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As Guerras da Fé (2/6)

Nicole Guardiola que acaba de ser publicado na revista “AFRICA 21”, edição n.º 84 de Abril 2014 e com o título “As Guerras da Fé.

A segunda evangelização de Africa

 

Nunca houve tantos cristâos no mundo e Africa é o continente onde o cristianismo ganhou mais adeptos nas ultimas décadas. Mas as Igrejas historicas e em particular a Catolica estão a perder terreno em proveito dos «neo cristãos» evangelicos e das seitas que semeiam a dúvida e o caos com o seu proselitismo agressivo e intolerante.

Em 1910 os cristãos de Africa eram cerca de 9 milhões e representavam 1,4 % da cristiantade. Um século mais tarde eram mais de 500 milhões ao sul du Sara, ou seja mais de metade da população e 23,6 % dos 2500 milhões de seguidores de Cristo – catolicos, protestantes ou ortodoxos- recenseados no mundo. A Nigeria com 80,5 milhóes de cristãos, a RDC (63,1) e a Etiopia (52,6) figuram no Top Ten das nações com o maior numero de fieis encabeçado pelos Estados Unidos (com 247 milhões) e o Brasil ( 176 milhóes).

Os protestantes são, de longe, os que mais contribuiram para esta expansão, dado representam 35,9 % dos cristãos africanos, contra 21,4 % de catolicos e 4,9 % de ortodoxos (concentrados essencialmente na Etiopia e no Egipto).

Não é preciso recorrer ao relatorio publicado em 2012 pelo Pew Forum on Religions, um instituto americano que estuda a evoluição das religões e do seu peso no mundo, para tomar conciencia de uma realidade bem visivel em todo o continente, dos suburbios das grandes cidades africanas á mais remota aldeia do mato. As igrejas proliferam em todo o lado, monumentais ou simples casebres, mas marcando todas a sua presença com o seu nome em letras grandes.

Os missionarios do século passado – catolicos ou protestantes – teriam alguma dificultade em reconhecer os seus discipulos nestas assembleias ruidosas que dansam, choram e entram em transe, gritando e cantando o seu amor por Jesus e invocando o Espirito Santo. E as Igrejas «historicas» não sao boas conselheiras para ajudar os governos africanos a por um minimo de ordem nesta cacofonia , separando o trigo do joio, a religião do charlatanismo, e as igrejas das seitas.
Novas igrejas ou seitas?

A doutrina evangelica que teve origem nos Estados Unidos tornou as diferenças mais indecifráveis. Os evangelicos não se tornam cristãos por um baptismo classico. Se tornam «verdadeiros cristãos» por via de um encontro directo com Jesus com um «homem de deus» que os ajuda a entender a Biblia, ver e ouvir Deus , abrir-se ao Espirito Santo e entrar numa «nova vida» (por isso são chamados Born Again, renascidos, e a nebulosa á que pertencem «Igrejas do Despertar»).

Ouvida a mensagem qualquer um pode escolher a igreja que mais lhe convem ou autoproclamar-se «profeta» e criar a sua. A Biblia que deve ser seguida á letra e o «amor de Jesus» que é incomensuravel são os argumentos avançados pelos «neo-cristãos» para rejeitar as acusações de charlatanismo. È Espirito Santo que confere o poder de converter e fazer milagres e segundo a Biblia, o espirito sopra onde quer: a justiça e as leis dos homens não tèm competencia nesta materia
Segundo os estudiosos da historia das religiões o sucesso estrondoso deste novo cristianismo é o resultado de uma dupla revolução iniciada logo apos a segunda guerra mundial.

A emergencia dos Estados Unidos como primeira potencia economica e militar do Ocidente reforçou nos cidadãos deste pais profundamente cristão a conviçcão de constituir um povo abençoado por Deus e vocacionado para conduzir os destinos do Mundo. Nesta visáo messianica da historia, a Casa Branca deveria ser a «Nova Jerusalem», o farol que iluminaria os povos em busca do caminho para sair das trevas.

