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22 de Outubro, 2006 Palmira Silva

O referendo ao aborto: Direito e Ética

Nos posts anteriores vimos essencialmente o que o Direito Penal não deve ser e as razões históricas porque continua arreigada a convicção de que os pecados/crimes devem ser punidos nos países que não foram permeados pela laicidade e a influência da religião, nomeadamente da Igreja Católica, continua a minar o pensamento colectivo.

Como já referi, num estado laico todo e qualquer ramo do Direito deve ser livre de concepções religiosas ou morais, ou seja, a lei não deve proibir algo apenas porque considerado «imoral», mesmo que pela maioria da população. É moralmente errado o adultério mas apenas nas teocracias mais abomináveis os adúlteros são punidos pelo seu pecado (para além dos documentos constantes do link anterior pode assinar esta petição para tentar evitar que sete mulheres iranianas sejam apedrejadas até à morte pelo «crime» de adultério)!

Assim, a argumentação da Igreja e seus apaniguados contra a despenalização do aborto assenta em princípios que violam os axiomas subjacentes ao Direito num estado democrático e laico! Apenas numa teocracia a lei transcreve os «valores da cultura de um povo», eufemismo que Policarpo utiliza para sustentar que os preconceitos religiosos devem contaminar o Direito Penal nacional.

Já desde o século XIX que se aceita o preconizado por John Stuart Mill segundo o qual a lei não deve criminalizar práticas que não prejudiquem terceiros. Assim, devem ser revogadas leis que criem «crimes sem vítimas», na sua maioria leis assentes em morais religiosas que criminalizam ou proibem pecados como a homossexualidade, o aborto, o divórcio, o adultério, a fornicação, etc..

Manter leis que criam «crimes sem vítimas» é uma forma inadmíssivel em democracia de obrigar todos a conformarem-se aos padrões morais de alguns, é impor via direito as convicções religiosas desses alguns, mesmo que em maioria. Assim, mesmo quem considera o aborto «imoral» mas considera que não é equivalente a um homicídio deve votar sim no referendo de despenalização. Caso contrário estará a impor a sua moral pessoal a toda a população mantendo um crime sem vítimas. Ou seja, está a violar todos os princípios em que assenta a nossa civilização!

Porque de facto o que está em jogo no referendo ao aborto não é nem a moralidade do mesmo ou, como pretendem os mais falaciosos que já começaram a sua tarefa «divina» de envenenamento da opinião pública, saber se os nossos impostos devem pagar os abortos alheios – o que, considerando os tempos de espera no nosso sistema de saúde pública e o prazo de dez semanas a referendar, não parece muito plausível.

O que está em jogo é decidir se têm direito incondicional à vida um zigoto e um embrião. Ou seja, se devemos conferir o estatuto jurídico de pessoa a um zigoto, embrião e, como a argumentação é exactamente a mesma, a «humanidade» igualada a um genoma, a uma célula estaminal totipotente.

Essa decisão dever-se-ia assim simplesmente basear no estatuto ético do embrião, isto é, se os cidadãos consideram que um embrião deve ter o mesmo estatuto de uma pessoa e consequentemente abortar é equivalente a assassinar alguém.

Em Portugal os debates sob o tema com que fomos mimoseados no passado são lições deploráveis sobre o que não deve ser um debate, com argumentos falaciosos de ambos os lados que nunca abordam o tema em que deveria assentar a discussão. É igualmente deplorável que sejam convidados para os debates não quem de direito, bioéticos e filósofos especializados em ética, mas, para além de políticos, exactamente quem nunca deveria ter assento – se de facto Portugal fosse um estado de direito, democrático e laico – num debate sobre o tema: representantes da Igreja Católica, tanto leigos como assalariados!
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21 de Outubro, 2006 Palmira Silva

O referendo ao aborto: Direito II

A Renascença e o humanismo renascentista propiciaram a contestação do governo por direito divino e da barbárie que passava por Direito Penal. Machiavelli (final século XV princípio século XVI), o pioneiro na contestação do direito divino e o primeiro a propôr a separação igreja-estado, introduziu uma nova concepção de Política, separando o pensamento racional político da religião e o direito da moral religiosa.

