Loading
24 de Dezembro, 2005 Carlos Esperança

Boas-festas

Voltar às origens na noite de consoada é a viagem marcada no calendário, imposta pelo hábito e repetida pela inércia. À medida que as coisas e os lugares se encaixam cada vez menos na memória mais intensamente os procuramos. Parte-se em busca do passado e teme-se a desilusão de não achar sinais. Mas volta-se sempre, quiçá com vontade de exumar memórias, de recuperar sonhos e afectos que nos fazem falta, como se no eterno regresso surgisse a fonte da juventude.

Todos os anos, quando Dezembro chega, o frio vem lembrar-nos a festa que se aproxima ao ritmo da nossa ansiedade, enquanto os apelos ao consumo nos seduzem, insinuando uma felicidade duradoura. Fazem-se compras sem ponderação e arquivam-se prendas à espera de destinatário. Os livros têm nesta época o lugar que mereciam durante o ano, viajam com as pessoas à espera de leitor, quedam-se em mãos que os afagam ou, simplesmente, arquivam-se no abandono da estante.

Depois de árduas discussões no seio dos casais decide-se o local da consoada em unânime contrariedade. Nunca durante o ano a diferença entre irmãos e cunhados ou pais e sogros se tornou tão nítida e fracturante.

A viagem é o regresso magoado aos locais e memórias de um tempo que já foi, por entre chuva miudinha e frio de rachar. Doem o ossos em intermináveis filas de trânsito antes de se ver iluminada a torre do campanário onde outrora soavam as horas de dias muito mais calmos.

Chega-se de noite e de mau humor com o vento gélido a arrefecer sorrisos compostos para a chegada e os quartos húmidos indiferentes aos nossos ossos e ao reumático.

A lareira é o destino e centro de um semicírculo de profundos afectos e sólidos rancores que se reúnem alinhados por ordem etária na casa dos mais velhos e são alimentados a filhós e bolos que líquidos capitosos ajudam a empurrar. É aí que se desembrulham as prendas embaladas em papel reluzente com laços artisticamente colados. Agradece-se com um sorriso de desprezo aquele presente desinteressante do parente que nos detesta. Fica-se deslumbrado com a oferta generosa que redime uma ofensa antiga e enternece-nos a simples presença de quem não pede desculpa por gostar de nós.

Recordam-se em silêncio os ausentes pela falta que fazem e a saudade que produzem e os presentes pelo incómodo que provocam e o fastio que acarretam.

Quase todos se empanturram na esperança de matar de vez a fome ancestral de gerações que permanece viva na memória de quem a herdou durante séculos. Gabam-se os pastéis de bacalhau recheados de batata a tresandar a óleo, a excelência do peru mal assado, a qualidade do polvo que saiu duro, repetindo-se discretamente a dose de bacalhau cozido, batatas e couves, regados com azeite de boa qualidade, numas merecidas tréguas ao bitoque e à pizza, enquanto se aguarda a panóplia de doces e frutos secos. São momentos para acumular prazer e peso enquanto a azia e os espasmos não devolvem o remorso e o incómodo.

Por uma noite repousam os guerreiros das batalhas adiadas do quotidiano, levam para o seio familiar uma ou outra intriga para não perderem o treino, cumprimentando-se com uma profusão de ósculos ora fraternos, ora de circunstância. E, por entre os votos canónicos de Boas Festas, recordam-se pequenos agravos e ruminam-se vinganças por umas palavras que não caíram bem, algum insulto durante a disputa do relógio de ouro do avô ou aquela terrina da Vista Alegre que espalharam a cizânia nas últimas partilhas.

Sobrevive do paganismo o festejo do solstício de Inverno. Fez dele a tradição judaico-cristã a festa da família. E quando a família se comporta como deve, a festa acontece e é um suave pretexto de encontros ansiados em volta de sabores que a memória guarda e de aromas que nos transportam à infância numa viagem carregada de afectos e saudade.

Que no dia certo haja festa em vossas casas, caros leitores.

Boas-festas, caros leitores.

(Publicado simultaneamente no «Ponte Europa»

23 de Dezembro, 2005 Carlos Esperança

O juiz decidiu

Como a Palmira assinalou no artigo «Neo-Criacionismo 0 – Ciência 1», nos EUA um juiz proibiu o ensino da teoria divina, considerando inconstitucional o criacionismo como alternativa ao ensino do evolucionismo.

