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22 de Julho, 2006 Carlos Esperança

Gianmario Roveraro, membro do Opus Dei, encontrado morto em Parma

Gianmario Roveraro é o primeiro banqueiro encontrado morto, em situação misteriosa, depois do escândalo do Banco Ambrosiano.

O banqueiro italiano era membro do Opus Dei e esteve envolvido no maior escândalo financeiro europeu – a falência da Parmalat -, que deixou um défice de 14 biliões de euros e estava a ser investigado pela justiça de Parma por « formação de quadrilha com fins de falência fraudulenta».

No passado dia 5, após uma reunião do Opus Dei, em que participou, desapareceu misteriosamente a caminho de casa e foi encontrado morto esta sexta-feira.

A imprensa anunciou que, antes do desaparecimento, telefonou à esposa e depois à secretária para pedir que procedessem à transferência de um milhão de euros para «fechar um assunto na Áustria».

22 de Julho, 2006 Ricardo Alves

Comunicado da ARL

Protocolo de Estado… e não só!

  1. A Associação Cívica República e Laicidade (R&L) congratula-se com a recente aprovação, em comissão parlamentar, da «Lei do Protocolo de Estado», entendendo que tal norma vem clarificar — de vez, espera-se — um dos aspectos da tradução prática do princípio constitucional republicano que estabelece que o Estado e as Igrejas devem ser/estar devidamente (laicamente) separados.

  2. A iniciativa legislativa que aí conduziu terá, aparentemente, surgido no seguimento ao «reparo» que a Associação R&L tornou público depois da cerimónia de tomada de posse do actual Presidente da República, cerimónia essa onde o Cardeal de Lisboa foi protocolarmente sentado junto dos ex-Presidentes da República.

  3. Lamentavelmente, porém, a Associação R&L constata também que o «Protocolo de Estado», agora em vias de definição legal, ainda salvaguarda a possibilidade da atribuição de lugares de destaque a representantes de instituições religiosas nas cerimónias públicas do Estado, fazendo depender o seu «ordenamento protocolar» da respectiva «representatividade de implantação» (?)…

  4. A esse propósito a Associação R&L faz notar que ao Estado, desejavelmente incompetente em matérias de convicção por força da sua laicidade, deverá obviamente estar vedada a avaliação dessa mesma representatividade.

    A bem da República.

Luis Mateus (Presidente da Direcção da Associação República e Laicidade)

Ricardo Alves (Secretário da Direcção da Associação República e Laicidade)

Comunicado enviado à imprensa no dia 20 de Julho de 2006.

21 de Julho, 2006 Carlos Esperança

As religiões ainda resistem

As religiões vivem, no estertor, uma orgia de ódio conduzida pela demência do clero. Deus anda por aí, em sonhos místicos dos crentes e na raiva que a liberdade acorda.

Há um velho demente a quem chamam Jeová à espera de ser internado numa clínica do Paraíso, um Cristo ressuscitado, em corpo e alma, a precisar de casa e da companhia de Madalena e um defunto pastor de camelos a aguardar que lhe montem a tenda e que os proxenetas se ocupem de lhe fornecer virgens em vez de se dedicarem ao suicídio.

Os livros sagrados são excelentes para equilibrar uma mesa a que se partiu a perna, para nivelar um sofá em chão oblíquo ou fornecer folhas para acudir a um incréu que as salmonelas puseram em apuros. Também os salmos e os versículos podem ser úteis para introduzir nos sapatos, durante o Verão, para evitar que se deformem.

Infelizmente há profissionais que têm por missão, ler, divulgar e impor aqueles textos, que podiam ter feito o prestígio de uma pitonisa ou inspirado romances de cavalaria, como se fossem verdade reveladas por entes superiores.

Nas igrejas poisam virgens de porcelana, ricamente ataviadas e com coroas de ouro a segurar-lhe a testa, como aros nas aduelas em barris de vinho. Os santos jazem em peanhas nos templos desertos onde abundam Cristos dependurados em cruzes de ferro ou de madeira com ar de terem pertencido à Máfia. As velas dão um ar lúgubre ao local e os templos parecem salas de anatomia de uma universidade extinta.

