat.

A violência em três províncias do sul da Tailândia causou a morte de mais de 500 pessoas desde Janeiro último, quando foi reavivado um conflito adormecido entre budistas e muçulmanos.

A escalada de violência conheceu um pico em 25 de Outubro quando 78 muçulmanos morreram sufocados em camiões do exército tailandês apinhados, na sequência de confrontos entre a polícia e manifestantes que exigiam a libertação de seis detidos por suspeita de fornecimento de armas aos rebeldes separatistas muçulmanos.

O movimento separatista Islamic Pattani United Liberation Organisation (PULO), desde então tem cumprido a sua promessa de intensificar os ataques. De início dirigidos a alvos militares e policiais (para roubo de armamento) mas actualmente visando civis budistas, que têm sido barbaramente assassinados, nomeadamente por decapitação.

“Eles querem deixar-nos com raiva, querem fazer-nos usar a força bruta e, depois, espalhar a notícia. Então, os simpatizantes deles no exterior dar-lhes-ão mais apoio”, afirmou o primeiro-ministro tailandês.

13 de Novembro, 2004 Ricardo Alves

Multiculturalismo e laicidade

A Reforma e a Contra-Reforma originaram duas Europas ocidentais totalmente distintas quanto ao tratamento da diferença religiosa. A norte, a dissidência protestante depois de maioritária tolerou (relativamente) quer o catolicismo de onde dissidira, quer o judaísmo (infímo), quer as novas dissidências protestantes. Ao sul, a uniformidade católica foi a regra estatal e a Inquisição o método para lidar com todos os desvios à ortodoxia.

A partir do século 18, o fim das monarquias de direito divino só foi conseguido, nos países latinos, contra uma ICAR hegemónica, enquanto as sociedades do norte da Europa, tendo resolvido a tensão religiosa há muito através da tolerância religiosa, não sentiram a necessidade de uma ruptura laicizante. Porém, a liberdade de pensar já não produzia apenas crenças novas mas também agnósticos e ateus assumidos…

Chegamos assim ao século 20 com uma Europa do norte em que as escolas (e nalguns casos as zonas residenciais) estão segregadas em função da religião (sendo esta muitas vezes obrigatória dentro da escola), perpetuando o desenvolvimento separado de comunidades religiosas. Um caso típico é o da Irlanda do Norte, com os resultados práticos conhecidos. No sul europeu, a escola pública tende a ser uniforme para todos, e assume-se como um local em que as pertenças religiosas podem (ou até devem) ser deixadas à porta. O exemplo clássico será a França, onde a escola laica é encarada como a «forja» dos futuros cidadãos.

A chegada de imigrantes à Europa nos últimos cinquenta anos veio portanto testar modelos nacionais de integração social longamente amadurecidos mas fortemente diferenciados, que vão do comunitarismo anglo-saxónico (e holandês) à laicidade latina mais ou menos mitigada. O acolhimento dos imigrantes é também, inevitavelmente, distinto. Existem escolas muçulmanas financiadas pelo Estado na Holanda, e nas escolas estatais francesas o véu não entra… Ao primeiro modelo chamamos hoje multiculturalista, e ao segundo laicidade. O primeiro mantém ateus em escolas religiosas, o segundo não. O primeiro fecha os imigrantes na sua religião de origem, o segundo possibilita que a abandonem.

12 de Novembro, 2004 Carlos Esperança

Notas piedosas

Vaticano – JP2, ao receber hoje Jorge Sampaio e a Esposa, fazendo um acto de contrição perante a anterior recusa de receber uma divorciada, pediu que «a luz de Fátima se propague por todo o mundo…». Confundiu o chefe de Estado com um electricista e Portugal com a EDP.

Fátima – Correspondendo ao pedido dos anjos e de Nossa Senhora, está prevista para o próximo dia 20 de Novembro uma adoração eucarística a «Jesus Escondido», na basílica do Santuário, pelas crianças de Fátima. A organização conta com o apoio especializado do Santuário, da respectiva paróquia e do Movimento da Mensagem de Fátima (MMF), agências especializadas neste tipo de eventos. São esperados 750 meninos e meninas na companhia de familiares e catequistas – revela a agência Ecclesia. Como as crianças adoram jogar ao «esconde-esconde», a adoração eucarística ao «Jesus Escondido» será o momento alto das actividades lúdicas a que não faltarão rezas ao Santíssimo Sacramento e outros divertimentos espirituais.

Nota pastoral – «Portugal soube sempre acolher-se ao regaço da Mãe de Jesus» – diz a Conferência Episcopal Portuguesa, esquecendo que a maioria dos portugueses prefere outros regaços menos compatíveis com a fé e a salvação da alma. Compreende-se que os senhores bispos, a quem a idade e o múnus tornou castos, acreditem, tanto mais que em Coimbra, no séc. XVII, fez-se um «juramento a que se obrigou o corpo docente da Universidade de Coimbra – de defender e ensinar que Maria fora concebida sem pecado». Ainda hoje há lentes que, sem a obrigação do juramento, estão convencidos de que Maria concebeu sem pecado, considerando as mães dos seus próprios filhos umas desavergonhadas pecadoras.

