Loading

Dignidade, graças a Deus.

Há uns posts atrás, citei o catecismo da Igreja Católica, «A razão mais sublime da dignidade humana consiste na sua vocação à comunhão com Deus. […] O homem é, por natureza e vocação, um ser religioso. Vindo de Deus e caminhando para Deus, o homem não vive uma vida plenamente humana senão na medida em que livremente viver a sua relação com Deus.» Por isto afirmei considerarem que «não sou plenamente humano, não estou à altura do próprio ser nem poderei viver de forma livre e plena», visto ser ateu. Entretanto, o Alfredo Dinis, citando o que disse ser o «Catecismo da Igreja Católica», apontou que «”Deus não faz distinção de pessoas” (At 10, 34; cf. Rm 2, 11; Gal 2, 6; Ef 6, 9), pois todos os homens têm a mesma dignidade de criaturas à Sua imagem e semelhança»(1). O trecho que o Alfredo citou não está no catecismo (2) mas sim no Compêndio da Doutrina Social da Igreja (3). No entanto, como não sei a posição relativa destes documentos na escala da infalibilidade católica, vou considerar que a proposta católica é a de que eu sou exactamente tão digno como o Alfredo, por sermos ambos imagem do deus católico, apesar de eu não estar à altura do próprio ser, não viver como ser plenamente humano e me faltar aquela vocação que propõem ser a «razão mais sublime» da minha dignidade.

O primeiro problema, como de costume, é epistémico. Para a Igreja Católica determinar que a minha dignidade é igual à do Alfredo, por este critério, tem de determinar que somos igualmente imagem de Deus. Sabendo tão pouco acerca de mim e ainda menos acerca de Deus, não me parece haver católico que consiga justificar essa conclusão. Principalmente quando a própria Igreja afirma que eu não tenho uma vida plenamente humana nem estou “à altura do ser”. Se Deus criou os humanos à sua imagem, quem não está à altura de o ser será certamente uma imagem de pior qualidade. Por outro lado, também não me parece que Deus seja católico. Tal como os ateus, Deus não louva um deus, não depende de padres ou bíblias para orientação moral, não venera santos ou Jesus nem se ajoelha perante mistérios da fé. Se Deus existir até pode ser mais parecido comigo do que com o Alfredo por ser ateu como eu. Sem evidências concretas, não podemos concluir que eu e o Alfredo somos igualmente “imagem de Deus”.

Além de afirmarem como certa esta hipótese acerca da qual nada podem saber, os católicos criam um problema ainda mais sério ao fazer toda a ética depender da existência desse deus. Isto é uma chatice quando se quer discutir se ele existe. Eticamente, para mim tanto faz se Deus existe ou não existe. A dignidade é a propriedade de merecer consideração, respeito e, por isso, direitos, e eu considero que esta surge automaticamente do próprio problema ético de respeitar a subjectividade dos outros. Não importa se são imagem de algum deus, se são humanos, golfinhos ou macacos, ou mesmo se só existirão numa geração futura. Assumir responsabilidade pelo que fazemos implica reconhecer a dignidade de qualquer sujeito que seja afectado pelos nossos actos. Isto tem duas implicações importantes para a discussão com os crentes. Primeiro, permite-me discutir se Deus existe ou não existe de forma objectiva, olhando para os factos, sem sentir os meus valores ameaçados pelo resultado. Além disso, permite-me encarar as divergências éticas que tenho com os crentes como divergências pessoais, sem ter de assumir que alguém peca só porque discorda de mim.

Quem levar a sério esta doutrina católica, ou outra semelhante (estas coisas são comuns na religião), não poderá ter a mesma atitude. Por um lado, porque a hipótese de Deus não existir é mortal para os seus valores. Ao assumir que a dignidade humana vem de sermos imagem de Deus e que só somos plenamente humanos na relação com Deus subordina a estas premissas morais subjectivas a questão factual da existência de Deus. Isto torna impossível discuti-la de forma objectiva. Por outro lado, ao assumir que a moral é uma estipulação divina, condena a priori qualquer dissensão ética. Discordar acerca da existência de Deus não é um direito ou uma opinião legítima. É um pecado e, em muitas religiões, é mesmo o pior pecado de todos.

Amarrar as alegações factuais do dogma religioso aos princípios fundamentais da moral é aldrabice. A dignidade humana vem da consideração que cada um tem pelos outros e não dos deuses que os homens inventam. Mas esta aldrabice confere uma resistência enorme ao dogma religioso porque convence o crente de que precisa do dogma para ter ética e que questionar o dogma é em si imoral. Ou, como diria Pio XII, «A ninguém, pois, seja lícito infringir esta nossa declaração, proclamação e definição, ou temerariamente opor-se-lhe e contrariá-la. Se alguém presumir intentá-lo, saiba que incorre na indignação de Deus [omnipotente] e dos bem-aventurados apóstolos Pedro e Paulo»(4). Daí a grande dificuldade em discutir com os crentes o fundamento factual dos dogmas que defendem.

1- Treta da semana: humano ma non troppo, post e comentários.
2- Catecismo da Igreja Católica
3- Compêndio da Doutrina Social da Igreja
4- Definição do dogma da assunção de nossa senhora em corpo e alma ao céu.

Em simultâneo no Que Treta!