É deprimente o abandono dos ícones, que passaram de objectos de adoração em imponentes catedrais para mercadorias em saldo, abandonadas em amplos espaços que parecem lojas dos trezentos. Cada vez há menos gente a entrar nas igrejas, substituídas pelas discotecas onde a piedade dá lugar à música, à dança e ao despertar dos sentidos.

No Islão, Deus ainda vive, ligado à máquina da fé pela violência dos clérigos e o medo dos crentes, alimentado pela miséria e a ociosidade que a explosão demográfica produz, perpetuado pelo nacionalismo e pelo ódio.

Deus é uma herança a que urge renunciar para que a paz seja possível.

21 de Julho, 2006 pfontela

Mais amor cristão

Como já venho a afimar há bastante tempo a expressão “politicamente correcto” é um perfeito disparate. É uma expressão que não tem qualquer significado no mundo real já que serve apenas para demonizar um conjunto de ideias ao mesmo tempo que se quer aparecer como grande rebelde que não tem medo do papão. É essencialmente uma forma intelectualmente cobarde de interpretar a realidade já que recusa a análise, a classificação correcta dos temas e o debate construtivo.

Sendo uma expressão que se baseia num conceito de medo e em parte na teoria da conspiração – sim porque ser politicamente incorrecto significa irritar os maus da fita, que são tão maus e tão poderosos que nunca os conseguem calar… – é perfeitamente natural que esta tenha sido a linguagem adoptada pelos partidos conservadores europeus que desde 1789 nao fazem outra coisa que apelar ao medo e à reacção (à falta de valores próprios que sejam tolerantes). Não é pois de estranhar que seja pela boca de Maria José Nogueira Pinto (porta voz em part time para o PP) que se oiçam coisas deste género.

Como sempre os conservadores têm como objectivo político obscuro: o legitimar de todas as formas possíveis os seus ódios ancestrais de estimação e é neste enquadramento que Nogueira Pinto se queixa amargamente que o cidadão comum (da sua ala política suponho) nao se sente confortável em dizer as “verdades”, que o politicamente correcto os impede serem perfeitamente honestos. Suponho que lhe deve incomodar que já não se considere aceitável numa sociedade civilizada uma discriminacao racista ou por orientação sexual (veja-se nestes exemplos a completa perversidade do politicamente correcto! Qualquer dia vão dizer que todos os cidadãos têm direito iguais perante a lei!). Aliás quero aqui dizer que acho de uma grande coragem que Nogueira Pinto (e a Igreja que representa) ataque grupos pouco ou nada representados politcamente e que sofrem na pele todos os dias a discriminação gerada pelo seu “amor” cristão.

Depois movemo-nos para o tema central do ataque de Nogueira Pinto: a defesa do catolicismo como grande moralidade. Essencialmente o que incomoda todos os conservadores é que se reconheçam outros tipos de famílias, em especial as monoparentais e as homossexuais. Ainda se fala em perversão das instituições básicas e mais uma mão cheia de trivialidades debitadas nas últimas intervenções de Ratzinger.

O que esta senhora quer fazer é o que a hierarquia católica deseja mas já não pode fazer directamente: acabar com a diversidade! Que nao hajam confusões, ela não está a defender o seu modelo de família, está sim a atacar todos os outros. A ICAR ambiciona um monopólio das definicões, da definicão de fé, da definicão de amor, da definicão de afectos, etc, porque percebe que nas definicões está a chave para o controlo da legislacão (é uma questão de lógica bastante simples, se eu controlo as premissas praticamente estou a ditar a conclusão).

