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Categoria: Não categorizado

24 de Dezembro, 2009 Carlos Esperança

Crianças com quem brinquei (Crónica)

Recordo, seis décadas depois, os garotos que me acompanharam na escola primária, crianças que a vida flagelou, filhos de mães que pariam todos os anos e de pais que se emborrachavam todos os dias.

Vinham de Cairrão, do Carapito e da quinta do Ordonho, descalços e com uma côdea de pão duro. Aprendiam a ler e a escrever, decoravam os rios e as serras de Portugal, as descobertas, batalhas e outras glórias do país que lhes negava uma sopa quente e um copo de leite. Passavam o dia numa escola onde chovia, com o soalho apodrecido pela humidade e o tecto a ameaçar ruir. O vento, a chuva e a neve entravam pelos buracos das janelas onde faltavam vidros cuja substituição não cabia no orçamento da Câmara da Guarda.

A Primavera e o Outono aliviavam os corpos da dureza do clima. A chuva não fazia grande mossa, era pouca a roupa e o corpo conhecia dias piores.

Os miúdos aprendiam os cognomes dos reis e os nomes dos filhos bastardos, conheciam o esqueleto humano até ao último osso e saíam da escola a escrever sem erros e, muitos, com distinção no exame da 4.ª classe. Os do Ordonho, quando eram curtos os dias e longas as noites de Inverno, percorriam três quilómetros a ver o amanhecer, antes de chegarem à escola, às vezes com temperaturas negativas, e voltavam ao entardecer a repetir em voz alta as batalhas que os portugueses ganharam e os nomes dos navegadores que capitanearam as naus que acharam portos em vários continentes.

No mapa-múndi havia nomes de países apagados pela vara que os apontava; o mapa do corpo humano tinha órgãos em mau estado; o de Portugal e Ilhas Adjacentes exibia rios, afluentes, serras, cabos, baías e caminhos de ferro cujos nomes se decoravam com o rigor do credo e a devoção da salve-rainha.

Nenhum aluno era proposto a exame da 4.ª classe sem dividir e classificar as orações sem hesitação, qualificação académica facultativa para meninas a quem bastava, na opinião do governo salazarista, a 3.ª classe, porque tanto saber era exagerado para meninas humildes e comprometedor do destino da alma.

Os miúdos da minha escola nunca viajavam de comboio apesar de correrem sobre os carris da linha da Beira Alta e saberem de cor os nomes das terras onde paravam as carruagens que circulavam nas vias que os ingleses construíram desde o Estado da Índia até aos ramais que acompanhavam os afluentes do rio Douro.

Nos intervalos das aulas os rapazes corriam para a horta do senhor Gaspar e as raparigas para a do senhor Germano, ou vice-versa, já lá vão tantos anos, e a memória apenas guarda a parede junto à qual circulavam os meninos, colados, para não pisarem o grão de bico, o feijão de estaca e as alfaces, mas evitando trazer nos pés os excrementos próprios ou alheios.

Depois aproveitávamos o tempo que restava para jogar ao pião ou dar pontapés numa bola de trapos enquanto as meninas disputavam o terreiro a jogar à macaca.

Que será feito desses condiscípulos? Quantos viverão ainda? E que saudade é esta que agora me assalta quando a tradição festeja o nascimento do homem de quem os crentes desconhecem o ano e o local mas a quem a fé atribuiu dia certo e transformou em deus?

São as tradições a interferir no mundo dos afectos; é a saudade feita remorso das pessoas que deixámos sair da memória; é o tempo, receoso do futuro, a resgatar o passado. Por onde quer que andem, a minha memória trouxe-os agora de volta.

16 de Dezembro, 2009 Carlos Esperança

Os deuses dos animais

Se os cavalos fossem crentes, certamente que o seu deus teria relinchado mandamentos e concedido a ferradura de ouro aos mais devotos. Havia de proibir-lhes o pasto viçoso pela quaresma e a ração de aveia às sextas-feiras. E se, porventura, os cavalos de raça fossem lascivos, impor-lhes-ia restrições à cópula, limitando-a à égua própria e vitalícia para fins meramente reprodutivos.