Há quase século e meio, Darwin apresentou a teoria da evolução das espécies e reduziu a cacos o mito da criação, comum às três religiões monoteístas, mito que transformava os primórdios da reprodução em mero artesanato da olaria divina.

Deus gozava até então de enorme credibilidade e os seus padres de grande prestígio. A ciência feriu de morte a mitologia, debilitou a fé e pôs em risco os negócios religiosos.

Valeu a capacidade de adaptação dos tartufos.

Não é Deus que move as religiões, é o poder. Pouco importa aos padres que as pessoas da Santíssima Trindade sejam três ou trezentas, que os mandamentos sejam dez ou cem, que tenham sido dados a Moisés ou a Maomé, que os pecados se lavem com detergente ou com a confissão, que as missas sejam em vernáculo ou em latim.

É preciso que haja criancinhas para mergulhar em água benta, cristãos que estendam a língua à partícula com a sofreguidão com que nas cervejarias devoram tremoços, beatos que vão em peregrinação aos sítios onde poisa a Virgem, supersticiosos que comprem indulgências e governos que untem a máquina da fé com o óbolo do erário público.

A religião não é só o tóxico que envenena a mente, é o placebo que alimenta o ócio do clero e o proselitismo dos alcoviteiros do divino. E o Paraíso é apenas uma falsa empresa de apartamentos explorada por promitentes vendedores.

23 de Dezembro, 2005 Palmira Silva

Momentos de humor do ano

Um dos prémios vai para Bento XVI e a sua explicação, debitada no dia 8 de Dezembro, de que não é um maçador insuportável quem segue estritamente os ditames do Vaticano. Apropriando-se da bondade como exclusivo dos católicos que seguem à risca as anacrónicas e anti-natura emanações de Roma, o Papa afirmou que ser bom não é sinónimo de ser maçador e pediu às pessoas que rejeitem a ideia de que estão a perder algo se não pecarem.

Considerando que para a Igreja católica praticamente tudo é pecado, com especial ênfase no sexo que é sempre pecaminoso excepto o com fins procriativos dentro do casamento, como indicado abundantemente nas 10 páginas do novo catecismo sobre os «pecados sexuais», e se considerarmos que a liberdade é o pecado maior, acho deliciosa esta frase do Papa, pronunciada na ocasião:

«A suspeita emerge em nós que uma pessoa que não peca é, no fundo, um maçador; que algo falta na sua vida: a dimensão dramática de ser livre».

23 de Dezembro, 2005 Palmira Silva

Árvore cristã do ano

E o prémio vai para a árvore oferecida por uma organização anti-aborto do Kansas a um ginásio local, decorada da forma que considero mais reveladora do espírito cristão da época: meias azuis e cor-de-rosa com bonecos de plástico representando fetos, com rótulos que os identificavam «entre 11 e 12 semanas». Para a chantagem psicológica ser completa a árvore oferecia ainda cupões para panfletos (incluindo um sobre a pílula do dia seguinte) e vídeos da organização, com especial destaque para um que detalha os procedimentos envolvidos num aborto.

22 de Dezembro, 2005 Palmira Silva

De volta a 1633?


Agostinho de Hipona refutando os hereges, iluminura do século XIII, Morgan Library, New York

Quem pensa que os julgamentos por heresia são algo do passado e que o pedido de desculpas de João Paulo II pelo mui conhecido julgamento de Galileu indica que esse passado não se repetirá, está completamente enganado. Assim como está iludido quem acredita no discurso ecuménico da santa madre Igreja.

De facto, a diocese de San Bernardino, Califórnia do Sul, viveu há pouco mais de uma semana algo que os peritos indicam ser uma raridade na história dos Estados Unidos, um dos dois julgamentos por heresia da Igreja Católica neste país. Em ambos os casos os hereges em julgamento são dois ex-padres católicos (curiosamente da mesma diocese) que abandonaram a igreja em favor de movimentos católicos ecuménicos.

O padre agora julgado, Ned Reidy, que não nega as acusações que sob ele pendem, o facto de ter deixado a Igreja de Roma por outra religião e de advogar ensinamentos que violam a doutrina cristã, recusou participar da audiência que ele considera «medieval e totalmente não cristã» acrescentando «É como se a Inquisição tivesse voltado».