A demagogia deste tipo de discurso é tão óbvia que chega a ofender os olhos daqueles que a contemplam. Fala-se primeiro de uma espécie de ditadura social que “oprime” as suas opiniões e depois passa-se a defender um modelo social como hegemónico senão mesmo único. A realidade é que os diferentes tipos de família não precisam nem de protecção nem de censura social, a família tradicional continuará a exisitir se continuar a preencher uma necessidade humana (mas pelo facto de sastisfazer as necessidades de alguns não quer dizer que satisfaça as de todos, daí a necessidade de diversidade).

Gostava de concluir reformulando uma das frases de Nogueira Pinto; ela afirma que a Europa atravessa uma profunda crise de valores e cultura mas eu digo-lhe a ela que o que está em profunda crise é o catolicismo ultramontano.

20 de Julho, 2006 Ricardo Alves

O protocolo de Estado e as implantações presumíveis

Foi ontem aprovada em comissão parlamentar a lei de protocolo de Estado. O PS cedeu no articulado final, que terá a seguinte passagem: «as autoridades religiosas, quando convidadas para cerimónias oficiais, recebem o tratamento adequado à dignidade e representatividade das funções que exercem, ordenando-se conforme a respectiva implantação na sociedade portuguesa». Só a inclusão da ordenação segundo a «implantação» satisfez o membro do Opus Dei Mota Amaral, que ao longo de todo o processo legislativo se bateu valorosamente por um lugar de destaque para a confissão religiosa a que pertence.

Sendo clarificador e positivo que o Cardeal Patriarca de Lisboa da ICAR deixe de ter um lugar específico no protocolo de um Estado separado dessa e de outras comunidades religiosas, a avaliação da «implantação» que as «autoridades religiosas» representam anuncia problemas novos que se me afiguram irresolúveis. Em primeiro lugar, as convicções religiosas são individuais, íntimas e inconstantes. Afirmar que, num dado momento, a autoridade religiosa A representa a convicção religiosa de mais cidadãos do que a autoridade religiosa B, é uma suposição que para ser confirmada exigiria controlar os pensamentos de dez milhões de pessoas. Em segundo lugar, para além da impossibilidade física de saber o que pensam as pessoas existe a interdição constitucional de lhes perguntar («ninguém pode ser perguntado por qualquer autoridade acerca das suas convicções ou prática religiosa»). Finalmente, não podendo inquirir os cidadãos, o Estado terá que confiar às ditas autoridades a avaliação sincera e exacta da sua «implantação». E aí, imagino já o José Policarpo de punhos erguidos para o céu, naquela posição de futebolista que julga que acaba de marcar um golo: «nove milhões, novecentos e noventa e nove mil…». (Recorde-se, no entanto, que em 2001 a ICAR contou, confessadamente, um milhão e oitocentos mil praticantes, o que a torna apenas a maior das minorias religiosas…)

Implicitamente, ficou decidido que a ICAR será a primeira das confissões religiosas «implantadas» no protocolo. O problema é quem se segue na fila. Pessoalmente, estou convencido de que a Sociedade Torre de Vigia é a segunda confissão religiosa em número de praticantes, mas as Testemunhas de Jeová cultivam o distanciamento face ao Estado e à política, o que me parece uma atitude saudável para uma comunidade religiosa (embora a doutrina das transfusões de sangue seja nada saudável), e por isso deixarão a cadeira vazia. Em terceiro e quarto lugar, a menos que a Aliança Evangélica Portuguesa consiga que as dezenas de comunidades que federa se decidam por um representante único, virão o apóstolo Jorge Tadeu da Igreja Maná ou o representante da Igreja Universal do Reino de Deus, qualquer uma das quais terá dezenas de milhar de seguidores. Em quinto lugar, se contarmos os imigrantes ilegais, virá o sheik Munir ou um qualquer banqueiro wahabita. E depois virá a multidão de representantes hindus, budistas, da IOG, da IJCSUD e (porque não?) o delegado português da Federação Pagã Internacional, o representante da Federação Espírita Portuguesa, o dos rastafaris, o da Igreja Portuguesa de Cientologia e o da Associação Portuguesa de Satanismo, sem esquecer o professor Karamba, os simpáticos Bahá’ís e finalmente a senhora da Comunidade Israelita de Lisboa (uma religião com nome de país e com menos praticantes do que o jogo da laranjinha).

