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15 de Abril, 2006 Palmira Silva

Segurança nacional baseada na fé

Na altura em que descobri um artigo do National Catholic Reporter em que é comentado um estudo do Pew Research Center que revela que os americanos seculares (grupo que inclui ateístas e agnósticos) são os que mais desaprovam o uso de tortura – em contraste os católicos, 72%, são os que mais o consideram justificado – leio igualmente que a Casa Branca estabeleceu um Centro para Iniciativas Baseadas na Fé no Departamento de Segurança Nacional.

Entre as tarefas assacadas aos crentes que integrarão este Centro está «o desenvolvimento de inovadores programas piloto e de demonstração para aumentar a participação de organizações baseadas na fé em iniciativas Federais assim como estaduais e locais». Certamente que os americanos se sentirão mais seguros sabendo que uma série de pessoas pagas pelos impostos de todos rezarão fervorosamente no caso de alguma calamidade, natural ou outra, atingir os Estados Unidos.

Entretanto, e igualmente no mês de Março, Gregg Martin foi elevado a general brigadeiro. O general Martin é certamente muito conhecido pelo seu trabalho clássico, «Jesus, the Strategic Leader», que lhe valeu uma progressão meteórica na carreira militar.

Menos sorte teve Peter Smith, um fotógrafo free lance, que foi despedido de um jornal católico de Boston, para o qual trabalhava há 10 anos. Smith cometeu uma heresia inadmissível: forneceu ao Boston Herald uma foto do juiz do Supremo Tribunal, o Opus Dei Antonin Scalia, a fazer um gesto rude com os dedos. O gesto foi dirigido aos repórteres que o interrogavam sobre o possível questionamento da sua imparcialidade em decidir assuntos que envolvam a separação da Igreja e do Estado à saída da missa na Catedral Holy Cross. O Boston Herald tinha publicado previamente a notícia sem confirmação visual e o seu corpo editorial tinha sido acusado pelo juíz de «ver demasiados episódios dos Sopranos». A foto que valeu o despedimento com «justa causa» de Peter Smith deu razão ao jornal

Scalia é o grande paladino do direito à vida de óvulos e espermatozóides que nega qualquer direito aos detidos em Guantanamo, nomeadamente considera não terem o direito a serem julgados em tribunais civis:

«Estrangeiros, em países estrangeiros, não têm qualquer direito ao abrigo da Constituição Americana»

15 de Abril, 2006 Palmira Silva

Ah! Rio de me ver tão bela neste espelho


Uma professora de música, Tresa Waggoner, de Bennett, uma pequena cidade do Colorado, cerca de 54 km a leste de Denver, foi suspensa em Janeiro último por ter mostrado aos respectivos alunos um vídeo da ópera Fausto.

Tresa, uma ex-cantora de ópera, resolveu mostrar aos alunos excertos da referida ópera numa preparação para o espectáculo que os cantores da Opera Colorado iam executar a seu convite na escola primária de Bennett.

Alguns pais queixaram-se que os seus filhos ficaram «traumatizados» depois de verem e ouvirem a famosa soprano Joan Sutherland e marionetas cantarem o Fausto de Goethe na versão de Charles François Gounod. Os devotos pais acusaram ainda Tresa de ser uma adoradora do diabo e uma lésbica que promovia a homossexualidade aos alunos.

Em resposta às queixas dos pais, o superintendente George Sauter suspendeu Tresa até Agosto, data em que o seu contrato terminava, informando-a de que não seria readmitida. Tresa procura agora emprego fora de tão piedosa e temente a Deus comunidade.

A pressão de devotos cristãos foi igualmente a razão do pedido de demissão da professora de teatro de uma escola secundária de Fulton, no estado de Missouri, o tal que agora tem o cristianismo como religião oficial, que preferiu demitir-se a ser despedida depois de membros da Callaway Christian Church se terem carpido do conteúdo das peças que estavam sendo encenadas nas suas aulas. Os alunos de DeVore iriam apresentar a peça «The crucible» (ou As Bruxas de Salém), de Arthur Miller, um drama que retrata a caça às bruxas no século XVII.