Filósofos políticos como Mandeville, Voltaire, John Locke, Thomas Hobbes, Hume, Diderot, Helvetius ou Montesquieu continuaram a questionar a hegemonia da Igreja Católica na esfera política e jurídica e inspiraram Cesare Bonesana Marchese di Beccaria (1738-1794), um dos pais do utilitarismo moderno, a escrever o clássico Dei deliti e delle pene, onde pregava a certeza da punição como tendo maior eficiência que a gravidade dos castigos. Cesare foi acusado de heresia pela publicação deste livro e viu-se obrigado a dar um testemunho público dos seus princípios religiosos. O receio de novas perseguições levou-o a renunciar às dissertações filosóficas.

De facto, o tratado «Dos Delitos e das Penas», a filosofia francesa aplicada à legislação penal, era certamente «herege» para a época, já que estabelece limites entre a justiça divina e a justiça humana, entre os pecados e os delitos; condena o direito de vingança e toma por base do direito de punir a utilidade social; declara inútil a pena de morte e reclama a proporcionalidade das penas aos delitos, assim como a separação do poder judiciário e do poder legislativo. O seu sucesso foi imediato, sobretudo entre os filósofos franceses, e é o precursor do nosso direito de ultima ratio cuja finalidade primordial é a prevenção (e não a punição como muitos pensam).

Mas a influência nefasta da Igreja católica permaneceu (e permanece nalguns países) no Direito ocidental e a confusão entre crime e pecado e a ideia de que este deve ser punido de forma violenta para que o criminoso chegue ao arrependimento após sofrer torturas e isolamento persiste ainda.

Num país que já saiu há mais de 30 anos de uma ditadura em que, contrariamente ao que pretende a RTP na sua biografia de Salazar, não existia separação entre o Estado e da Igreja e em que o direito transcrevia a «moral» católica, sendo criminalizados os «pecados», seria de esperar que esta confusão entre crime e pecado e convicção de que o «pecador» deve pagar pelos seus pecados/crimes fossem algo do passado.

Mas as aberrantes declarações debitadas aquando da recente abertura oficial da nova (e anacrónica numa democracia) licenciatura de Direito Canónico da Universidade Católica Portuguesa mostram que os fundamentalistas católicos não foram permeados pela modernidade e acham-se no direito de subordinar toda a sociedade à ditadura do Vaticano.

Como já disse, democracia não é equivalente a ditadura da maioria, democracia pressupõe um estado de Direito, pluralismo, tolerância e respeito dos direitos de todos. É lamentável que o Cardeal Patriarca de Lisboa tenha tentado perverter o estado de Direito afirmando que as «leis devem respeitar os grandes valores da cultura de um povo». E que o reitor da Universidade Católica, Braga da Cruz, tenha confundido teocracia com democracia ao declarar que «No caso do aborto, mas também em toda a legislação atinente ao matrimónio e à sexualidade, é importante que a legislação respeite os valores da grande maioria da população portuguesa».

Qualquer taliban estaria plenamente de acordo com ambos!

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21 de Outubro, 2006 Palmira Silva

O referendo ao aborto: Direito

Teodoro di Tarso, autor do Poenitentiale Theodori, fresco em Sant’Abbaciro, Roma. Recomendo a leitura (em latim) do capítulo II, que dá pelo título De Fornicatione.

O Direito Penal é, muito provavelmente, a especialidade do Direito mais conhecida de toda a população já que é ele que dá conta dos crimes e das penas a serem aplicadas. É hoje em dia considerado como um Direito Público, ou seja, diz respeito a toda a comunidade e não a pessoas isoladamente.

Na Europa dos governantes por direito divino o apogeu e queda da hegemonia da Igreja Católica pode ser acompanhada na evolução do Direito Penal que foi durante séculos apenas o castigo imposto a quem violava a «lei divina», um castigo retributivo, «ao mal do crime, o mal da pena».

