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  • 29 de Setembro, 2015
  • Por Carlos Esperança
  • Laicidade

Laicidade

Por

Ricardo Gaio Alves (Presidente da Associação República e Laicidade)

«A Constituição da República Portuguesa de 1976 procedeu a uma laicização tímida do Estado português que é, já de si, manifestamente insuficiente face ao desenvolvimento da sociedade, devido às razões aduzidas no início deste texto.

A Lei da Liberdade Religiosa (LLR) foi avançada com a justificação, entre outras, de criar as condições para uma melhor inserção das religiões trazidas pelos imigrantes, nomeadamente permitindo aos membros de minorias religiosas casarem-se no seu culto, darem aos filhos nomes da sua onomástica religiosa, ou serem dispensados do trabalho ou da escola nos dias das suas festividades ou no momento das suas orações. Todavia, a LLR, longe de apontar para a necessária neutralidade do Estado português no modo como lida com cidadãos que já não serão forçosamente católicos, aponta no sentido da comunitarização confessional.

Efectivamente, a LLR, ao ser aplicável a todas as confissões à excepção da Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR), e ao criar uma Comissão da Liberdade Religiosa (CLR) –dominada pela ICAR– que tutelará as relações entre o Estado e as confissões minoritárias, reafirma o estatuto privilegiado da ICAR e remete as confissões minoritárias (muitas vezes de origem imigrante) para uma posição de subalternidade. Além disso, ao criar a possibilidade de os contribuintes verterem parte do seu IRS para uma associação religiosa –a reconhecer pela CLR…– da sua escolha, confunde a relação entre o indivíduo e o Estado com a relação entre o crente e a sua comunidade religiosa.

Ora, o relacionamento entre o Estado e comunidades que, pela sua própria natureza, representam religiões e não cidadãos –e não são democráticas– deveria ser cuidadoso, pois a sua representatividade para falar em nome dos cidadãos não está assegurada. A título de exemplo, refira-se que o tratamento preferencial dado pelo Estado português à Comunidade Islâmica de Lisboa (CIL) face a outras associações muçulmanas é altamente questionável.

Efectivamente, o facto de a CIL ser hegemonizada por muçulmanos de etnia indiana, sendo a maioria dos muçulmanos residentes em Portugal originários da África sub-saháriana, tem causado tensões entre grupos que partilham, todavia, a mesma «identidade» confessional… Devemos igualmente interrogarmo-nos sobre a eticidade de canalizar o apoio social aos imigrantes (muitas vezes cristãos ortodoxos) para organizações da sociedade civil católica, sendo emblemático deste espírito a nomeação recente de um sacerdote católico para Alto Comissário para a Imigração e Minorias Étnicas. Seria mais prudente e democrático fomentar-se a relação directa do cidadão imigrante com o Estado, e não instigá-lo a converter-se à religião tradicional do país de acolhimento ou a fechar-se na sua comunidade cultural de origem…

Com vista a uma plena integração dos imigrantes e seus descendentes, o Estado português, ao lidar com os cidadãos residentes no seu território, deve abster-se de lhes presumir uma pertença confessional, e garantir as condições que impeçam as crispações confessionais e promovam a necessária coesão social, nomeadamente através de uma escola pública rigorosamente laica –que seja um espaço de convivência entre futuros cidadãos de diferentes origens culturais. Neste espírito, o Estado deve abster-se de subsidiar ou incentivar a formação de escolas confessionais que apenas levarão à cimentação dos guetos que se deseja demolir.

Através da escola pública e laica –e tendo em vista a integração harmoniosa dos imigrantes– o Estado deve contudo precaver-se de impôr uma «cultura de referência» fossilizada. Nomeadamente, a visão do Islão como um inimigo histórico de Portugal em muitos manuais escolares não ajuda à identificação com a República portuguesa de crianças oriundas de meios muçulmanos. Além disso, a escola da República deve fornecer aos futuros cidadãos os instrumentos que lhes permitam encontrar o seu lugar num país inevitavelmente diverso e multicultural e, se o desejarem, emanciparem-se da sua cultura ou religião de origem. Registe-se a este propósito que a aceitação da multiculturalidade da sociedade portuguesa não deve levar a uma multiculturalização do Estado e do Direito.

Seria evidentemente um recuo civilizacional aceitar –sob o argumento do reconhecimento das diferenças religiosas ou culturais– mutilações sexuais ou um papel menorizado das mulheres, mesmo na sua esfera familiar. A integração futura dos imigrantes ficará resguardada se, pelo contrário, o Estado tratar os imigrantes como cidadãos individuais, e não como membros de comunidades confessionais. Com esse objectivo, é necessária a laicização do Estado português.»