Se os cavalos fossem dados à metafísica, saberiam converter em benta a água dos rios e a das fontes e aprenderiam a ajoelhar-se à passagem dos bispos dos cavalos e a rastejar perante o papa.

Se os cavalos se dessem à beatice, como os humanos, o deus estaria rodeado de éguas que relinchariam hinos e cavalinhos que o louvassem. Algumas éguas ficariam virgens para o glorificar e outras professariam em estrebarias, para sua maior glória.

A fé tem obrigações e os cavalos haviam de arranjar burros que lhes levassem a palha e algum camelo que transportasse o andor com a Égua Lusitana ou com o cavalo de Alter do Chão, quando organizassem procissões equestres.

Não faltariam devoções pias, dias santos com rações suplementares de cevada e festas anuais, sem cabresto nem bridão, para poderem relinchar hossanas, mas não falhariam as esporas para punir o garrano que cobiçasse a égua alheia nem selins apertados para os que não cumprissem as devoções pias.

Se o deus que os homens da Idade do Bronze inventaram e nos legaram fosse amante de touradas,  só os aficionados teriam direito ao Paraíso. Os toureiros seriam anjos, santos os forcados e o Campo Pequeno uma catedral.

Os cabos seriam apóstolos e os rabejadores bem-aventurados destinados aos altares. Os bispos trocariam a mitra pelo barrete e o báculo pela muleta. Os cavaleiros, forcados, bandarilheiros, novilheiros, campinos e outros intervenientes seriam os eleitos em vez de padres, freiras, diáconos, beatas e outros avençados do divino. E para agradarem a deus, os beatos fariam lides com o capote e cravariam ferros curtos por devoção.

O matador seria um cruzado com indulgências plenas e o forcado colhido numa tourada teria assegurada a ascensão ao céu onde o esperariam virgens, mel e outras iguarias.

Talvez os membros das associações protectoras dos animais tivessem de se remeter à clandestinidade e, denunciados pelo inteligente, pagassem o atrevimento servindo de churrasco numa fogueira erguida para preservar das heresias as touradas e as boas pegas.

15 de Dezembro, 2009 Carlos Esperança

Momento de poesia

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Dissertação de um ateu…

Antes de tudo era o Verbo

antes do Ser e da carne

antes do modo

do tempo

e da pessoa,

singular ou plural,

uma conjugação em desuso

que declinei muitas vezes

antes de me aborrecer.

Alexandre de Castro

5 de Dezembro, 2009 Ludwig Krippahl

Treta da semana: iguais, mas uns mais que os outros.

Tenho seguido o percurso da associação Portal Ateu – Movimento Ateístas Português (PAMAP) com interesse e preocupação. Interesse porque sou ateu e porque conheço pessoalmente o Helder Sanches e o Ricardo Silvestre. E preocupação, no fundo, pelas mesmas razões, que me colocam próximo das divergências que os levaram a sair da Associação Ateísta Portuguesa (AAP) e fundar a PAMAP. O Helder considerava «obrigação [da AAP] ter uma abordagem positiva do ateísmo e demonstrá-lo à sociedade portuguesa, quer seja através de actos públicos de proximidade, quer seja através da organização e participação em debates, publicação de livros, etc.»(1) E ofereceu-se, com o Ricardo, para organizar estas actividades em nome da AAP. A iniciativa é de louvar, se a título pessoal, mas como nenhum ateu consegue representar adequadamente os ateus em geral, o consenso na direcção da AAP foi que este activismo não deve ter mandatários. A AAP não deve servir para mostrar o ateísmo do presidente da comissão de debates, ou algo do género, mas sim o que há de comum no ateísmo dos portugueses. Isto exige prudência, diálogo e, sobretudo, contenção no protagonismo.