O espectáculo que se perspectiva é cortesia desse partido suposto laicíssimo que é o PS, e que, ao contrário dos seus congéneres espanhol ou francês, jamais afronta a ICAR, mesmo na mais pequena das questões. Efectivamente, o deputado Vera Jardim não hesita em sublinhar que existem dois regimes legais para os cidadãos portugueses no que concerne à liberdade de consciência, a Concordata e a Lei da Liberdade Religiosa, e que o primeiro regime legal torna os cidadãos católicos mais iguais do que os outros. No actual momento histórico, em que pelo menos dois terços dos portugueses não praticam religião alguma e em que assistimos a um processo de secularização rápido e sem precedentes, seria de esperar um pouco mais de coragem, no protocolo e em questões mais substantivas…
20 de Julho, 2006 pfontela

A farsa cristã

O tema central do cristianismo é a culpa, é intrínseco à sua natureza enquanto religião de salvação – sem falta ou pecado não é necessária uma salvação. Mas é no mínimo curioso que quando se trata de assumir as suas culpas em tempos recentes os cristãos parecem estranhamente ausentes e lacónicos nos seus comentários.

Em vez de falarem do que fizeram nos últimos cento e poucos anos (já nem vou mais longe) preferem presentear o mundo com conversa de café, normalmente centrada sobre uma palavra que não compreendem: amor. E não o conhecem porque ja diluíram tanto essa emoção no seu discurso que ela foi reduzida a um nada filosófico e prático. Uma espécie aura difusa com que rodeia sua face pública no mundo moderno.

Esta emoção por natureza nobre foi reduzida a uma patética sombra, um simulacro e resultou em dois conceitos confusos que são a bandeira do cristianismo. O primeiro é a caridade, que em vez de ser encarada como último recurso passa a ter uma conotação de respeito e de valor que deve ser promovido – a piedade e medo que movem tais acções destroem todos os laços que a caridade pudesse ter com a ideia de solidariedade. O segundo conceito é a confusão que os cristãos tentam estabelecer entre amor e ódio. Apesar de impregnarem a sua linguagem com a palavra amor as suas acções revelam apenas um ódio cego a tudo o que é diferente da sua vivência.

É neste ponto do ódio que volta a entrar a culpa. A culpa que os cristãos até hoje não assumem porque preferem estar embrulhados num falso conceito de amor, como podem admitir erros se ainda se escondem por detrás de uma máscara? (que acima de tudo serve para ocultar a sua deformidade moral de si próprios)

Como adoradores da dor e do martírio que são não duvido que, se o movimento iniciado no século das luzes chegar a bom termo, virão a pedir desculpas e proclamar a sua bondade ao admitir erros do passado. Não sei se será no meu tempo mas se for adianto já o seguinte: não perdoo! Não desculpo as atrocidades morais que a hierarquia comete todos os dias! Não perdoo os crentes que sao cúmplices de tal situação e que com a sua presença e apoio ajudam à perpetuação do passado! Se não for no meu tempo fica de qualquer forma o meu testemunho e a minha opinião sobre as atitudes cristãs, que os Homens de amanhã nao se deixem levar por mentiras auto-condescendentes.

20 de Julho, 2006 Palmira Silva

Células estaminais: o primeiro veto

G. W. Bush usou pela primeira vez o veto presidencial para rejeitar legislação aprovada no Congresso norte-americano. A legislação em causa pretendia expandir as restritas leis que governam o financiamento da investigação em células estaminais embrionárias, restrições impostas pelo próprio Bush em 2001 e que limitam a investigação nesta área a 71 linhas de células.

Para a esmagadora maioria dos americanos, entre 70% e 75% de acordo com as últimas sondagens apoiam a investigação em células estaminais embrionárias, este é um assunto incontroverso, claramente do domínio científico e não político, especialmente considerando os promissores resultados na cura de doenças e situações actualmente incuráveis.