Mas não percebe certamente como no século XXI, o século da plena liberdade religiosa, é sujeito a um julgamento por heresia uma vez que a diocese de San Bernardino não tem qualquer jurisdição sobre ele ou a sua nova igreja, a Comunhão Ecuménica Católica. Aliás, Reidy foi excomungado automaticamente no momento em que aderiu a esta confissão católica «liberal», que, heresia máxima, não reconhece a infalibilidade papal, e diverge dos ditames do Vaticano em temas «fracturantes» como sejam o divórcio, contracepção, homossexualidade e celibato dos sacerdotes. Assim, esta igreja não só abençoa uniões homossexuais como ordena padres casados, divorciados, homossexuais para além de, horror dos horrores, mulheres!

De facto, as acusações de heresia (e cisma) ao ex-padre foram expressas numa carta do promotor de justiça da diocese, Stephen Osborn, que explicita entre as «ofensas contra os fiéis cristãos» e o ensino de «matéria contrária à lei divina e à lei universal da Igreja Católica» a recusa da Igreja Católica Ecuménica em aceitar a infalibilidade do Papa, a benção de uniões homossexuais e a ordenação de mulheres.

Não obstante Reidy, como evidenciado na página da paróquia ecuménica que preside, Pathfinder Community of the Risen Christ, afirmar que «Nós somos uma comunidade católica não romana» e pouco depois desta comunidade ter sido fundada a diocese de San Bernardino ter avisado os católicos locais por carta de que «sofreriam danos espirituais sérios» se participassem em qualquer actividade ecuménica, a diocese justifica a necessidade do julgamento para «clarificar oficialmente o seu estatuto dentro da Igreja». Pensar-se-ia que a excomunhão já o teria clarificado cabalmente…

Marc Balestrieri, o advogado que pediu a excomunhão por heresia de John Kerry quando este disputava a presidência dos Estados Unidos com G. W. Bush, congratula o bispo Gerald R. Barnes pela coragem e fibra moral demonstradas com este julgamento medieval. E espera que o seu exemplo seja seguido pelos seus colegas, ou seja, que se recupere essa prática tão salutar para a fé como o são os julgamentos por heresia.

22 de Dezembro, 2005 Palmira Silva

Doutrina ou interesse económico?

Dos Estados Unidos chega-nos a notícia que o arcebispo de St. Louis, Raymond Burke, excomungou os seis membros do conselho de direcção da igreja de St. Stanislaus Kostka e o padre polaco, Marek Bozek, que estes tinham contratado recentemente, na sequência de uma longa querela com o arcebispo que se recusava a nomear um padre para a paróquia após ter retirado os anteriores.

Na origem do conflito está simplesmente um problema de dinheiro já que graças a uma disposição de 1891, um ano após o estabelecimento da paróquia, quer a propriedade quer o controle financeiro desta igreja está nas mãos do conselho (leigo) de direcção. Desde que foi nomeado o arcebispo exige ser ele a a controlar financeiramente a paróquia, o que inclui a propriedade da igreja.

Bob Zabielski, um dos membros da direcção agora excomungados e que o arcebispo convidou a reconciliar-se com a igreja cedendo-lhe o controle da igreja e do dinheiro que movimenta, afirmou «Isto é apenas a última de uma série de acções vergonhosas que nos foram feitas nos últimos anos. Ele quer a propriedade e é isso, e ele usa todas as armas do seu arsenal».

A reacção dos paroquianos parece indicar que as ambições imobiliárias do arcebispo não vão ter sucesso. Alguns paroquianos expressam a sua admiração pelo padre Bozek que segundo eles se sacrificou para garantir que a paróquia tinha o padre há mais de um ano negado pelo arcebispo. Porque, como afirmou um paroquiano, Stan Rozanski, as excomunhões eram «algo que sabíamos ir acontecer». Mas afirmou-se ainda espantado por uma situação que começou como «uma disputa de propriedade» ter terminado com excomunhão.

«Este é mais um exemplo das tácticas medievais usadas contra pessoas que apenas tentam ser bons católicos. Ele [o arcebispo] poderia ter excomungado toda a paróquia… Nós não vamos mudar».

22 de Dezembro, 2005 lrodrigues

Uma Escolha Consciente

Segundo a «Agência Ecclesia» o Papa Bento XVI decidiu nesta quadra de Natal inspirar-se em Santo Agostinho.