15 de Abril, 2006 Palmira Silva

1506-2006: O massacre de Lisboa


«No mosteiro de São Domingos da dita cidade estava uma capela a que chamava de Jesus, e nela um crucifixo, em que foi então visto um sinal, a que davam cor de milagre, com quanto os que na igreja se acharam julgavam ser o contrário dos quais um cristão-novo disse que lhe parecia uma candeia acesa que estava posta no lado da imagem de Jesus, o que ouvindo alguns homens baixos o tiraram pelos cabelos de arrasto para fora da igreja, e o mataram, e queimaram logo o corpo no Rossio. Ao qual alvoroço acudiu muito povo, a quem um frade fez uma pregação convocando-os contra os cristãos-novos, após o que saíram dois frades do mosteiro, com um crucifixo nas mãos bradando, heresia, heresia,
(…)
tirando-os delas de arrasto pelas ruas, com seus filhos, mulheres, e filhas, os lançavam de mistura vivos e mortos nas fogueiras, sem nenhuma piedade, e era tamanha a crueza que até nos meninos, e nas crianças que estavam no berço a executavam, tomando-os pelas pernas fendendo-os em pedaços, e esborrachando-os de arremesso nas paredes.»

Damião de Góis in «Chronica do Felicissimo Rey D. Emanuel da Gloriosa Memória».

O Nuno Guerreiro do excelente «Rua da Judiaria» recorda numa série de posts detalhes de um massacre que muitos prefeririam não fosse recordado.

Um massacre que fez mais de 4 mil mortos – anussim, judeus portugueses, homens, mulheres e crianças, assassinados em três dias sangrentos, 19, 20 e 21 de Abril de 1506.

Eu pessoalmente respondo ao repto lançado pelo Nuno e dia 19 de Abril podem encontrar-me no Rossio a acender uma vela simbólica para recordar as vítimas da intolerância religiosa. Uma vela completamente ateísta, uma vela de defesa da memória.

Porque também considero ser imprescíndivel «mostrar – provar mesmo – a necessidade absoluta e irredutível da memória».

14 de Abril, 2006 Palmira Silva

Popetown: dois pesos, duas medidas

Aquela que é considerada «a mais hilariante série televisiva dos últimos tempos», Popetown, estreia no próximo dia 3 de Maio na MTV germânica entre um coro de protestos e ameaças de procedimentos legais do Comité Central dos Católicos Alemães (ZdK) e da Conferencia Episcopal Alemã (CEA) .

A polémica série de desenhos animados protagonizada pelo Papa Nicholas, um pontífice «louco e excêntrico» de 77 anos, fruto da colaboração entre a BBC3 e o Channel X, nunca passou no Reino Unido devido à pressão de grupos católicos.

Como seria expectável, foi despoletada uma cruzada na Alemanha contra a série que incluiu, como referiu o Carlos, o anúncio respectivo. A Conferencia Episcopal Alemã (CEA) considera o anúncio da MTV nas revistas de programação televisiva uma provocação ultrajante aos cristãos, opinião ecoada pelo ZdK que acrescenta que o anúncio «arrasta a fé cristã na lama».

Mais um caso em que se confirma que a defesa da liberdade de expressão e os protestos contra as leis da blasfémia por parte dos cristãos em geral e dos católicos em particular se restringem aos países em que o cristianismo é minoritário. Nos países onde são maioritários já consideram perfeitamente legítimo exigir «parem de pisar os sentimentos religiosos dos cristãos». E ululam ser um «ataque directo à crença cristã» um anúncio tão inócuo (e divertido) como o reproduzido.

14 de Abril, 2006 Palmira Silva

Eu também concordo com o arcebispo

Como foi indicado pelo Ricardo Alves, Lawrence Saldanha, arcebispo católico de Lahore, lidera a campanha pela abolição do delito de blasfémia no Paquistão. O arcebispo, que preside também à Conferência Episcopal católica do Paquistão, defende a revogação dos preceitos B e C do artigo 295º do Código Penal paquistanês, que criminalizam a crítica do Corão e de Maomé, respectivamente.

Este artigo, introduzido em 1988, tem sido utilizado como desculpa para perseguir cristãos neste país, queimar igrejas e assassinar blasfemos, bastando para isso que se ululem acusações de blasfémia e se produza um Corão «vandalizado».

O caso mais recente de blasfémia é uma paquistanesa cristã, Naseem Bibi, descrita como tendo atraso mental, que foi acusada de vandalizar uma imagem da Kabah, o templo sagrado do Islão na Arábia Saudita. A acusada, confinada á solitária e sem direito a fiança, aguarda julgamento em completo isolamento. O marido e os filhos foram forçados a sair de casa com medo de retaliação por parte de extremistas muçulmanos.