A PAMAP tem uma abordagem diferente. Segundo o Helder, não procuram consenso mas representar apenas «os ateus que se sintam representados por nós»(2). Infelizmente, o nome dá a entender que representam o movimento ateísta português, pelo que me preocupa a ideia de ter uns a liderar o ateísmo dos outros. Principalmente depois de ler o regulamento interno da PAMAP, disponível no Portal Ateu (3). Além de uma gralha engraçada*, sugere uma intenção de chefia que me parece pouco compatível com a representação fiel do ateísmo. Diz o artigo 15º :

«1. Número de votos dos sócios:
a) Os sócios “fundadores” da PAMAP por se tornarem sócios na Assembleia-Geral constituinte da PAMAP terão 10 votos em Assembleia Geral,
b) Os sócios que se inscrevam na PAMAP após a Assembleia Geral Constituinte terão direito a 1 voto em Assembleia Geral. Estes sócios terão a denominação de Sócios Escalão 1,
c) Sócios de Escalão 1 que mostrem dedicação e empenho para o sucesso da PAMAP e da promoção do ateísmo, poderão ser convidados pela Direcção da PAMAP a ascenderem a Sócios Escalão 2, onde passarão a ter 5 votos em Assembleia Geral. Esta mudança de escalão será promulgada pela Mesa da Assembleia Geral,»

A 9 de Setembro os sócios fundadores já elegeram, por cinco anos, os órgãos da associação(4), e só na primeira assembleia geral ordinária serão aceites as propostas para novos associados. Os escalões de associados, uns com mais votos que outros, os mandatos de cinco anos e a eleição da direcção antes de admitir sócios é estranhamente anti-democrático. O Helder explicou-me que «Uma associação ateísta é uma associação como outra qualquer» (5), mas no respeito pela transparência, pela troca livre de ideias e pela diversidade de opiniões, penso que uma associação ateísta devia destacar-se da média.

E não para o lado em que a PAMAP se destaca. Segundo o Helder, «Ao contrário de outras organizações, aqui queremos privilegiar o mérito»(5). Não sei porque estar presente na escritura é dez vezes mais meritório que o que faz qualquer outro ateu. Mas o problema fundamental é “privilegiar o mérito” dando mais votos a quem a direcção decide. Imagino o Primeiro Ministro Sócrates propor que se reconheça o mérito dos cidadãos concedendo, à partida, dez votos a cada militante do PS, com o governo depois promovendo ao “escalão 2”, com cinco votos, quem o governo julgar ter mérito para isso. Não sei se o Helder iria aplaudir tal medida, mas muita gente interpretaria isto mais como uma forma de prolongar este governo do que de promover o mérito. Sei que uma associação não é um país, nem a sua direcção um governo, mas os princípios democráticos são análogos. A forma mais justa de reconhecer o mérito é todos votarem por igual e deixar o mérito de cada proposta ou candidato transparecer no número de votos.

A outra justificação do Helder é que «Dar o mesmo poder a quem não faz ou não deixa fazer é um tiro no pé da própria associação.»(5) É uma ideia interessante, esta do “poder”. Traz-me à mente uma reunião de ateus. Como as da AAP, nas quais o Helder também participou. Um almoço amigável, todos entusiasmados a discutir ideias, a pensar, a discordar e a criticar mas, em conjunto, a debater e a afinar propostas. Nisto, sai-se um com meus amigos, isso é tudo muito bonito, mas como eu é que tenho dez votos vai-se fazer como eu quero.

Um momento de silêncio. Um garfo bate levemente no prato. E desata tudo à gargalhada, uns a bater nas costas do desgraçado que se engasgou com o pão e outros a limpar as lágrimas de riso com o canto do guardanapo. Não sei em que ateus é que o Helder quer usar este “poder” dos dez votos. Os ateus são muito diferentes nas suas opiniões, atitudes e personalidades, mas como ninguém recebe o ateísmo por revelação, os ateus não têm profetas, nem bispos nem papas. No que toca à autoridade sobre o ateísmo, todos os ateus são iguais. Mesmo que alguns digam ser mais iguais que os outros.