De facto, a Igreja considerava a pena como uma penitência para a remissão dos pecados, a um pecado mais grave correspondia uma penitência maior. Aliás, daí o termo ainda hoje alternativo a prisão, penitenciária, que designava os locais de reclusão para onde eram enviados os que transgrediam as «leis divinas» e não tinham posses para remir a penitência com indulgências.

A diferença entre estas penitenciárias e conventos e mosteiros era inexistente para muitos dos internados nestas instituições, a principal diferença residindo no facto de que nas penitenciárias os reclusos penitenciavam-se durante uma estadia temporária, cuja duração era determinada pela gravidade do pecado.

Erving Goffman, no seu livro de 1987 «Manicómios, Prisões e Conventos» analisa o que denomina de Instituições Totais e trata das características de cada uma dessas Instituições e dos internos que delas fazem parte. É interessante notar nesta obra as semelhanças encontradas pelo autor entre estas Instituições e sob que justificativas foram criadas e mantidas.

Nem todos os pecados podiam ser passíveis de remissão e assim eram previstas penas de morte para os pecados imperdoáveis, como a heresia. As execuções eram conduzidas na praça pública, utilizando a fogueira, forca, guilhotina e outros instrumentos, em que aqueles que hoje se arvoram em defensores intransigentes da vida e cruzados contra o «relativismo» – que não aceita as «verdades eternas e absolutas» de que a Igreja é detentora – transformavam a morte de hereges em espectáculos populares.

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21 de Outubro, 2006 Carlos Esperança

Polónia – Os ultras no poder

Um governante polaco, Miroslaw Orzechowski, vice-ministro da Educação, considera a teoria da evolução de Darwin uma mentira. O dirigente político da Liga das famílias polacas (LPR, extrema-direita ultra-católica) considera o evolucionismo «uma história de carácter literário que poderia servir de guião a um filme de ficção científica».

Tal como nos EUA, onde a teoria criacionista vai sendo imposta, também na Europa começam a aparecer defensores da verdade, única e imutável, a que vem na Bíblia.

Deus fez o Mundo em seis dias e criou o primeiro casal: Adão e Eva. Depois, de forma incestuosa foi-se povoando o Planeta.

Grave é o facto de a demência chegar ao Governo.

Miroslaw Orzechowski é uma espécie de Mariana Cascais na versão polaca.

21 de Outubro, 2006 Palmira Silva

O referendo ao aborto: direito, ética e religião – I

A Ética do Aborto: Perspectivas e Argumentos

Van Rensselaer Potter, que introduziu em 1971 o neologismo bioética – no livro Bioethics: bridge to the future -, pretendia com a conjugação «’bio’ para representar o conhecimento biológico, a ciência dos sistemas vivos, e ‘ética’ para representar o conhecimento dos sistemas de valores humanos» estimular o diálogo entre as ciências exactas, as ciências sociais e a filosofia. Diálogo essencial para «ajudar a humanidade no sentido de uma participação racional e cautelosa no processo da evolução biológica e cultural».

Na realidade, os progressos científicos e tecnológicos muito rápidos que se verificaram a partir de meados do século passado, tão rápidos que não permearam a sociedade, introduziram uma série de problemas novos, nomeadamente no que se refere às ciências da vida, em que a falta deste debate entre ciência e ética permitiu que se instalassem formas veladas de Inquisição que ensombram não só o desenvolvimento da própria ciência como o desenvolvimento ético da nossa sociedade.

A questão do aborto, ou seja, do estatuto jurídico do embrião, é talvez um caso paradigmático em que esta falta de diálogo entre ciência e ética, especialmente em Portugal, permitiu a apropriação abusiva do tema pela Igreja Católica.

A legislação vigente em Portugal, com as estritas ressalvas que todos conhecemos a que mesmo assim a Igreja se opõe, reflecte não um debate ético – que nunca aconteceu em Portugal – mas apenas preconceitos religiosos. Isto é, a lei nacional consagra como criminoso e punível com pena de prisão aquilo que é um «pecado» gravissimo aos olhos da Igreja.