De facto, o Papa elegeu uma exortação de Santo Agostinho para os votos do primeiro Natal do seu pontificado.
Pelo seu próprio punho, o Papa escreveu em latim:
«Expergiscere, homo: quia pro te Deus factus est homo»
Que é como quem diz: «Desperta, homem: porque, por ti, Deus se fez homem».
Mas quem foi este tal de Santo Agostinho?
Aurelius Augustinus, que viveu entre os anos 354 e 430 foi considerado um «Doutor da Igreja» e deixou uma obra vastíssima entre livros, cartas e sermões.
Sem sermos exaustivos, respiguemos (principalmente da Wikipedia) apenas alguns aspectos da biografia deste brilhante cristão, até para tentarmos compreender de onde vem a admiração que, pelos vistos, por ele sente o Santo Padre, o Papa Bento XVI.
Para já, Santo Agostinho é considerado pelos protestantes evangélicos a fonte teológica inspiradora da Reforma.
Não obstante, este santo homem começou por ser um fervoroso adepto do Maniqueísmo, uma espécie de mistura explosiva de Zoroastro com Jesus Cristo. Só aos 33 anos, sob a nefasta influência de Santo Ambrósio, bispo de Milão, se converteu ao cristianismo.
Depois era um confesso tarado sexual e, como se não bastasse um irredutível pedófilo.
Enquanto proclamava a sua máxima preferida «dêem-me a castidade, mas por enquanto ainda não», Santo Agostinho manteve por mais de uma década uma concubina de tenra idade, e que lhe deu um filho.
Mas que não hesitou em abandonar à sua sorte para fazer um casamento de sociedade.
Uma vez mais teve de esperar dois anos para que a sua noiva tivesse idade legal para casar.
Foi ordenado padre em 391. É nomeado bispo assistente de Hipona cinco anos depois, abandona mais uma mulher e converte-se então ao celibato.
Coincidência ou não, juntou-se com um grupo de amigos, criou uma fundação monástica em Tagaste e fechou-se com eles lá dentro.
Deve-se a Santo Agostinho a adopção oficial pelo cristianismo ocidental da ideia de «pecado original» e também do conceito da «predestinação divina», tão do agrado de tantos teólogos ainda hoje.
Foi também a sua hábil distinção teórica entre «magia» e «milagres» que durante séculos sustentou ideologicamente a luta da Igreja contra o paganismo e a bruxaria.
Santo Agostinho foi também um feroz anti-semita, defendendo a dispersão dos judeus pelo mundo.
Separou habilmente a origem judaica de Jesus Cristo do judaísmo de um modo geral porque, dizia, os judeus não acreditavam que Cristo fosse o Messias.
As suas teorias serviram de base ideológica para inúmeras perseguições a judeus, que considerava irrecuperáveis inimigos da Igreja Cristã.
Mas foi principalmente a sua luta sem quartel contra os Donatistas que mais fama granjeou a Santo Agostinho.
O Donatismo foi uma doutrina religiosa cristã que defendia que os sacramentos só eram válidos se quem os ministrava era digno de o fazer.
Pelo contrário a religião católica defende que os sacramentos valem por si, seja o ministrante (geralmente um sacerdote) um indivíduo corrupto ou não.
É então que este santo homem defende pura e simplesmente o uso da força contra os donatistas e a sua completa aniquilação, dizendo:
«Porque não deveria a Igreja usar da força para compelir seus filhos perdidos a retornar, se os filhos perdidos compelem outros à sua própria destruição?»
Em suma:
É neste homem que o Papa Bento XVI resolveu inspirar-se neste aniversário do nascimento do Deus dos cristãos.
Um homem que além de tarado sexual, pedófilo e anti-semita, defendia o assassinato e a aniquilação física de quem não perfilhava as suas ideias religiosas.
Uma escolha certamente muito consciente.
E que, por isso mesmo, é bem capaz de dizer muito de Bento XVI…

(Publicado simultaneamente no «Random Precision»)

22 de Dezembro, 2005 Carlos Esperança

Mensagem de um ateu

Dirijo-me a todos os ateus e ateias, aos crentes de qualquer religião, aos agnósticos, aos homens e mulheres do meu país, independentemente da cor da pele, do estrato social e das opções sexuais. Mas dirijo-me apenas a todos os que quiserem ler este texto.