*O artigo nono do regulamento interno da PAMAP, pelo menos à data em que escrevo este post, diz «Serão considerados «sócios fundadores» da Associação Ateísta Portuguesa todos os sócios que se tenham inscrito como tal até à data da realização da primeira Assembleia Geral.» Os perigos do copy-paste….

1- Helder Sanches, 19-1-09, Carta aberta à Direcção da AAP
2- A outra.
3- Portal Ateu, PAMAP
4- Portal Ateu, Nasceu a associação Portal Ateu – Movimento Ateísta Português
5- Portal Ateu, Convocatória para a 1ª Assembleia Geral ordinária da PAMAP

Publicado também no Que Treta!

3 de Dezembro, 2009 Carlos Esperança

A comunicação social e as emoções

Como sou um leitor compulsivo de jornais, fartei-me de ver a comoção que ia por essas páginas impressas relativamente a um militar da GNR que outro colega assassinou. Vi a comoção dos colegas, a revolta (não percebi porque se viravam contra as chefias) e a raiva.

Segundo li, o soldado da GNR que assassinou o colega que o prendeu foi casado com uma mulher que agrediu de forma brutal e selvagem ao longo do matrimónio (daquele que segundo a Igreja é indissolúvel). Depois da separação continuava a procurá-la para a maltratar, com o primarismo de um selvagem e a maldade de um biltre.

A pobre mulher queixou-se à GNR e ia para o hospital com o corpo dorido e a alma em farrapos quando o patife do ex-marido exigiu que lhe abrissem a porta da ambulância e disparou dois tiros de caçadeira com que feriu a filha e matou a vítima.

Preso e sem a caçadeira, dentro da esquadra, sacou de um revólver e matou o colega que o prendeu e que, por incúria, não revistou o assassino e o deixou armado.

Quem não lamenta um soldado morto em serviço, um agente da autoridade que o colega matou a sangue frio?

Mas como pode esquecer-se aquela pobre mulher que passou a vida a ser agredida e foi enterrada com uma curta referência, sem comoção nem multidões, com uma filha ferida, como se a vida dela valesse menos que a do soldado da GNR?

Bem sei. Coube-lhe ser mulher, parir e aceitar um homem a quem prometeu obedecer, perante deus. Onde está a igualdade de género que nem a comunicação social compreende?

É assim a vontade de deus e a mentalidade judeo-cristã que se mantém.

2 de Dezembro, 2009 Fernandes

O perigo do adventismo

Como muito bem diz o Carlos Esperança, Deus não existe, as religiões sim. Infelizmente. Através do seu rasto a história da humanidade é contada com sangue fogo e espada.

No seu livro: Las Religiones Asesinas; Élie Barnavi escreve:

«…um bom judeu ou um bom muçulmano, é aquele que obedece a um conjunto de preceitos; o bom cristão é aquele que tem a fé metida no corpo».

O problema começa quando, a verdade, e por conseguinte a tranquilidade aqui na terra, e a felicidade no outro mundo, só se alcançam através da “disciplina religiosa”, o mesmo é dizer: através da submissão às autoridades eclesiásticas e às regras por eles estabelecidas.

O judaísmo é uma religião étnica que não tem por objectivo formar prosélitos, impondo até, provas draconianas a quem se lhes queira juntar. Ao contrário das outras religiões, apenas estabelece um “contrato” com Deus, e os seus adeptos não se sentem na obrigação de levar a Boa Nova ao resto da Humanidade. Não fora o maldito proselitismo e a mania da universalidade de que as outras duas religiões monoteístas se pintam, e haveria certamente mais paz. Segundo as três religiões monoteístas: – está escrito, basta esperar que se cumpra a vontade divina, com ou sem a ajuda dos homens.

