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A vida de José. Crónica piedosa

Naquele tempo, em Nazaré, aparava tábuas um carpinteiro, com delongas, que a crise da construção civil estava para durar. A cidade regurgitava de taumaturgos, pregadores, profetas e mendigos, que os tempos eram difíceis e urgia fazer pela vida.

José, na pacatez de quem se habituara a esperar pelas encomendas, ruminava o desgosto da miséria em que caíra, descendente que lhe diziam ser do rei Salomão, personalidade que ficava bem em todas as árvores genealógicas mas não mitigava a fome a ninguém.

Às vezes soía o carpinteiro abandonar as alfaias do ofício e entrar sorrateiramente em casa para solicitar à mulher o cumprimento das obrigações matrimoniais. Demovia-o ela por mor da enxaqueca que a apoquentava, da dor de dentes que lhe provocava a cárie do segundo molar ou do estado de impureza que invocava. E lá voltava o carpinteiro para o ócio da oficina que as encomendas tardavam em chegar e era inútil a faina.

Quando um dia esperava a compreensão da mulher ouviu dela o anúncio da gravidez, um milagre que a própria não sabia explicar e que ele aceitou mal, apesar da conversa que a casta esposa tivera com o anjo que trazia o correio do Paraíso, de nome Gabriel, e que tanto anunciava uma gravidez a uma virgem, mulher de um carpinteiro judeu, como ditaria em árabe, séculos depois, a vontade de Deus a um rude condutor de camelos.

E o José, na sua infinita paciência e melancolia, ensimesmado, refugiava-se na oficina, e pensava na vida. Um dia poisou-lhe nas tábuas por aparar uma pomba. Pegou num martelo e atirou-lho com tal força e pontaria que a pomba, a sangrar do bico, logo se finou.

Chegou o anjo Gabriel, furioso como nunca se vira, a abanar as asas e a levantar poeira, a avançar irado para o carpinteiro. Este, calmo e decidido, impediu o anjo de falar.

– Não te metas na minha vida, são contas velhas.