Predicadores como Bill Graham ou Pat Roberson , criador da CBN (Christian Broadcasting Network) e da Christian Coalition(em 1988) conquistaram milhões de americanos e depois de ter sido conselheiros de vários presidentes conseguiram colocar o «born again» George W.Bush no poder. Nâo perderam muito com a vitoria do democrata Barrak Obama porque foi Rick Warren, considerado como o pastor mais influente dos EUA e o verdadeiro sucessor de Bill Graham o novo presidente escolheu para pronunciar a oração da sua primeira ceremonia de investidura, que foi impregnada de exaltação messianica.

È sob a influencia desta corrente que conquistou o espaço publico americano que a Casa Branca passou a seguir com atenção os progressos das igrejas e seitas evangelicas no resto do mundo, criando para o efeito um observatorio oficial da liberdade de culto no mundo que publica anualmente um relatorio com a chancela do Departamento de Estado onde são condenadas todas as politicas e medidas alegadamente anti-religiosas tomadas por estados tão dispares como a Arabia Saudita, Russia, China ou França.

Os evangelicos á conquista do mundo

A outra revolução, analisada pelo historiador britanico Philip Jenkins, da Universidade de Cambridge no seu livro «The Next Christendom» ( A cristandade do futuro) foi provocada pela demografia e abalou a base das igrejas historicas ao deslocar o centro de gravedade do cristianismo do Ocidente, prospero e liberal, para o hemisferio sul pobre e flagelado pela miseria, as doenças , a violencia e os abusos de poder.

A estes «danados da terra» , desiludidos dos «amanhas radiosos» prometidos pelos revolucionarios nacionalistas e/ou marxisantes (incluindos os teologos da libertação) as Igrejas cristãs «historicas» não tinham a oferecer mais do que paciencia e resignação, e a esperança do Paraiso no termo de uma vida de dores e sufrimentos.
Os evangelicos, pelo contrario, dispoem de um arsenal de respostas imediatas e de um Deus sempre presente e disponivel para responder aos pedidos mais trivais : a cura para os doentes, o fim das infidelidades e da violencia conjugal, o sucesso nos estudios e nos negocios

Inicialmente olhados de soslaio como ponta de lança do «imperialismo americano» (falou-se da «Jesus Connection» como braço da CIA) os novos missionarios são recebidos de braços abertos por uma juventude avida de modernidade e consumidora de outros produtos emblematicos da «american way of life» : fast food, coca-cola, tecno e telemoveis. As suas posições rigoristas nos grandes temas societais contra o divorcio, o aborto, a contracepção, a homosexualidade reconforta os sectores mais conservadores desnorteados perante o que chamam de « degradação dos valores e costumes tradicionais», a droga, o SIDA …
Os resultados estão a vista. Da America Latina ao Japão, passando por Africa e Europa as igrejas evangelicas não param de crescer. Já contam mais de 500 milhões de fieis e ao ritmo actual de mais de 50 000 conversões por dias dentro de duas décadas mais de metade dos cristãos de todo o mundo serão evangelicos..

Se a influencia anglosaxonica continua preponderante graças ás universidades, as edições e as novas tecnologias de comunicações, os norte-americanos já perderam o monopolio da mensagem e estão a perder a liderança em materia de evangelização. A Coreia do Sul é actualmente quem fornece o maior contingente de missionarios evangelicos a tempo completo(12 000), o Brasil e a Nigeria não estão longe (ver caixa) e criaram as suas proprias «multinacionais» religiosas.
A igreja catolica, que já têm as suas proprias igrejas carismaticas, poderá render-se a este neo-cristianismo sob a batuta do Papa Francisco que já aconselhou aos catolicos de andar sempre com a Biblia no bolso e exorta os sacerdotes á se virar para os pobres e os marginalizados com amor e compaixão.