Os judeus esperam a vinda do Messias, os cristãos esperam o segundo advento do “seu” Messias. Até o Islão, cujo profeta “enclausurou” toda a série de mensageiros até então, deixou uma “oportunidade” para as figuras messiânicas – o Imã oculto dos Xiitas, o Mahdi, que o presidente Ahmadineyad espera com impaciência. O Messias dos cristãos é o próprio Deus; o dos judeus e muçulmanos é um chefe essencialmente político, humano e mortal. A característica comum é a capacidade de dividir a história da humanidade em duas partes; um antes e um depois, na tentativa de transformar o tempo “profano” em tempo “sagrado”.

O mais frequente nestes crentes é a atitude passiva, confiando na omnipotência divina, e na espera do advento do dito Messias. O problema é que há alguns mais impacientes que estão decididos a dar uma mãozinha ao “Senhor” com o objectivo de “antecipar” esse mesmo advento. A força destes movimentos adventistas vemo-la todos os dias, mais viva, e com mais angustia que nunca.

Nós, europeus, olhamos com leviandade o fundamentalismo norte-americano, suficientemente poderoso para colocar um Bush na Casa Branca, impor o embuste criacionista, darem shows televisivos 24 horas por dia e ainda têm tempo para colocar bombas em clínicas onde se pratica a interrupção voluntária da gravidez. Acusam os europeus de condicionarem a liberdade religiosa e legislarem sobre as seitas: – trampa para débeis mentais que lhes interessa proteger.

As calamidades que assolam a humanidade, ocorrem, não porque as vítimas se neguem a dar ouvidos aos profetas da desgraça do seu próprio bando (apesar de que estes se equivocam frequentemente), senão porque se recusam a acreditar nas ameaças dos seus futuros verdugos. Antes de 1940, quantos haviam lido o Mein Kampf? Quantos dos que o leram lhe deram crédito? Quantos lêem hoje a abundante literatura dos “Loucos de Deus”? Quantos acreditam no pequeno Hitler de Teerão, quando diz que vai “eliminar” Israel do mapa? (apesar de ser pouco provável que Israel deixe), mas que poderá levar aquela região e o mundo, a um cataclismo nuclear sem precedentes na história da humanidade. O cinismo é património da gente razoável, os fanáticos, por desgraça, são sinceros. A principal causa de uma guerra de religiões, não é o território, o dinheiro nem a forma de poder. – É a religião.

O que se passa na Europa, não é um conflito clássico em que a vitória no campo de batalha traz a paz ou pelo menos um tratado mais ou menos duradouro. Não nos defrontamos contra um governo que representa um povo, senão uma nebulosa que transmite uma ideia. Por isso a batalha das mentes é mais importante que a batalha dos minaretes. Apesar de que o fundamentalismo Islâmico não nasceu da miséria, ele prospera amparando-se na miséria e no subdesenvolvimento. Os valores da liberdade, igualdade e fraternidade ocidentais, arrancados durante séculos com tantos sacrifícios e sem os quais a vida não valia a pena ser vivida, devem ser defendidos com o mesmo afinco com que os seus inimigos tentam destruí-los.

30 de Novembro, 2009 Ludwig Krippahl

Sentido

Deus dá sentido ao universo. Pelo menos, é o que dizem os crentes. Mas não é claro o que isto quer dizer porque esta palavra pode referir orientação, significado, inteligibilidade ou algo que sentimos profundamente. E parece-me que alguns dos sentidos de “sentido” vêm baralhados na religião.

Partes do universo fazem sentido. Nem todas, porque há muito que ainda não compreendemos e que talvez nunca cheguemos a compreender. E, do que compreendemos, muito faz um sentido distante, que não mexe connosco. Sentido sem se sentir. Coisas como o número de estrelas da galáxia, o tamanho do electrão e a duração do universo estão tão fora da nossa capacidade de apreender subjectivamente que só as compreendemos na forma abstracta de representações simbólicas. O universo tem 13,500,000,000 de anos. Grande número. Tão grande que alguns preferem agarrar-se a um livro que o reduza a uns milhares de anos, mais ao alcance da imaginação compreensivelmente limitada dos antigos hebreus e mais dentro daquilo que podemos sentir. Dez mil anos sentimos que é muito tempo. Treze mil milhões de anos não nos diz nada, subjectivamente.