Contrariamente ao que afirma o cardeal patriarca, a penalização do aborto é assim uma questão religiosa e não é resultado de uma reflexão ética fundamental. Na realidade, a penalização do aborto é a materialização de valores que não têm lugar no Direito Penal, valores completamente incompatíveis com os axiomas que se defendem actualmente na comunidade do Direito.

Um Direito Penal assente numa pseudo ética religiosa apenas se verifica em teocracias. Num estado laico todo e qualquer ramo do Direito deve ser livre de concepções religiosas ou morais. Num estado moderno, logo necessariamente laico, cabe à ética decidir qual a resposta sobre o que é eticamente correcto; ao direito sobre o que seja racionalmente justo e à política sobre o que seja socialmente útil. Em Portugal, pelo menos no tema aborto, a ética, o direito e a política estão reféns da religião.

De facto, a ética deve ser exclusivamente filosófica, puramente racional e cientificamente informada. Uma ética que não se consiga separar da religião – ou da ideologia política – será sempre uma pseudo ética. Não será mais do que um conjunto de costumes, dogmas, crenças religiosas e/ou atitudes populares convertido em prescrições autoritárias que, se formalizadas no direito pela política, corresponde a uma perversão grave dos princípios que supostamente regem a nossa sociedade.

Como já referi, a filosofia correspondeu à libertação do pensamento humano da opressão da religião, da superstição e do «senso comum», criando as condições para o nascimento da ciência. Desde os seus primórdios, a filosofia abandonou as explicações religiosas até então vigentes e procurou, através da razão e da observação, um novo sentido para o universo. Não faz qualquer sentido que no século XXI a ética continue em Portugal refém da religião ou de qualquer forma de construção do conhecimento não assente na razão.

Muito menos faz sentido, com base numa pseudo-ética religiosa, subordinar o direito e a política de um país democrático e laico ao que é considerado «pecado» por uma qualquer religião. As convicções religiosas individuais, mesmo se maioritárias, devem permanecer no domínio privado de cada um e não podem ser impostas a toda a comunidade. Para além do mais, democracia não é sinónimo de ditadura da maioria!

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21 de Outubro, 2006 jvasco

Ciência e naturalismo, parte 2

Ao meu outro post sobre esta matéria um leitor comentou: «o objecto de estudo para poder ser alvo de uma abordagem científica […] tem que ser material, concreto, ou seja natural». Este comentário merece consideração porque me parece exprimir uma opinião muito comum, e porque me parece estar parcialmente certo.

Mas vou começar pelo que penso estar errado. Por um lado, o objecto da ciência não tem que ser material. A velocidade não é material. A energia também não. O principio de incerteza de Heisenberg, a selecção natural, o conceito biológico de espécie, a cinética duma reacção química, entre muitos outros exemplos, mostram que a ciência aborda muito mais que apenas a matéria. Alguns obstarão que estes não são os objectos da ciência, que são apenas as hipóteses e teorias que a compõem. Mas não podemos distinguir as hipóteses dos objectos da ciência, pois quando estudamos algo estudamos sempre observações e hipóteses. Quando estudamos a gravidade, podemos ter uma hipótese materialista que diz que a gravidade é mediada pela troca de partículas de matéria. Mas podemos igualmente ter uma hipótese não materialista, que diz que a gravidade é uma distorção na geometria do espaço-tempo. O objecto de estudo não pode ser uma gravidade desligada daquilo que propomos como hipóteses, e todos os conceitos científicos, materialistas ou não, são também objecto da ciência.

Por outro lado, o objecto da ciência não tem que ser natural. Natural e sobrenatural são categorias arbitrárias e irrelevantes para o estudo de qualquer fenómeno. Um exemplo concreto: até ao século XIX, pedras caírem do céu era considerado um fenómeno sobrenatural, relatado em mitos e lendas religiosas, mas rejeitado pela comunidade cientifica como uma violação das leis da natureza. Mas em poucas décadas revelou-se ser um fenómeno perfeitamente natural. O que mudou? Apenas a ideia do que era ou não permitido pelas leis da natureza.