Faço-o sem a arrogância dos padres que enviam a bênção a quem não a solicita, sem a prepotência dos bispos que julgam que todos lhes devem vassalagem, sem uma câmara de televisão a conferir importância pública ao que tem relevância particular.

Sem vestes talares nem báculo, mitra, cruz, ódio ou ressentimento, sem fé no divino ou crença em milagres, sem dogmas nem outras aldrabices, saúdo os que me estimam e os adversários.

Não o faço por ser a época em que os pagãos celebravam o solstício de Inverno, que os cristãos aproveitaram para datar o nascimento de Cristo. A minha mensagem não fala do Céu, não exorta à castidade, não é moralista nem impõe quaisquer mandamentos.

Exorto-vos, caros leitores, a rejeitar o charlatanismo e a superstição mas, se isso vos faz felizes, continuem a viajar de joelhos à volta de uma igreja, a fazer o circuito das velas acesas, a contar ao padre o que não contam ao irmão ou companheiro/a e a ir a Fátima.

Desejo o melhor para todos os que referi. Cultivem o prazer de ler, ouvir música, ir ao teatro, ver cinema, enfim, gozem os prazeres da cultura. Mas, se a desgraça vos bateu à porta e uma hóstia vos alivia e se acreditam em milagres, rezem o terço, oiçam missas, beijem a pilinha do menino Jesus, persignem-se e peçam a bênção ao padre.

Ninguém tem direito a roubar a felicidade. Se a abstinência satisfaz os castos, se o jejum agrada ao masoquista e a procissão diverte o créu, não se poupem a exóticas distracções, não faltem à missa, à procissão ou à novena. Desobriguem-se e comunguem e sintam-se melhor da obstipação e das lombrigas.

O ateísmo é um caminho difícil. Ensina que não há Inferno mas tira-vos a consolação do Paraíso. É por isso que esta mensagem não vos oferece uma ideologia, um sistema filosófico ou a vida eterna.

Quero que sejam afortunados; que pensem como entenderem, sem receio de castigos; que consigam mudar de opinião sem medo das labaredas; que possam baldar-se à missa sem repreensões; que façam amor sem cismarem na eterna perdição.

Sejam felizes.

21 de Dezembro, 2005 Ricardo Alves

O regresso da luz está garantido

No hemisfério norte do nosso planeta(*), o dia de hoje será o mais curto do ano, e a noite será a mais longa do ano. A repetição cíclica destas ocorrências, desde que a humanidade dela se apercebeu, induziu muitos povos a assinalarem esta época do ano com festividades várias. E compreende-se porquê: a progressiva diminuição dos períodos diários de luz causa naturalmente angústia, e causa-la-ia ainda mais em pessoas mais directamente dependentes da natureza para a sua alimentação e aquecimento…

Em locais e épocas históricas em que a humanidade não dispunha, ainda, dos conhecimentos científicos necessários para compreender o porquê do solstício de inverno, os deuses da natureza ou os seus sucessores monoteístas (inventados mais tarde) eram invocados nesta época, como forma de assegurar que o Sol (que parecia estar prestes a cair no horizonte) se voltaria a erguer, e que a luz voltaria.

E no entanto, hoje não sabemos através somente da experiência transmitida pelas gerações anteriores que a luz voltará. Sabemo-lo de ciência certa: que os dias voltarão a alargar-se e as noites a encurtarem-se, até ao final da Primavera. Não é necessário invocar um «deus» qualquer ou celebrar o seu suposto nascimento, repetir frases de livros antigos ou sacrificar animais: o regresso da luz é um facto da natureza que a ciência nos assegura que acontecerá a partir de hoje e que se repetirá ano após ano. Só deixaria de se verificar se o eixo de rotação da Terra se equilibrasse subitamente no plano da translação em volta do Sol, ou se, mais dramaticamente, o nosso planeta saísse da sua órbita ou o Sol se apagasse rapidamente. Sabemos científicamente que nenhum destes acontecimentos se produzirá nos anos mais próximos, e que, de qualquer forma, os rituais religiosos não interferem neles. Portanto, com rituais da época ou sem eles, a luz que nestes dias escasseia e que durante tão poucas horas nos aquece os ossos não nos faltará muito em breve.
Com as certezas da ciência, desejo-vos boas festas.

(*) Os cerca de 25% de leitores do Diário Ateísta que vivem no hemisfério sul farão o favor de, durante a leitura deste texto, se imaginarem seis meses mais à frente (ou mais atrás).