Compreendo que esta distância entre o sentido que a ciência dá às coisas e as coisas que conseguimos sentir desiluda alguns e os leve a imaginar algo mais humano para encontrar o tal sentido. A ciência unifica muitos fenómenos em teorias elegantes e rigorosas, tem grande poder explicativo mas parece demasiado abstracta por nos dizer coisas difíceis de imaginar. A Lua está a trezentos e oitenta mil quilómetros de distância. Tem três mil e quinhentos quilómetros de diâmetro e desloca-se à volta da Terra a quase quatro mil quilómetros por hora. Mesmo para quem sabe isto, são só números. É muito difícil olhar para a Lua e sentir estas dimensões ou sequer algo que se aproxime da imensidão que é até o nosso minúsculo cantinho do universo.

Por isso uma alternativa é encontrar sentido imaginando um deus que é amor. Amor sabemos sentir e podemos imaginar facilmente um ser que ama. Umas vezes caridoso e generoso, outras vezes ciumento e violento. Que age por paixão, ora com gestos fúteis de enorme sacrifício e dedicação, dando a vida só por dar (por amor!), ora exigindo tudo em troca, dedicação total ou o castigo eterno. Enfim, o deus da bíblia. Amor à medida da pequenez humana, sentido como nós o sentimos, com o bom e o mau à mistura.

Mas esta forma de procurar sentido não faz sentido. Sente-se, é verdade, mas não dá nada a compreender. Não esclarece o que observamos nem sequer encaixa com a imensidão do universo e a indiferença com que este nos trata. Este universo, é mais que evidente, não se porta com amor nem se importa connosco ou com coisa nenhuma. A hipótese de um deus que é amor não explica nada. Além disso, é errado julgar que é o deus que dá sentido. Mesmo que existisse tal deus, essa existência seria apenas mais um facto e esse deus seria apenas mais uma coisa, como o Sol, a Lua e as galáxias. O sentido, tanto o de dar a compreender como o de sentir, está nas nossas ideias e não nas coisas em si. A fé, no fundo, não é acerca dos deuses. É acerca da ideia de haver deuses.

Eu prefiro não abdicar do sentido que as coisas fazem só para as sentir. Prefiro não me agarrar a hipóteses sem fundamento nem utilidade explicativa só para despertar alguma emoção de assombro ou conforto. Por um lado porque seria enganar-me propositadamente. Por outro, e principalmente, porque não é preciso. Com um pouco de esforço, e provavelmente não mais que aquele que a fé exige, posso sentir na realidade um sentido tão forte como os que as religiões inventam com os seus deuses. Posso olhar a Lua e as estrelas e sentir algo da magnificência do que estou a ver sem ter de inventar o que estou a ver. Posso-me maravilhar por ser feito de átomos criados dentro de estrelas que explodiram há milhares de milhões de anos e sentir assombro pelo longo processo de evolução que me deu a capacidade de perceber as minhas origens.

É verdade que nunca serei capaz de sentir mais que uma pequena fracção daquilo que devia sentir. A vertigem que sinto, numa noite límpida, ao imaginar a distância a que estão as estrelas fica muito aquém do que devia sentir se a vertigem fosse proporcional à distância. Devia explodir de vertigem. Mas isto apenas demonstra as minhas limitações. Não justifica imaginar um deus de amor só para sentir mais qualquer coisinha.

Finalmente, as perguntas últimas. Qual o sentido disto tudo? Para que serve a nossa existência? E assim por diante. São perguntas fascinantes, mas nenhuma resposta que se encontre por aí poderá ser a resposta certa. Seja num livro sagrado, nas palavras dos deuses ou nas leis da natureza, nada que nos seja dado poderá dizer qual o sentido que isto tem para nós, pois esse terá de vir de cada um. São perguntas para ir respondendo, vivendo.