No entanto para Bush, considerado o pior presidente da História dos Estados Unidos, este assunto é uma forma de manter o apoio daqueles que constituem a sua base irredutível de sustentação: os fundamentalistas cristãos. Assim, a decisão presidencial foi a conclusão de uma crónica de um veto anunciado, especialmente agora que Bento XVI fez saber, pela voz do cardeal Alfonso Lopez Trujillo, que os cientistas que trabalhem em células estaminais, assim como os políticos que aprovem leis permitindo a investigação em células estaminais, poderão ser automaticamente excomungados, vincando sem margens para dúvidas a posição do Vaticano numa área que não lhe diz minimamente respeito, aliás que está nos antípodas da sua competência – a ciência.

Bush defende que a utilização de alguns dos embriões excedentários da reprodução medicamente assistida em investigação é imoral. Na voz do seu porta-voz Tony Snow que, adoptando o mantra ilógico e irracional dos activistas anti- aborto, referiu-se à prática como assassínio (de meia dúzia de células indiferenciadas). Mais concretamente, o porta-voz de um presidente que acredita na legitimidade de uma guerra «preventiva» que já matou centenas de milhares de pessoas, que enquanto governador do Texas assinou um número recorde de execuções, declarou que a oposição de Bush à lei se deve ao facto de que «ele pensa que o assassínio é errado».

As declarações de Tony Snow fizeram-me recordar o terrorista verbal James C. Dobson, fundador e presidente da maior organização teocrata americana e uma das mais radicais, que comparou a investigação em células estaminais embrionárias com as experiências nazis conduzidas com pacientes vivos, durante e antes do Holocausto.

A posição de Bush é claramente (excepto para os fanáticos cristãos) uma piada hipócrita: dezenas de milhares de embriões excedentários são destruídos anualmente em clínicas de fertilidade sem qualquer prurido e sem qualquer propósito.

Se de facto Bush considera que esta destruição é um assassínio não deveria perder o seu tempo com minudências como o financiamento de ciência: deveria fechar imediatamente todas as clínicas de fertilidade no país, prender os «assassinos» que lá trabalham e acusar todos os casais que recorrem a fertilização in vitro como assassinos em massa!

De facto, e não contabilizando os embriões imediatamente destruídos após uma fertilização in vitro com sucesso, existem mais de 400 000 embriões excedentários congelados e, não obstante o financiamento federal para casais que resolvam «adoptar» esses embriões, apenas 182 destes foram alguma vez «adoptados». Não é muito complicado concluir qual será o fim último desses embriões: a destruição.

Assim, como apontou o senador democrata do Iowa, Tom Harkin, que classificou o veto presidencial como «uma vergonhosa exibição de crueldade, hipocrisia e ignorância»:

«Se [destruir um embrião] é assassínio, porque razão o presidente permite que a prática continue? Onde está a indignação?»

Claro que uma posição destas ditaria o fim político de Bush (e possivelmente arruinaria as hipóteses de os republicanos ganharem as próximas eleições) pelo que o cristão renascido, com grandes fanfarras de defensor intransigente da vida(?), e na boa tradição hipócrita do cristianismo de apenas manter as aparências, limita-se a interferir em algo que nunca percebeu o que é, a ciência, e uma ciência que poderia salvar a vida ou melhorar as condições de vida de muitos milhões de pessoas.

19 de Julho, 2006 Carlos Esperança

Conventos ou campos de concentração?

Os maníacos de Deus nunca deixaram de o procurar. Em tempos recuados, convencidos de que Deus era como o lince da Malcata, que fugia da civilização e do urbanismo, os anacoretas procuravam a solidão dos montes, viviam em grutas e dedicavam-se à contemplação mística.

Nunca se soube se Deus ficava maravilhado com a demência dos créus e o exotismo da resposta às depressões. Os trogloditas insistiam no silêncio e no abandono do mundo. Era, sobretudo, a luxúria que procuravam esconjurar. Alguns viraram santos por bizarra decisão pontifícia, outros morreram sós, sem terem visto Deus nem um simples anjo que lhes levasse um pouco de juízo.