Hoje em dia já nem falamos de leis científicas. No último século a comunidade científica ganhou alguma da modéstia que lhe faltava na época Vitoriana, e sabemos que tudo o que propomos como limites ao natural não passa de teorias sujeitas a revogação, e rotular um fenómeno de ?sobrenatural? não o coloca fora do alcance da ciência.

Finalmente, temos o requisito que o objecto de estudo científico seja concreto. Concordo. A hipótese que «Ah, e tal… deve ser assim tipo uma cena qualquer» não pode ser objecto de estudo científico. Deuses, demónios, milagres e afins muitas vezes não podem ser estudados cientificamente porque os termos são indefinidos. A hipótese que um deus pode acelerar um tomate a uma velocidade superior à da luz é uma hipótese suficientemente concreta para ser científica. A ciência moderna diz-nos para a rejeitar, pois tanto quanto sabemos é impossível acelerar um tomate a uma velocidade superior à da luz. Mas a hipótese que um deus pode violar as leis da física não é uma hipótese científica porque é um disparate. Esta hipótese não escapa à ciência por ser imaterial ou sobrenatural, mas simplesmente porque é uma contradição: «leis da física» designa o que não pode ser violado, nem pelo Zé da esquina nem pelos deuses.

Qualquer hipótese que propõe algo observável pode ser abordada cientificamente, seja sobre entidades naturais, sobrenaturais, materiais ou imateriais. Para escapar à ciência tem que ser impossível determinar a sua verdade, ou por ser uma hipótese acerca do que não é observável (o unicórnio invisível cor de rosa) ou por não fazer sentido (a santíssima trindade).

——————————–[Ludwig Krippahl]

20 de Outubro, 2006 jvasco

Ciência e Naturalismo

«Incomoda-me a ideia que a ciência tem que ser naturalista, e que por isso não pode sequer considerar qualquer explicação que não seja natural. Incomoda-me especialmente por vir esta ideia quer dos que se opõem à ciência quer de alguns que deviam compreender melhor a abordagem científica.

Vamos supor que queremos melhorar as colheitas, e que consideramos duas hipóteses. Uma, naturalista, diz que devemos irrigar os campos e usar fertilizante. A outra diz que devemos propiciar os deuses para que providenciem uma colheita abundante. Há uma forma clara de determinar a melhor hipótese: irrigamos e fertilizamos metade das plantações, e na outra metade sacrificamos vacas, rezamos, ou seja o que for que a segunda hipótese indique como propiciando melhor os deuses. No final medimos quanto foi produzido e já sabemos o que funciona melhor.

O método é o mesmo, e é o Universo que determina a melhor alternativa. É pelo Universo ser como é que nós irrigamos os campos em vez de sacrificar vacas, ou levamos o carro avariado ao mecânico em vez de o levar à igreja. A ciência diz-nos que é melhor fazê-lo desta maneira, mas se fosse melhor fazer da outra, também era a ciência que o iria mostrar pela comparação dos resultados.

O problema com o sobrenatural não é ter deuses, demónios, espíritos ou essas coisas que as pessoas inventam. O problema é que, normalmente, uma hipótese sobrenatural não diz nada. Um deus omnipotente que nunca actua quando está a ser testado não pode ser testado cientificamente. Mas não é por causa do naturalismo; um fertilizante químico que nunca actua quando estamos a tentar observá-lo é igualmente impossível de testar. As coisas que a ciência não pode testar são apenas as coisas que não podem ser testadas, ponto final. Chamar-lhes naturais ou sobrenaturais é irrelevante.

Isto para a ciência como método. A ciência como o corpo de conhecimento científico põe de parte espíritos, deuses, e essas coisas que se diz serem sobrenaturais (mas por que é que um deus não pode ser um deus natural?). Mas estes foram excluídos simplesmente porque parecem não existir, e não por limitação do método. A ciência é bem capaz de excluir o Pai Natal, os unicórnios, e as fadas madrinhas, sejam estes naturais ou sobrenaturais.