Em suma, os deuses não dão sentido. As hipóteses acerca deles não explicam nada e, mesmo que seja só para sentir, a realidade é melhor que as religiões que inventamos.

Também no Que Treta!

30 de Novembro, 2009 Fernandes

O fenómeno religioso

O término projecção designa, em psicologia, a operação através do qual um estado de consciência é desviado e localizado no exterior, seja do centro para a periferia, seja do sujeito ao objecto. O término admite bastantes matizes semânticas. Segundo J. Laplanche e B. Pontalis, a projecção, num sentido mais psico-analítico, é uma «operação através da qual o sujeito retira de si e localiza noutro, pessoa ou coisa, qualidades, sentimentos, desejos, inclusivamente objectos. As exigências de raciocínio do ser humano põem em marcha um trabalho de explicação intelectual que pode gerar processos de projecção mental. O homem pré-histórico perante fenómenos que ultrapassavam as experiências do dia-a-dia, procurava nos processos de projecção, acicatado pela pressão emocional ou por um estado de grande perplexidade, uma explicação ilusória de tais fenómenos.

A apresentação do fenómeno religioso, como uma operação alienatória – no sentido amplo do termo, inscreve-se decididamente, nas teorias circulares na génese dos fenómenos religiosos. Os numens animalis, não existem enquanto tais, são simplesmente projecções mentais do homem primitivo, ou não primitivo, em termos cronológicos, – e por conseguinte, não são reais, são meros ficta da consciência ingénua, ou seja, são fenómenos de consciência, dentro da própria consciência, projectados sobre objectos ou sujeitos exteriores.

Desde dentro das chamadas experiências religiosas, é certo que o crente, tanto o homem pré-histórico como o mutatis mutandis, pensa que na sua crença não existe nada de ilusório, pois as suas experiências religiosas são vividas como reais seja relativamente à alma, espíritos, numens ou deuses. Mas desde fora da crença, ou seja, criticamente, – o não crente, vê com evidência que sim, que existe ilusão, falsa consciência, sugestão, superstição ou alucinação, gerados por processos de projecção mental sobre objectos, sujeitos externos ou exteriorizados, processos que podem inscrever-se no campo da psicologia normal ou no da psicopatologia.

As representações zoomórficas nas chamadas religiões primárias e secundárias, projectam determinados animais com a reputação de sagrados desempenhando destacas funções na imaginação religiosa do homem. O animismo é o ponto em que se apoia a fabulação religiosa do ser humano, a matriz dos sentimentos convencionalmente designados como religiosos.

As crenças animistas povoam de tal forma a mente do ser humano, que se convertem numa segunda natureza passando daquilo que era ficção inconsciente, a realidade inquestionável. A história das formas religiosas gravita permanentemente, ainda que de forma oculta ou mascarada, sobre o subsolo das ficções animistas e a correspondente concepção dualista do mundo.

No homem primitivo, a imediatez genética destas formas de falsa consciência, é mais evidente, porque as formas primárias das fantasias da mente aparecem numa versão ingénua e naturalista, despidas todavia da roupagem mitológica das fabulações exuberantes da religiosidade secundária ou do aparato metafísico das especulações teológicas da religiosidade terciária, num contexto civilizacional de progresso moral. Efectivamente, a especulação teológica foi levantando no decurso da história, um edifício de tal magnitude que o seu fundamento originário desapareceu no meio de uma linguagem obtusa e obscura.

Não devemos escandalizar-nos nem cientifica nem piedosamente, se constatarmos que o fenómeno religioso se dissolve nos mecanismos psicológicos que o geraram.

 Neste processo, constantemente reforçado pelo trabalho da especulação teológica, o homem teve o seu espelho em Deus, – divinização do homem, – e Deus teve-o no homem, – antropomorfização de Deus.

O ser humano descobre então, que ele mesmo criou os deuses, revela-se assim a falácia da religião.