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Adeus solidão (Crónica)

O padre Bernardo começou a desleixar-se no breviário, a falhar os mistérios do terço e a perder o fio à meada nas homilias. Valiam-lhe a fé e a ignorância dos crentes que apenas comentavam que passara do terceiro ao quinto mistério podendo frustrar os pios propósitos do terço: a conversão da Rússia e a longevidade dos governantes.

O latim parecia legítimo embora um seminarista tivesse dito aos pais que o padre mastigava o credo e se enredava na salve-rainha. Não o acreditaram, era heresia, podia lá enganar-se o oficiante! Não fora a musicalidade e o acto de contrição parecia igual aos responsos por um cristão que se finasse e às ladainhas com que invocava a Virgem e os santos.

O padre andava em desassossego, fervilhando desejos, castigado pelas hormonas, a sair de rastos das confissões, embevecido pela Joana Aragona, catequista que lhe engomava os paramentos, as camisas e o demais que fosse preciso e a melhor a ministrar a catequese.

Terá pensado confidenciar-lhe os desejos, misérias da carne, e fazer-lhe uma elegia, mas dissuadiu-o do poema o medo do escândalo ou o embaraço da rima e do desabafo o rigor do múnus. Não terá passado de amor platónico aquela cisma de quarentão. Doutro modo seriam diferentes a alegria, o nexo das homilias e as nódoas na batina.

Fechou-se em casa e quase só saía para o exercício do múnus: levar o viático, encomendar um finado ou ir à igreja para os actos litúrgicos; e esquecia-se de retribuir os bons-dias lhe dê Deus, Sr. Abade, com que era saudado enquanto ruminava, absorto, o desalento do celibato, que os paroquianos tomavam por distracção pia com orações ao divino Espírito Santo.

Às vezes, já ao final da tarde, o padre Bernardo ia conversar com o Sr. Jaime a quem alguns anos de seminário tinham imunizado da fé e arredado dos sacramentos. Batia ao portão e logo o cão saltava às grades e ladrava, enquanto o padre gritava: Ó Sr. Jaime!!!, Sr. Jaaaime!!! e, de dentro de casa saía o dono a dizer, entre, não tenha medo, Sr. Abade, o cão é castrado, mas o padre ficava nervoso. Que importava a castração a quem só lhe temia os dentes? Serenava quando via o animal açaimado, antes de lhe abrirem o portão.

Sentados a uma mesa de ferro, ficavam ali a conversar no corredor de pedra que separava a casa do quintal e das cortes dos animais.

A Ti Amália, logo que via o padre pedia-lhe a bênção, beijava-lhe a mão, e apressava-se a chamar a Luísa que corria a servir o patrão e o Sr. Abade, que se deliciava com o queijo de ovelha, o presunto, o pão centeio e uns copos de tinto que esvaziavam garrafas de vinho de boa colheita. A Ti Amália ia já nos oitenta anos, embora não tivesse certezas e, graças a Deus – como dizia -, o seu corpinho nunca vira água dos tornozelos para cima nem do pescoço para baixo, vaidade beata que gostava de proclamar. Talvez por isso estivesse dispensada da cozinha e destinada aos serviços externos.

A Luísa era outra louça. Deitava olhares provocadores ao padre e só a presença do patrão a coibia de outros atrevimentos, embora andasse com a cabeça no ar por um rapaz que lhe fez olhinhos na festa de S. Sebastião e que dançara com ela ao som da concertina do Zé Pinheiro, que animava os bailes da aldeia e era solicitado nas paróquias vizinhas.

Era uma moça dos seus vinte anos, demasiado tenra para o abade mas afoita, a dizer-lhe que o vinho sempre o aquecia, perante o sorriso cúmplice do patrão que recebia as visitas de todos os padres que passavam pela aldeia sem nunca as retribuir.

A Luísa era ladina e andava mortificada, esquecera-se do nome do rapaz, daquele do baile da festa de S. Sebastião, qualquer coisa terminada em ão – pensava ela –, e o mancebo chamava-se Cabral, José Cabral, de sua graça, em ão era o santo, e a Luísa nem queria acreditar como se confundira quando a Ti Amália lhe disse que o Cabral estava na aldeia e perguntara por ela.

Foi em tão má altura que chegou aos ouvidos da Luísa o nome daquele José que, momentos depois, o vinho errou o copo do padre e acertou na batina e ela, aflita, a limpar onde não devia, com o guardanapo molhado, e a insistir, sem se dar conta do sítio, da inutilidade da fricção nem do padre a dizer que não fazia mal, não tinha importância. Ela tinha a cabeça e as ânsias longe dali e o abade já tinha agasalhado a mucosa gástrica e atestado o buxo, privado que estava do aconchego de outras mucosas, mais por temor do escândalo que do Inferno.

O Sr. Jaime deu-se conta da agitação da Luísa e achou por bem dispensá-la, que fosse dar uma volta, a Amália ajuda e tira a mesa, e continuou à conversa com o reverendo que ainda se demorou dois cálices de vinho fino que, entretanto, veio acompanhado de bolos para enxugar o estômago e rematar a conversa.

A Luísa aproveitou a generosidade do patrão e esgueirou-se pela porta da adega, apressada em busca do encontro, quer ele se chamasse qualquer coisa terminada em ão, ou Cabral, as hormonas desprezam os nomes e os apelidos e as noites de lua cheia não reclamam que se pronunciem nomes.

A noite ia alta quando a Luísa, sorrateiramente, com os cabelos em desalinho e o vestido amarrotado, entrou por onde saíra e se dirigiu à alcova onde as estrelas continuaram a brilhar na escuridão do quarto, só para ela, e a face mimosa resplandecia de felicidade esquecida do jantar que não tivera.

Poucos meses passados o padre sumiu-se. Levou com ele, não a Joana Aragona que os anos mantiveram casta e devota, mas uma paroquiana mais nova e menos temente a Deus, a quem, entretanto, dera explicações para fazer o 5.º ano. Foi um burburinho na aldeia mas o gáudio compensou a privação temporária da assistência espiritual.

Não tardou que de Angola viessem notícias de uma criança nascida.

Jornal do Fundão, hoje.