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O referendo ao aborto: autonomia da mulher

A guerra contra a modernidade da Igreja Católica, isto é, a guerra pela manutenção do integrismo católico, iniciou-se no plano político, essencialmente combatendo os ideais «hereges» do iluminismo – que ameaçavam a supremacia da Igreja sobre todos os aspectos da vida -, nomeadamente combatendo a soberania do indivíduo, dos seus direitos e da sua liberdade, denunciados como atentados à lei «natural», isto é, à submissão do homem ao Vaticano, representante na Terra de Deus.

Assim o discurso da igreja no século XIX é marcado pela «intransigência católica» em relação às modernices políticas e ao reconhecimento dos direitos humanos, denunciados como «loucura e erro».

No terreno puramente político, a Igreja perdeu a batalha, pelo menos na Europa. E assim no século XX assesta as baterias na sexualidade, «guerra à sexualidade» que no século XXI começa a ser suplantada pela «guerra à ciência». A obsessão da Igreja sobre a questão do sexo é tanto maior quanto ela perdeu, radicalmente, a batalha no campo das autonomias políticas.

Não é assim de estranhar que, em total discordância com a própria doutrina da Igreja, seja apenas em finais do século XIX, depois de Pio No No perder o poder político sobre Itália, que o aborto é declarado um pecado imperdoável. De igual forma, os meios contraceptivos «não naturais», usados desde sempre na História da Humanidade, são declarados «pecaminosos» e proibidos aos católicos somente no século XX.

A «guerra ao sexo» estende-se à igualdade dos sexos e aos direitos da mulher: no momento em que a autonomia da mulher for uma realidade, está ameaçado o reduto do poder da Igreja na sociedade. O combate aos direitos da mulher é disfarçado como sendo uma «ordem» da natureza: a Igreja não tem nada, ulula, contra as mulheres! É a própria ordem «natural» inscrita na biologia feminina que afirma a heteronomia, isto é, estipula os limites da autonomia e dos direitos da mulher.

Assim, tudo o que esbata os limites do «natural» em relação à mulher e reafirme a sua condição de ser humano de plenos direitos é combatido violentamente pela Igreja! Como se viu, por exemplo, na IV Conferência Mundial sobre a Mulher, em que os delegados do Vaticano e os seus poucos aliados – os fundamentalistas islâmicos, Malta e alguns países latinoamericanos em que a Igreja detém de facto poder político – tentaram impedir que se alcançasse o consenso necessário à aprovação da Plataforma de Acção, nomeadamente no que diz respeito à universalidade dos direitos humanos, mais especificamente ao reconhecimento dos direitos humanos da mulher.

O ênfase no «natural»* e divinamente predestinado é encontrado ainda na carta aos bispos católicos de todo mundo, «sobre a colaboração do homem e da mulher no mundo e na Igreja» em que a auto-intitulada «Perita em humanidade», expertise conferida pela inenerrante «antropologia bíblica» – leia-se pecado original – denuncia como profundamente errada a «antropologia, que entendia favorecer perspectivas igualitárias para a mulher, libertando-a de todo o determinismo biológico». Ou seja, a emancipação e independência da mulher são uma aberração ateísta que não reconhece a ordem «natural» do mundo divinamente ordenada!

*Estranhamente apenas em relação aos direitos da mulher, antagónicos da ordem divina, o «natural» é invocado! Por exemplo, no caso Terry Schiavo, a interrupção da sustentação artificial da sua vida foi considerado um «atentado contra a vida», um «homicídio» levado a cabo por «carrascos» implacáveis! Ou seja, conforme convém, quer interferir quer não interferir na ordem natural das coisas é considerado um pecado imperdoável, vendido à sociedade como um assassínio!

(continua)