12 de Novembro, 2004 Palmira Silva

Terrorismo religioso na Europa: reflexões sobre a Holanda

O assassínio do cineasta Theo van Gogh despoletou uma tensão, por muitos descrita como étnica mas na realidade religiosa, nunca conhecida numa Holanda encarada como o paradigma da tolerância, da liberdade de opinião e de expressão, da integração de todos com absoluto respeito pelas suas especificidades culturais.

Todos os paradigmas se desmoronaram em escassos dez dias… O bárbaro, injustificado e injustificável assassínio do realizador, por motivos puramente religiosos, está a ser lido pelos holandeses como um aviso de guerra, uma ameaça aos valores da sua sociedade multicultural e tolerante com que não estão dispostos a compactuar.

Na carta cravada a talhe de carniceiro no corpo de van Gogh são dirigidas ameaças explícitas a Ayaan Hirsi Ali, sendo igualmente visados outros políticos considerados «inimigos do Islão», Geert Wilders, a ministra da Imigração, Rita Verdonk, e o prefeito de Amesterdão, Job Cohen (de origem judaica).

O ministro da Justiça holandês, Piet Hein Donner, depois de a ler, afirmou numa conferência de imprensa que «A carta expressa uma ideologia religiosa extremista e nela os inimigos do Islão são advertidos de que devem temer pela sua vida» acrescentando que «contém ameaças e cita a ‘guerra santa’ lançada pelos muçulmanos extremistas».

O atentado contra Theo van Gogh, assumidamente assassinado por se atrever a expressar a sua opinião sobre a religião islâmica, suscitou na Holanda o medo de uma situação semelhante à vivida nos Balcãs, onde o reacender dos conflitos religiosos entre bósnios muçulmanos, sérvios ortodoxos e croatas católicos foi o rastilho da sangrenta guerra que resultou no desmembrar da Jugoslávia.

A resposta do governo holandês foi imediata, nomeadamente no reforçar das medidas de segurança e policiais. Mas também foi decidido retirar a nacionalidade holandesa a todos os emigrantes que ajam contra os interesses do estado e obrigar os imãs a falar holandês nas mesquitas. E a ministra Rita Verdonk afirmou, numa conferência sobre integração, que toda a Europa deve combater a radicalização de jovens muçulmanos, já que «a Europa não se pode converter num reduto de terroristas muçulmanos» e que «os governos Holandeses foram muito ingénuos ao dedicar pouca atenção aos elementos radicais na sociedade».

Enquanto os holandeses fazem a sua introspecção à procura de uma resposta para o que correu mal neste país com uma tradição centenária de tolerância, berço de pensadores humanistas revolucionários, como Erasmus ou Spinoza, a imprensa internacional quasi que ignora o sucedido reservando as manchetes para o funeral de Arafat e outras minudências. Com alguns periódicos europeus, por exemplo o diário dinamarquês Politiken, a compararem a investigação policial na capital internacional da paz, Haia, à noite de Cristal nazi. Com excepção da imprensa espanhola, claro, especialmente porque existem suspeitas de ligação entre os autores do atentado que abalou a Espanha e o grupo a que pertence o assassino de van Gogh. O El Mundo escreveu esta semana que «toda a Europa se deve espelhar na Holanda para evitar que o mal se propague ainda mais».

O fundamentalismo religioso, seja de que confissão for, é a pior ameaça à humanidade na actualidade. O reconhecimento inequívoco deste facto, sem reacções de avestruz ou complexos «les main sales», urge ser feito! Há assuntos cuja gravidade não lhes permite serem tratados de forma «politicamente correcta», até porque este é um problema religioso que os fundamentalistas islâmicos tentam capitalizar transformando-o numa questão étnica (que o não é).

Não nos podemos deixar manipular e manietar por fanáticos de qualquer religião por medo que esgrimam (falsas) acusações de racismo, intolerância ou discriminação. Assim como o parlamento europeu rejeitou Rocco Buttiglione deve responder de forma ainda mais firme a estes atentados (mais graves) contra os valores e direitos fundamentais defendidos por uma Europa aberta, laica, pluralista e tolerante. Antes que seja demasiado tarde, porque este não é o episódio isolado e irrelevante que o silêncio da maioria dos fazedores de opinião faz subentender…

11 de Novembro, 2004 André Esteves

Ayaan Hirsi Ali fala sobre o assassinato de Theo Van Gogh

Publicado pela primeira vez, no NRC Handelsblad em Holandês.