Mais tarde a seita organizou-se e o poder era exercido pelo clero secular enquanto os frades e freiras, em conventos separados, que acidentalmente comunicavam por túneis, se dedicavam ao ócio e à oração.

Não haveria objecções se a livre vontade estivesse na origem de tão insólitos modos de vida. Muitas vezes, porém, foi o regime de propriedade e o direito sucessório que empurrou para as pias grilhetas jovens na flor da idade e do desejo, entregues a Deus para as poupar ao amor e ao incómodo da divisão de heranças.

A perversidade religiosa encontrou sempre na privação da liberdade a forma de agradar a Deus e na renúncia ao prazer o caminho para o Paraíso.

Os Estados, pusilânimes, receosos da força do clero, nunca verificaram se os conventos eram supermercados da fé ou cárceres privados para salvação das almas.

19 de Julho, 2006 Ricardo Alves

Marx e a religião

A passagem de Karl Marx em que se afirma que «a religião é o ópio do povo» é frequentemente citada como prova de que o pensamento marxista (e o comunismo, por extensão) seria anti-religioso. No entanto, essa passagem é mal compreendida, talvez por raramente ser citada na sua totalidade.
  • «A miséria religiosa é, por um lado, a expressão da miséria real e, por outro, o protesto contra ela. A religião é o soluço da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, o espírito de uma situação carente de espírito. É o ópio do povo.»

Note-se que a referência ao ópio, que na época de Marx era uma droga de aristocratas e burgueses ociosos, significa apenas que a religião é o escape, a fuga à «miséria real» disponível para as classes «oprimidas». Ao designar a religião como um «protesto» contra essa miséria e como «coração de um mundo sem coração», Marx demonstra até alguma compreensão pelo fenómeno religioso (senão mesmo simpatia). Nitidamente, se se tivesse que completar a série de metáforas usadas por Marx, facilmente se escreveria que a religião não é causa de opressão, mas sim consequência; que não é a doença, mas sim o seu sintoma.

Continuemos com a Introdução à Crítica da Filosofia em Hegel.

  • «A crítica arrancou as flores imaginárias que enfeitavam as cadeias, não para que o homem use as cadeias sem qualquer fantasia ou consolação, mas para que se liberte das cadeias e apanhe a flor viva. A crítica da religião desengana o homem para que este pense, aja e organize a sua realidade como um homem desenganado que recobrou a razão a fim de girar em torno de si mesmo e, portanto, do seu verdadeiro sol.»

Na sequência do seu raciocínio (perfeitamente lógico atendendo às premissas) Marx argumenta portanto que a crítica da religião não é um fim em si próprio, mas apenas um primeiro passo para que o homem se liberte das suas «cadeias». De certo modo, pode dizer-se que Marx subordina a crítica anti-religiosa à luta política socialista, não reconhecendo à primeira mais do que um valor instrumental. No Terceiro Manuscrito Económico e Filosófico (concretamente no capítulo «Propriedade Privada e Comunismo»), Marx é ainda mais claro sobre o carácter secundário da alienação religiosa.

  • «A alienação religiosa como tal, ocorre somente no campo da consciência, na vida interior do homem, mas a alienação económica é a da vida real, e por isso, a sua substituição afecta ambos os aspectos.»

Fica explícito, no trecho anterior, que a «alienação económica» é o caso geral, enquanto a «alienação religiosa» é o caso particular. Marx parecia acreditar que a segunda decorria da primeira. Não concebia, aparentemente, a operação recíproca: que as estruturas eclesiais e a cultura religiosa pudessem ser causa primeira de opressão e de alienação, e que determinassem, pelo menos em parte, a economia. Não se aceita portanto, no marxismo, que o laicismo seja tão ou mesmo mais importante do que o socialismo.

[Publicado previamente no blogue Esquerda Republicana.]