Esperemos que a história de Naseem não termine como a de uma sua homónima igualmente acusada de blasfémia, que morreu na cadeia em 2003, enquanto aguardava julgamento.

A Comissão de Direitos Humanos do Paquistão manifestou então a sua preocupação pelo número elevado de acusados de blasfémia que morriam nas prisões em circunstâncias no mínimo suspeitas, quando não configuravam claramente assassinatos.

Para a minha moral ateísta e humanista criminalizar a blasfémia é uma abominação comparável a outras abominações do passado, sancionadas e defendidas pelas religiões, como seja a escravatura. Aliás o próprio conceito de blasfémia é em si uma abominação anacrónica, que nesta altura e no rescaldo da guerra dos cartoons, ameaça as próprias fundações da nossa civilização ocidental.

Mas a Igreja Católica que tanto se indigna com as leis da blasfémia em locais onde é minoritária, carpindo a alto e bom som os «mártires» da intolerância alheia, nos países onde é maioritária clama que «O respeito pelo sagrado é algo que a cultura não pode pôr em questão, mesmo em nome da liberdade».

Cultura democrática assente na liberdade e respeito pelos direitos humanos, que incluem o direito à blasfémia, e cultura democrática que segundo Ratzinger é um erro que nos conduziu ao «abismo» actual. Aliás, opinião que os católicos presentes no vergonhoso Prós& Contras de segunda-feira repisaram à exaustão (a propósito do programa, recomendo vivamente este post). Segundo o nosso cavaleiro da pérola redonda, numa prestação que ultrapassou todos os limites do decoro, paladino da moral e bons costumes que respeita os terroristas que chacinam infiéis em nome da religião, a suposta decadência europeia deve-se exactamente aos princípios básicos da democracia e à laicidade.

Apenas a laicidade e concomitante liberdade de expressão garantem a liberdade religiosa de todos, no Paquistão ou em qualquer local do mundo. Liberdade de expressão e laicidade em que assestam as baterias dos fundamentalistas de todas as religiões nos países em que são maioritários e que incoerentemente, como tudo nas religiões, defendem nos países onde são minoritários!

13 de Abril, 2006 Palmira Silva

Poenitentiale Ratzinger

O papado de Ratzinger tem sido pautado por um crescendo de fundamentalismo que passa pela negação crescente do concílio Vaticano II e pela recuperação das praxis mais anacrónicas da já de si anacrónica ICAR. A última, que nos remete aos tempos tão elogiados pelo actual e último papas, a era gloriosa da Cristandade, tem a ver com a recuperação da celebração da penitência na semana dita santa.

Na realidade, esta semana «santa» foi marcada por uma série de declarações que isoladamente passariam despercebidas entre as profusas banalidades habituais emanadas da Santa Sé mas que vistas globalmente indicam inequivocamente o rumo obscurantista traçado por Ratzinger.

Assim, num claro recado aos católicos ditos «liberais» o Vaticano lembrou que «Não há Teologia católica» sem aceitação do Magistério da Igreja – isto é que ser católico implica a subordinação total aos ditames do Vaticano e é heresia pensar temas de religião pela própria cabeça. Reforçando a mensagem aos jovens de Ratzinger para que estes rejeitem o secularismo e aquilo a que chamou «religião faça você mesmo».

Por seu lado o representante-mor do Vaticano local adverte os católicos portugueses para os perigos da ciência e da análise racional, destacando que «os discípulos de Cristo não podem cair nesta tentação [usar a razão]».

Como confirmado pelo arcebispo Piero Marini, mestre de celebrações litúrgicas pontifícias, a mais recente adição às práticas ICARianas é um rito que era tradicional em Roma até ao Renascimento, abandonado quando as teses obscurantistas tão queridas à santa madre igreja, nomeadamente as de Bernardo de Claraval (ou Clairvaux) no século XII, foram destronadas e deixou de ser heresia o novamente execrado uso da razão.