A minha reacção inicial de choque e descrença deu lugar a um sentimento de dor intensa. Estou a sofrer pela morte de Theo. Sofrendo porque, agora, ele não pode ir para a América com o seu filho. Porque ele teve que morrer para focar a atenção de todos na presença de indivíduos cuja convicção religiosa é para eles muito mais importante que a vida humana. Eu sofro porque outra vez a Holanda perdeu a sua inocência, uma inocência da qual Theo era um expoente.

Os ataques terroristas na América e em Espanha foram olhados como algo que só poderia acontecer lá, mas não aqui. A ingenuidade de Theo não era de que não poderia acontecer aqui, mas que não iria acontecer a ele. Ele dizia-me: “Eu sou o idiota da aldeia; eles não me vão tocar. Sê cuidadosa, tu é que és a apóstata e mulher.”

Eu sofro porque eu e os nossos amigos comuns, não podemos congratulá-lo do seu novo filme “0650,” do qual ele estava muito orgulhoso, mas também estou zangada, porque ele está morto e eu estou viva. Eu sei que estou viva porque tenho protecção policial e ele não a tinha.

Estou zangada porque ele foi morto num assassinato ritual. Estou zangada porque ouço o responsável da justiça dizer que não tinha instruções para proteger Van Gogh. Estou zangada pela pobre desculpa de que Van Gogh não queria nenhuma protecção para ele, porque eu sei que pessoas em risco, políticos, são forçados a ter essa protecção, quer queiram, quer não, o que protege não só a as suas vidas, mas também a ordem pública e a segurança nacional.

Poderia a morte de Theo Van Gogh ter sido evitada? Havia indicações suficientes de que ele deveria ser protegido? Em 30 de Agosto, um dia depois das transmissões dos “Convidados do Verão”, incluindo a da “Submissão, Parte 1”, a foto de Theo Van Gogh foi colocada num site islamista debaixo da minha fotografia. A minha foto era comentada como a “A maligna e infiel Mortadda” e a dele “o maligno infiel Ribald”.

Vinte e dois investigadores foram postos a descobrir quem era o responsável.

Eu fiz uma queixa à polícia e o responsável foi condenado a nove meses de prisão. Foi Theo consultado por causa disto? Será que ninguém considerou que a vingança era iminente, não só por causa do filme, mas também porque um deles tinha sido preso?

Eu estou zangada porque sei que o assassino não está sozinho: ele é membro de uma rede de muçulmanos que estão profundamente embrenhados nas suas crenças, e que caminham pelas ruas com a intenção de matar pessoas inocentes. Além disso o assassino pode preparar o seu crime com o conhecimento de amigos e conhecidos, pessoas que por elas próprias não matariam outras pessoas, mas que não se importaram com a morte de Theo. Este facto faz do assassínio de Van Gogh, muito diferente das ameaças de activistas dos direitos dos animais a políticos, ou de cartas com balas enviadas para a polícia. Essas duas ameaças podem ser controladas. O terrorismo islâmico, tanto na Holanda como fora dela, consegue crescer e sobreviver porque está integrado num círculo maior de muçulmanos amigos. Estou zangada porque este facto nunca é completamente compreendido pelas pessoas responsáveis pela nossa segurança.

Sinto-me culpada quando abordei Theo com o script para o filme “Submissão”. E, agora, ele morreu por causa dele. Mas na fria luz da manhã, eu sei que só o assassino é culpado da sua morte.

Instintivamente, isso é-me confuso. Theo e eu discutimos profundamente as possíveis consequências do filme para ambos. Ele dizia: “Logo que estas considerações te dissuadam de exprimires a tua opinião, não é esse o fim da tua livre expressão? Isso é milho para a mó dos islamistas.”

Eu estava preparada para ir muito longe para que as pessoas se levantassem e notassem: as autoridades holandesas que têm de se aperceber que o Islão radical e os seus apoiantes se instalaram na Holanda; a população islamita, que deve aprender a ver as horríveis marcas de nascimento da sua própria religião.

A população islamita deve aperceber-se de que as suas desvantagens não são uma função ou consequência de uma crença fraca em Deus, ou de discriminação, como os radicais desejam que aconteça, mas em parte é a consequência das suas próprias acções. O tratamento do indivíduo, a posição social das mulheres, a criação de guetos como as escolas islâmicas, são esses os factores que explicam o atraso da comunidade islâmica em relação às outras.

Theo concordava comigo em todos estes pontos. À sua maneira, e como realizador de cinema, ele tentou, na medida do possível, não se isolar da juventude islâmica mas comunicar com ela.

Eu sinto-me culpada porque abusei da sua falta de medo, porque eu sei que qualquer um que critique a escritura sagrada, está num grande perigo. Um homem foi morto de uma maneira abominável, simplesmente por causa do que acreditava. Isto é relativamente novo na Holanda, mas nos países islâmicos é parte da vida de todos os dias.

Hoje, embora os extremistas ainda sejam uma pequena minoria entre os nossos concidadãos muçulmanos, a influência potencial dentro desse grupo é enorme.

Ayaan Hirsi Ali