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Comei frango, e tende fé

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) se recusa a incluir nos formulários do censo uma opção específica para os ateus, obrigando-os a se identificarem juntamente com todas as posições diferentes descritas por “sem religião”. Categorias tão pequenas como os hinduístas, dois quais existem poucos milhares no país, merecem a distinção de poderem saber quantos são. Já aos milhões de ateus esse simples direito é negado.

Segundo pesquisa Brasmarket de alguns anos atrás, os ateus representam 1,4% dos eleitores, e são predominantemente homens de grandes cidades. Já segundo o Projeto Juventude do Instituto Cidadania, entre os jovens há somente 1% de ateus, e a maioria deles está no campo. De acordo com pesquisa publicada em 2002 pelo Centro de Estatística Religiosa e Investigação Social, há 5% de ateus na região metropolitana do Recife, que tem duas regiões com 13% de ateus. Em pesquisa de 2005 com cidadãos maiores de 16 anos, o Ibope apontou o
número de 2% para o grupo “ateu, não tem religião” e 6% para o grupo “é religioso, mas não segue nenhuma; agnóstico”. E para a pesquisa CCR-IBOPE de junho de 2003, 2,3% dos adultos são ateus. Seja como for, os números mais pessimistas indicam mais de dois milhões de ateus no Brasil.

É por isso que, se não for por considerações éticas, o mundo empresarial deve prestar atenção ao segmento dos descrentes ao menos por razões mercadológicas. É claro que uma ou outra empresa pode decidir que simplesmente vai se identificar com os evangélicos, que estão em maior número. E não há nada mais natural do que ganhar dinheiro às custas da religião. Mas o o problema é de outra ordem quando companhias aparentemente neutras se dedicam a promover visões religiosas.

A Sadia, por exemplo, conseguiu ofender de uma vez só milhões de consumidores brasileiros, e mais outros tantos cidadãos em 92 outros países. O grande produtor de frango e outros produtos alimentícios fatura cerca de R$ 7 bilhões e lucra R$170 milhões anualmente, e como toda grande empresa tem um leque de ações sociais nos quais dispende milhões de reais. Mas em nenhum lugar da cadeia de comando houve alguém com sensibilidade o suficiente que enxergasse além de seu pequeno mundo cultural e religioso.

A Sadia escolheu o mote “Cultive os valores” para promover seus kits de natal, e para isso “estudou as tendências dos consumidores e escolheu valores como amor, amizade, fé, perseverança e ética para expressar sua campanha”. Para a empresa, “esses valores foram
escolhidos por serem considerados universais e por abranger todas as culturas e religiões” e “os Kits Sadia também são uma forma de transmitir mensagens positivas (‘Cultive os Valores’) aos funcionários e clientes”. Analisemos cada uma dessas afirmações.

Ora, por certo que fé é um valor bastante popular e naturalmente apareceria com força em qualquer pesquisa de consumidores. Mas vejam o que acontece quando ela fica lado a lado com os demais valores. Uma pessoa sem amor pode ser má ou simplesmente amargurada. Quem nega a amizade é certamente um solitário e provavelmente um autocêntrico, ou incapaz de conviver em bons termos com seus pares. Quem não tem um mínimo de perseverança não consegue levar a cabo nenhum projeto em sua vida, nenhum emprego, nenhum estudo, nenhum relacionamento, nada. E os indivíduos amplamente aéticos são simplesmente canalhas. Ora, e o que são os indivíduos sem fé? O que o conjunto de valores sugere é que deverão ser igualmente ineptos ou condenáveis, figuras de quem se deve ter medo ou pena, como todas as demais.

Os autores dessa monstruosidade não tentaram esconder seu culturocentrismo porque sequer tiveram o discernimento de percebê-lo. Afinal, eles dizem com todas as letras que entendem que a fé “é um valor universal” e “abrange” (ou seja, contém) “todas [itálico acrescentado] as culturas e religiões.” Nada poderia demonstrar ignorância do assunto mais claramente do que isso. Em primeiro lugar, são as culturas e religiões que abrangem a fé, que por sua vez faz
parte delas. Mas tentemos uma interpretração mais suave, imaginando que o texto foi só mal escrito e o que se queria dizer é que os tais valores estão presentes (e não abrangem) em todas as culturas e religiões. Ainda assim haveria dois erros graves, pois diversas tradições religiosas orientais não incluem a fé e porque a fé, mesmo estando presente em todas as culturas, não existe em todos os indivíduos.

Se a fé é uma mensagem “positiva”, o que isso nos diz sobre o conceito que a companhia tem do seu oposto? Existirão dois opostos igualmente positivos? O que uma companhia alimentícia está fazendo ao nos dizer que nossas posições não existem, ou não são positivas?

Mas a coisa não pára aí. Segundo o site criado especialmente para promover os kits, “amor, amizade, fé, perseverança e ética são os verdadeiros valores que fazem com que as pessoas evoluam, empresas e marcas prosperem e transformem o mundo em um lugar melhor”. O Kit
Sadia “é uma mensagem de resgate dos verdadeiros valores que tornarão o mundo melhor”
. Não há como escapar da conclusão de que os indivíduos sem fé evoluirão menos, ou nada. As empresas e marcas “sem fé” também estão condenadas ao mesmo destino. E todos eles são responsáveis por atrasar ou impedir a transformação do mundo em um lugar melhor. Em outras palavras, nós e nossas posições fazemos o mundo um lugar pior.

A campanha da Sadia parece viver em um mundo em que os cerca de 4% de ateus do mundo simplesmente não existem. Ou, pior, talvez ela esteja ativamente ignorando esses 300 milhões de pessoas. Para a empresa, aparentemente não somos suficientemente importantes como pessoas. Esperamos que mudem de idéia, pelo menos depois de notar que a quantidade de riqueza movimentada só pelos ateus brasileiros é maior até que a receita total da empresa.

Sugiro aos consumidores dos produtos da companhia no mundo inteiro que deixem clara sua posição quanto a essas afirmações não somente através de suas decisões de compra, mas também de maneira explícita através dos canais de comunicação da empresa: os telefones (55) 0800-702-3355 (específico para o Sadiakits) e (55) 0800-702-8800, o email
duvidas@sadiakits.com.br e esta página. Não deixem de registrar nos comentários as mensagens que enviaram e quaisquer demais respostas que tenham recebido da empresa.