Assim, pensar pela própria cabeça continua anátema para a Igreja de Roma que, pela voz do cardeal americano James Francis Stafford, o penitenciário-mor do Vaticano, introduziu três novos pecados no léxico pecaminoso dos católicos. Três pecados que tentam obstar a que a era da informação trespasse as idiotices da mitologia cristã permitindo assim que os crentes permaneçam no estado de santa ignorância preferido pela Igreja e pelo actual Papa, que quer os católicos longe da influência nefasta de intelectuais.

Constitui então pecado para um católico manter-se informado ou procurar informação, mais concretamente são pecados o excesso de Internet, de televisão e de jornais (em que excesso é definido em relação ao tempo que se passa a ler a Bíblia) . Aliás, a penitência agora aconselhada pela Igreja Católica, para qualquer pecado, é a leitura da Bíblia que aparentemente para os totalitários do Vaticano contém toda a informação necessária a qualquer crente.

Enfim, nada que não tivesse sido previsto há quasi um ano nestas páginas:«Direi mesmo que o dia de hoje, 19 de Abril de 2005, pode constituir um marco para um retrocesso civilizacional que será muito difícil de recuperar». Os últimos desenvolvimentos confirmam os meus receios…

13 de Abril, 2006 Carlos Esperança

O Sr. Teodoro da Madeira

Na Madeira, vai realizar-se o enterro do Senhor Jesus, funeral sem morto, uma paródia que se repete todos os anos, com o ar sorumbático dos gatos-pingados do costume e as orações que se repetem.

Apesar do funeral, o pessoal calejado nestas encenações já sabe que no Domingo pode mudar o ar sorumbático e pôr um sorriso domingueiro a que as vitualhas acrescentarão sinergia.

O morto é a fingir, tal como a ressurreição, um espectáculo encenado para manter a fé, entreter os crentes, pôr as sotainas em movimento e o bispo a passear o báculo, abanar a mitra, exibir o anel de brilhantes à fúria osculatória dos beatos e viajar debaixo do pálio com os vassalos a içar as varas.

Estas festas são um hábito sofrido que os proxenetas do morto a fingir têm o direito de viver em angústia mística até ao delírio alucinado da ressurreição do artista ausente.

Grave é a vocação totalitária do bispo, dos padres e outros parasitas de Deus que acham a sua dor, pela morte de Cristo, de sofrimento colectivo obrigatório, incompatível com festas profanas.

Vêem na música a heresia capaz de pôr de mau humor o cadáver. Consideram a alegria juvenil um pecado. A violência da fé não consente a liberdade da festa. Ainda que fosse verdadeira a morte, mesmo que a alegria dos jovens denotasse mau gosto, era um direito de cidadania.

As ameaças, intimidações e provocações à realização do «Madeira Paradise Dance Tour 2006» são uma manifestação de intolerância e de vocação totalitária.

Os apaniguados do bispo, avençados da hóstia e da procissão, têm a marca genética dos velhos padres rurais com um zero na cabeça que Guerra Junqueiro apelidava «a marca do fabricante».

Espera-se que Deus e os jovens não se envolvam em escaramuças. Dos padres sabemos que virá a gasolina que apaga os fogos – uma velha vocação pirómana de sabor cristão.

13 de Abril, 2006 pfontela

As virtudes do catolicismo liberal

Uma verdadeira cultura política independente e autónoma
Perceber o papel espiritual da Igreja
Tolerância pela liberdade de expressão, mesmo quando envolve crítica à religião
Uso de honestidade intelectual
Não usar a esfera religiosa para poder influenciar a política
Responsabilidade e seriedade dentro da actual situação global

O catolicismo liberal, tal como a ideia de catolicismo moderno, é um conceito sem sentido. A estrutura da igreja não está desenhada para seres humanos autónomos, a lógica que permeia a organização é a de obedecer ou calar. O próprio Ratzinger foi um perito durante os anos que esteve à frente da inquisição reformada em suprimir vozes dissidentes (proibindo a publicação de certos autores ou minando carreiras académicas).

Isto quer dizer que não existem católicos que pensem e sejam sérios no seu civismo? Não. O que quer dizer é que essas pessoas não são muito ortodoxas e com o rumo que as coisas tomam (o regresso ao passado) arriscam-se seriamente a não ter um lugar à mesa. O que espero é que os verdadeiros católicos progressistas (em oposição aos publicistas do “regime”) se apercebam que estão a servir de relações públicas para uma organização que não os representa e que promove activamente a antítese de todos os valores progressistas e liberais.