A cruzada em Africa

África oferece um terreno de eleição para o desenvolvimento das igrejas neo-cristas por razóes culturais, sociais e até politicas.
Em primeiro lugar as crenças tradicionais africanas não estabelecem uma divisão intransponivel entre natural e sobrenatural, entre o mundo dos vivos e o dos antepassados e espiritos tutelares. Depois, e desde os alvores da evangelização, o continente gerou os seus proprios «profetas» – como Kimpa Vita , queimada viva pelos portugueses em 1706 cuja estatua se ergue á entrada da cidade angolana de Mbanza Congo – e as suas proprias igrejas separadas e em aberta rebelião contra as igrejas catolica ou protestantes importadas da Europa pelos colonizadores, o seu deus branco e o seu clero comprometido com o poder colonial «Liturgia oral, teologia narrativa, sentimentalismo agudo, comunitarismo» são segundo o pastor baptista Manuel Escobar, presidente da Aliança Biblica Universal algumas das razões que levam os africanos a se sentir bem e felizes nas «assembleias de Deus». Pregadores exaltados, invocações simples e ritmadas levam o auditorio ao rubro, ao transe e a este estado de conciencia alterado em que o «milagre» pode acontecer a todo o momento e se tornar visivel para todos, não se estáo longe de reproduzir o ambiente de um bom batuque que confere ao bruxo ou chamam africano o «poder» de comunicar e interagir com os espiritos e as forças protetoras do clã ou da tribo.

Mas as novas igrejas oferecem ao africano «destribalizado» mais do que um código de conduta alternativo, novos tabus e uma «familia de acolhimento» Vendem sonhos e esperanças de vida melhor neste mundo e não no alem, numa especie de livre-comercio no qual os favores divinos podem ser trocados por serviços. O que explica o recurso as tecnicas de marketing e ás concentrações de fieis : a força e a riqueza da igreja (e dos seus pastores) são benções, dádivas de Deus. Para serem recompensados da mesma forma os pobres, os doentes, os aflitos devem esforçar, dar mais – amor, dinheiro, dedicação, oração- . O enriquecimento de alguns (poucos) deixa de suscitar suspeitas e inveja, a ostentação desta riqueza um dever, uma forma de louvar o poder do Espirito Santo e de agradar a Jesus!

E não faltam predicadores capazes de convencer os politicos de a conquista e a conservação do poder dependem menos dos votos dos seus concidadãos que das intenções e projectos do Espirito Santo em relação á nação.
Os cavaleiros do Apocalipse

O aspecto mais problematico da doutrina evangelica – e das outras Igrejas aparentadas como os Mormons e as Testemunhas de Jeova é a sua intolerancia em relação a todas as outras religiões baseada numa interpretação literal (fundamentalista) da Biblia e em particular o Antigo Testamento e o Apocalipse.

Obsecados pelo «Fim dos Tempos» que julgam proximo, sobretudo depois dos atentados do 11 de setembro 2001, os «neo-cristãos» que se atribuiram a missão de preparar o regresso do Messias (que só acontecerá no termo de uma guerra em que todos os demonios e o proprio Diabo serão exterminados) reforçaram a sua militancia evangelizadora.

A tarefa não parece sobrehumana em relação aos Estados Unidos onde cerca de 90% da população cree em Deus mas é muito mais árdua e perigosa nos paises onde os propagadores da «verdadeira fé» estão em minoria e devem enfrentar fieis de outras creenças, não menos convictos da superioridade da sua religião. Em «terra de Islão» o proselitismo e a conversão são crimes que os estados que obedecem a charia punem de morte.

Os evangelicos se declaram dispostos ao martirio para levar a fé salvadora aos povos mais renitentes e os mais radicais não repugnam a recorrer à força para combater os «falsos profetas», expulsar os demonios e destruir todos os idolos. Já o fazem a pequena escala em vários paises africanos onde destruiram os terreiros e orixas do culto vodoo, queimaram as florestas sagradas , mataram bruxos e bruxas e torturaram e/ou ostracizaram crianças acusadas de serem «possuidas por espiritos malignos».

O choque dos fundamentalismos cristão e islamico pode ser ainda mais violento e dar lugar a verdadeiras guerras civis em vários paises africanos. O que acontece na Republica Centrafricana é uma pequena amostra do que pode vir a acontecer se a Nigeria se este pais vier a implodir.