E se vivêssemos num Universo diferente a ciência poderia dar-nos faculdades de ciência teológica, engenheira dos espíritos, tecnologia da oração, demonologia aplicada, e o que mais fosse. Se os deuses e espíritos existissem e interagissem connosco, não poderíamos ficar pelo primeiro livro sagrado que nos impingissem. Teríamos que comparar diferentes religiões, testar os profetas, confrontar estas hipóteses de forma a encontrar a verdadeira religião. Tudo isso seria ciência.

Em suma, a ciência não está limitada ao natural. O Universo é que veio sem acessórios sobrenaturais, e a ciência apenas nos diz que é assim que as coisas são.»

——————————–[Ludwig Krippahl]

20 de Outubro, 2006 Ricardo Alves

Dar o tom, tocar a música, coreografar a dança

A Conferência Episcopal Portuguesa, do alto da sua conhecida experiência e saber em matérias científicas, médicas, contraceptivas e sexuais, publicou uma nota pastoral sobre a despenalização da IVG poucos minutos depois da aprovação do referendo na Assembleia da República.

A estratégia da ICAR é conhecida e já resultou uma vez: começa-se por negar que a despenalização do aborto seja uma questão política (como se a legislação criminal e penal não fosse coutada dos parlamentos democráticos), com o argumento de que se trata de «moral natural» (a «moral natural» é tão «natural» como as «lei naturais», os «tribunais naturais», as «prisões naturais», os «impostos naturais» e os «hospitais naturais»). Sugere-se em seguida que os partidos e as «correntes de opinião» não devem interferir na votação (tentando deslegitimar a laica autonomia do poder político)… O objectivo, claríssimo, é transportar um assunto político e jurídico para o campo ético onde o peso da religião tradicional espera poder influenciar decisivamente as consciências. Acrescenta-se ainda, na nota pastoral, que «a vida não é referendável», como se a ideia de referendar a IVG não tivesse partido, originalmente, de dois católicos desagradados com o resultado de uma votação parlamentar. Garante-se que os bispos não participarão em qualquer «campanha de tipo político», mas ameaça-se que «esclarecerão consciências» (haverá diferença prática?). E finalmente alude-se «ao dinheiro de todos os cidadãos» e repete-se que a «a lei actual (já) é permissiva». Em resumo: não se cede um milímetro.

A resposta aos senhores bispos e aos que dançarão a sua música deve ser clara: as leis de uma República democrática são decididas pelos cidadãos e pelos seus representantes. A República é independente das igrejas e as «leis divinas» (agora alcunhadas de «naturais») só podem obrigar os crentes, e apenas enquanto não contradisserem as leis do Estado. Este referendo é sobre leis humanas.

20 de Outubro, 2006 lrodrigues

Um Problema Conjuntural


«Não só os homossexuais mas também aqueles que os toleram são merecedores da morte»

– Bíblia: Romanos 1:32

«O acto homossexual deve ser punido com a morte».

– Bíblia: levítico 20:13

Moral da história:

A homossexualidade é uma doença incurável que não pode ser tolerada por nenhum bom cristão e deve ser punida com a morte;

A pedofilia é um problema conjuntural que se resolve mudando o padre de freguesia.

(Publicado simultaneamente no «Random Precision»)

19 de Outubro, 2006 Ricardo Alves

Aprovado o referendo sobre a despenalização do aborto

Uma proposta de referendo sobre a interrupção voluntária de gravidez foi hoje aprovada na Assembleia da República com os votos a favor do PS, do PSD e do BE, a abstenção do CDS e os votos contra do PCP e do PEV. As deputadas católicas fundamentalistas da bancada do PS dividiram-se entre a abstenção (Maria do Rosário Carneiro e Teresa Venda), e o voto contra (Matilde Sousa Franco). Na bancada do PSD, Ribeiro Cristóvão absteve-se e Quartim Graça votou contra.

A pergunta será: «Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?».

O possível referendo depende ainda da promulgação do presidente da República.