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Aborto: uma questão de Direito

«Concebida como referência constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais, o conceito de dignidade da pessoa humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo-constitucional e não a uma qualquer ideia apriorística do homem» Vital Moreira e J. J. Gomes Canotilho, Constituição da República Portuguesa Anotada, 1° volume, Almedina, Coimbra.

No próximo referendo de dia 11 de Fevereiro os portugueses são chamados a decidir nas urnas se deve ou não ser descriminalizada a interrupção voluntária da gravidez, vulgo aborto, até às 10 semanas de gravidez.

E é tão só esta a questão a que temos de responder! Sem folclores falaciosos a contaminar a discussão, devemos reflectir se a interrupção da gravidez até às dez semanas, praticada sobre um embrião -até às oito semanas de gestação – ou um feto, deve ser ou não considerada um crime!

Uma vez que o direito penal deve ser totalmente independente de considerações morais ou religiosas e que crimes sem vítimas – assentes em morais religiosas que criminalizam ou proibem pecados como a homossexualidade, o aborto, o divórcio, o adultério, a fornicação, etc. – não devem ser penalizados, a reflexão que deveria ser feita incide sobre o que é o ser vivo – e ninguém duvida que se trata de um ser vivo – que será abortado.

Isto é, dever-se-ia fazer uma reflexão ontológica sobre o embrião ou feto, decidir se é já uma pessoa, como o consideram os pró-prisão – que se referem falaciosamente ao abortamento de um bébé -, ou apenas uma forma de vida humana que ainda não é uma pessoa. Se esta forma de vida sobre a qual se exerce o aborto ainda não é uma pessoa não faz sentido criminalizar o aborto e devemos deixar ser a mulher a optar por continuar ou não uma gravidez indesejada! Deveremos deixar à mulher a escolha difícil de consciência sobre o abortamento de um ser vivo que não é uma pessoa mas é uma forma de vida humana, numa sociedade que referendaremos igualmente ser uma que reconhece a mulher como um «ser autodeterminado e capaz de escolhas responsáveis e morais»!

Mas esta opção só pode ser tomada se considerarmos que o embrião ainda não é uma pessoa! Ninguém, excepto os pró-prisão mais fanáticos que ululam ser o embrião um «bébé» mas aceitam o «assassínio» de um «bébé» se decidido por pessoas «competentes» e capazes de escolhas «morais»- categoria de onde excluem as «fúteis» mulheres-, preconiza a pena de morte!

Se chegarmos à conclusão que um embrião é uma pessoa então, quaisquer que sejam as implicações dessa conclusão, problemas de saúde pública ou outros, o aborto deve ser considerado um assassínio e proibido em quaisquer circunstâncias excepto como legítima defesa, isto é, excepto para salvar a vida da mulher!

Mas em que critérios nos devemos basear para classificar esta forma de vida humana? Em critérios religiosos ou em critérios assentes na ciência e na razão? Em que ética devemos assentar a decisão, numa ética secular racional ou numa ética religiosa dogmática?

Relembro que desde o Iluminismo os filósofos defendem dever a ética (e mesmo a moral) ser fundamentada não em valores religiosos mas sim na compreensão da natureza humana. Foi o falhanço do projecto renascentista que forneceu o pano de fundo no qual a nossa cultura se torna inteligível: uma cultura onde o debate ético é visto como indissociável da religião e esta continua transposta para o Direito, mesmo em Estados supostamente laicos.

Uma ética secular racional será muito mais forte que uma moral dogmática religiosa, até porque os tempos conturbados que vivemos corroboram Feuerbach: «quando a moral se baseia na teologia, quando o direito depende da autoridade divina, as coisas mais imorais e injustas podem ser justificadas e impostas».

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(continua)