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Dia: 31 de Outubro, 2006

31 de Outubro, 2006 fburnay

A Razão e a Fé IV – A Igreja e a Razão (fim)

Depois da degradação do sistema feudal e do fim do poder militar da Igreja perdeu-se a última componente política que a Igreja ainda possuía com o advento dos valores laicistas. Os governos já não precisam do aval de Roma para exercer o seu poder. A religião não é um dos eixos da sociedade e o clero já não é uma classe. A separação de poderes garante não só que as religiões não interfiram no poder do Estado como salvaguarda as religiões da interferência deste. Ganhou-se liberdade em duas frentes, a religiosa e individual e a de Estado e institucional, ainda que a liberdade que a Igreja pretendesse em tempos fosse outra. Mais uma vez, uma noção de liberdade diferente.

O avanço da Ciência foi removendo Deus dos modelos explicativos do mundo natural, transformando-o num deus das lacunas, que apenas consegue sobreviver em nichos onde o conhecimento humano ainda não chegou, nichos esses que tanto alento trazem aos que vêm nessa ignorância uma esperança de Deus. De facto, uma das últimas, mais frágeis e importantes lacunas das quais Deus foi removido foi a da origem da vida e do ser humano, com o surgimento das ideias de Darwin – tema esse ao qual várias fés pretendem devolver o estatuto de lacuna. A Ciência dá hoje e cada vez mais uma explicação sólida da realidade, aperfeiçoável, sem recorrer a subterfúgios teístas para salvar a nossa divindade e a dos nossos deuses.

Com a propagação de uma cultura de sociedade democrática e laica e uma outra cultura científica e tecnológica, a Igreja ficou relegada para o plano social, sem que lhe seja dada a mesma importância de outrora nesses campos da sociedade. A principal consequência que o abraçar do racionalismo, nas suas várias formas, teve para a Igreja foi o seu afastamento dos seus campos de actividade tradicionais. Como mote de reconciliação, parece-me que tem sido o esforço de Bento XVI reabilitar a Fé com a Razão. Como? Ressuscitando as velhas dúvidas lacunares, recuperando a antiga noção de Razão (vide “Fides et Ratio”) e apelando ao bom senso como cimento destas ideias. Isto traduz-se em advertências à comunidade científica, condenação dos valores laicistas e uma suposta posição previlegiada na luta contra o terrorismo.

31 de Outubro, 2006 fburnay

A Razão e a Fé III – A Igreja e a Razão (cont.)

O modelo de Copérnico foi considerado absurdo e erróneo (sic) pela Igreja e o seu livro colocado no Index, assim que lhe foi dada importância. Galileu foi ameaçado de tortura e obrigado a abjurar, «de coração sincero e genuína fé» por ter defendido um erro «contrário à Santa Igreja Católica» e por negar os princípios aristotélicos. A igualdade entre os homens foi igualmente considerada um disparate pelo papa Pio VI na sua bula Quod Aliquantum, uma resposta à Declaração Universal dos Direitos do Homem. A liberdade de consciência era, para o papa Gregório XVI, um delírio absurdo e erróneo.

As classificações de absurdidade e erro são uma constante. Se bem que mais tarde retractadas em muitos casos ou rectificadas noutros, porquê a obstinação aos frutos do raciocínio? Porquê esta aversão ao exercício livre da Razão? Durante séculos a ICAR condenou o Individualismo a vários níveis e em particular enquanto possibilidade de exercer o nosso próprio julgamento. E estava errada nas posições que tomou. O modelo de Copérnico afinal, tinha razão de ser. Aristóteles estava enganado na sua descrição do mundo natural. A liberdade de consciência foi considerada, por Paulo VI, como estando «para além da razão de Estado e da razão da Igreja». Porque é que a Igreja não deu ouvidos a quem o havia dito tantos anos antes? A primeira ideia que me vem à cabeça é a dogmática – a sempre intrigante memética do divino.

Se a Igreja se enganou tantas vezes nos julgamentos que fez em relação a temas fundamentais da Ciência ou da vida em sociedade, sendo que nesses julgamentos se baseou na sua estrutura teológica, que dizer da qualidade desses fundamentos? No fundo, porque é que Aristóteles se enganou? Porque recorreu unicamente à sua capacidade de raciocínio para explicar a natureza da realidade. É variada a forma como filósofos se enganaram sistematicamente em relação a descrições do mundo natural. Isto aconteceu porque a especulação filosófica é insuficiente para descrever a realidade sem que se saiba se os princípios de onde partimos têm ou não parecenças com os objectos reais do mundo. Essa herança aristotélica prevalece ainda na ICAR. Essa forma de “racionalismo” não tem, no entanto, grande paralelismo com aquilo a que hoje em dia designamos por Racionalismo – o exercício da razão longe de preconceitos não só como forma de auto determinação (a componente individualista) como o uso desta no aperfeiçoamento do conhecimento empírico que temos do mundo (na Ciência). A versão religiosa é outra e diz respeito à capacidade de articular argumentos teístas num discurso metafísico. Diz respeito, no fundo, um pouco à noção daquilo que a Razão deveria ser para os escolásticos e um pouco aquilo que deveria ser para os tomistas. No fundo, refere-se a uma noção de fé consciente e pensada. Trata de usar as capacidades racionais para fortalecer a fé. A Razão cujos valores eu defendo não tem nada a ver com isto.