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O sentido

Este termo é muito usado na apologética cristã. Por exemplo, na homilia pascal de 2009, a propósito do conflito entre a criação bíblica e a teoria da evolução, José Policarpo disse que « A narração bíblica da Criação […] é uma revelação do sentido profundo da criação e da vida e não a narração do modo como as coisas aconteceram». Acrescentou também que «o homem é a plenitude da criação e o seu sentido último», que «Em Cristo ressuscitado, todo o tempo adquire o sentido definitivo», e que «nós sabemos que o sentido radical e definitivo está em Cristo ressuscitado.»(1). Esta palavra é muito útil na apologética porque se pode equivocar facilmente vários sentidos de “sentido”.

Quando falamos no sentido da vida ou em dar sentido àquilo que somos e fazemos, referimos valores que não se podem extrapolar de uma pessoa para outra. Para um, o principal pode ser a família ou a comunidade. Para outro o que dá sentido à vida pode ser a arte, a carreira ou o desporto. Neste sentido de “sentido”, o sentido das crença acerca de qualquer deus é estritamente pessoal. Quem as tem está no seu direito e não deve satisfações por isso, mas também não tem legitimidade para as afirmar como conhecimento ou de alegar que têm alguma relevância para os outros. Isto basta para a fé individual mas é insuficiente para a religião.

A religião precisa de “sentido” num sentido mais objectivo. Aquele que referimos quando dizemos que uma explicação ou esclarecimento faz sentido, e que é mais do que uma preferência pessoal. Por exemplo, algumas espécies de formiga armazenam comida para alturas de escassez, ou para sobreviver no Inverno. Podemos explicar isto com na fábula de Esopo, assumindo que as formigas são inteligentes e precavidas. No entanto, esta explicação é inconsistente com o que sabemos da inteligência dos insectos. Faz mais sentido explicar este comportamento como um reflexo, sem propósito ou consciência, que surgiu pela eliminação gradual das variantes menos capazes de acumular alimentos e que, por isso, deixaram menos descendentes.

As religiões precisam de algo que passe por explicações que façam sentido. Daquelas que qualquer pessoa racional, conhecendo os mesmos factos, reconheça como válidas. Este é o grande trunfo da ciência: quando as explicações fazem sentido tanto faz que gostem delas ou não. As religiões precisam de imitar isto para que pareçam legítimos os seus alegados conhecimentos e as pretensões dos seus profissionais à categoria de peritos nos respectivos deuses. Mas, neste sentido, as religiões falham redondamente.

Os dogmas religiosas não fazem sentido. As histórias da criação, o suposto sacrifício de Jesus, o Corão que Allah ditou a Maomé e tantas coisas do género, são só fábulas como as de Esopo (só que sem a honestidade de o admitir). São marcos culturais importantes, revelam o pensamento de quem as inventou e mostram o que, nessa altura, essas pessoas consideravam dar sentido à sua vida. Mas não revelam nada acerca da origem do universo, de quem o criou, do propósito disto tudo, da existência de deuses ou da vida depois da morte. São apenas expressões dos anseios e crenças de quem sabia ainda menos do que nós acerca destas coisas, e quase nada acerca do resto.

É legítimo que, mesmo hoje, haja quem adopte estas crenças e valores. Cada um é livre de acreditar e julgar o que quiser, por muito disparatado que seja. Mas só é legítimo enquanto for uma opção pessoal e não prejudicar os outros. O problema de extrapolar do “eu acredito” para o “vocês devem fazer” é horrivelmente evidente nos países muçulmanos e em atrocidades várias ao longo da história. E é também um problema em países como o nosso, com o dinheiro público que se desperdiça em religiões, a educação religiosa de crianças e leis que respeitam mais o direito a crer em deuses do que o direito de duvidar disso.

Coisas como «só em Cristo se penetra no mistério do homem», «revelação do sentido profundo da criação e da vida» ou «Verbo eterno que se exprime na Palavra revelada da Escritura»(1) aproveitam o sentido que os crentes encontram na sua fé e nos seus valores pessoais para os persuadir de que estas coisas fazem sentido e de que estes “peritos” têm uma compreensão profunda desta matéria. É treta. São especulações absurdas e infundadas, porque não dizem nada de concreto nem se baseiam em evidência alguma, e são uma caricatura da sabedoria, porque o conhecimento não é algo que se obtenha pela reinterpretação demagógica de superstições antigas.

Para os ateus e agnósticos não serve de nada escrever isto. É pregar ao coro. Mas pode ser que leve alguns crentes a pensar no assunto. Pode ser que olhem para as outras religiões e vejam como os imames, rabinos, pastores e cardeais (cada um risque o que considerar a mais) mantêm autoridade sobre tanta gente dizendo saber o que obviamente não sabem. Pode ser que algum crente note a semelhança entre este truque e o negócio dos professores Bambos, dos astrólogos e cartomantes. E até pode ser que perceba que pode manter a sua crença e os valores que dão sentido à sua vida sem ter de enfiar barretes nem perder tempo com quem quer vender regulamentos para a fé.

1- Rádio Vaticano, Criação bíblica e darwinismo: relação analisada por D. José Policarpo na vigília pascal, negando contradições entre as duas “teorias”.

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