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Dia: 26 de Outubro, 2006

26 de Outubro, 2006 Palmira Silva

As coutadas dos machos das religiões do livro

«Quem não treme horrorizado ao ver na história tantos suplícios atrozes e inócuos, criados e empregados com frieza por monstros que se intitulam sábios?» «O legislador deve, consequentemente, estabelecer fronteiras ao rigor das penalidades, quando o suplício não se transforma senão em espectáculo e parece ordenado mais para demonstração de força do que para a punição do crime.» Cesare Bonesana, Marquês de Beccaria, Dos Delitos e das Penas (1764).

O controverso mufti da Austrália, Taj el-Din al-Hilali, disse num dos seus sermões que as mulheres que não usam um hijab são como «carne descoberta». Continuando «Se puserem carne destapada na rua e os gatos a comerem, de quem é a culpa, dos gatos ou da carne destapada?»

O sheikh Hilali condenou igualmente as mulheres que mexem as ancas de forma sugestiva ao andar e as que se maquilham subentendendo que estas mulheres estão a «pedir» serem violadas. O clérigo aparentemente considera que os violadores são inocentes do seu crime, o problema são os juízes – australianos neste caso particular mas os juízes ocidentais em geral – que não percebem que os verdadeiros culpados nestas histórias de violação são as provocadoras mulheres:

«Depois apanham um juíz sem misericórdia que lhes dá 65 anos [de pena]» ululou o clérigo numa alusão a um grupo de muçulmanos de origem libanesa que cometeram uma série de violações em grupo há seis anos em Sidney e foram condenados a longas penas de prisão.

A comissária para a discriminação sexual, Pru Goward, disse que o sermão do mufti pode ser considerado uma incitação ao crime, já que os «jovens muçulmanos que violem mulheres podem citar isto em tribunal, podem citar este homem, o seu dirigente espiritual no tribunal» afirmando ainda que o clérido egípcio deveria ser deportado.

As palavras do devoto clérigo muçulmano fizeram-me recordar o que se passava cá no burgo quando os valores cristãos (ou culturais como pretende o cardeal patriarca de Lisboa) permeavam o nosso Código Penal.

Para além de os «crimes de honra» serem perfeitamente legais, nomeadamente era considerado completamente apropriado que um marido assassinasse a mulher adúltera e o seu amante se apanhados em flagrante delito,nos anos 60 um tribunal português classificava o comportamento criminoso de um marido como «moderado poder de correcção doméstica» enquanto outro tribunal português, mais recentemente, «culpabilizava» duas jovens vitimas de violação -que estavam a «pedi-las» -, sublinhando que elas nunca deveriam andar vestidas de forma «indecente» numa região considerada «coutada do macho latino».

Estas situações mostram de facto que uma ética que não se consiga separar da religião ou de «os grandes valores da cultura de um povo» na realidade não passa de um conjunto de prescrições autoritárias que correspondem a uma perversão grave dos princípios que supostamente regem a nossa sociedade. Conjunto de prescrições autoritárias que, sem surpresa alguma, nas misóginas religiões do livro se dirigem especialmente às mulheres.

Algo que não nos podemos esquecer quando formos convidados às urnas para decidir da despenalização do aborto. Ou seja, se os que apelam ao «Não» de facto consideram o aborto um assassínio – e nesse caso não se percebe porque razão ululam que não querem ver mulheres «decentes» na prisão e porque não exigem uma mudança no quadro penal para fazer equivaler um aborto a um assassínio – ou se querem apenas sujeitar as «imorais» pecadoras a perigos consideráveis para a respectiva saúde e a humilhações na praça pública.

Durante o fim de semana retomarei o tema do estatuto ético e jurídico do embrião – porque é sobre o direito incondicional à vida de um embrião que vamos ser auscultados – e espero mostrar porque não são convincentes os argumentos do «Não», na sua esmagadora maioria contaminados com julgamentos de valor sobre os motivos das mulheres que abortam, distinguindo entre abortos «morais» – que não devem ser punidos – e abortos «imorais».

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26 de Outubro, 2006 Ricardo Alves

Israel avança para o casamento civil (ou talvez não)

As negociações para o novo governo israelita, que poderá incluir um partido representando a minoria russófila, provocaram um debate sobre a possível criação do casamento civil em Israel. Actualmente, os únicos casamentos reconhecidos são os realizados pelas comunidades religiosas, e muitos israelitas vão casar a Chipre, quer por quererem casar fora da sua comunidade religiosa, quer por não serem considerados judeus, quer por serem judeus moderados que não querem aturar as aulas pré-nupciais (obrigatórias) dadas pelos rabis ortodoxos (cujo fundamentalismo e intolerância não ficam atrás do pior do catolicismo).

O casamento civil permitiria aos imigrantes recentes de origem russa (cerca de 300 000 indivíduos), muitos dos quais não são considerados judeus, casarem-se. É impossível fazê-lo com os arranjos actuais, dado que em Israel o casamento só existe segundo as leis religiosas medievais e retrógradas das comunidades religiosas: consequentemente, uma judia não pode divorciar-se sem autorização do marido (e dos rabis), e a chária é aplicada aos casamentos entre muçulmanos. Evidentemente, os casamentos mistos são impossíveis, o que tem mantido a sociedade israelita segregada segundo linhas de fractura religiosas (contribuindo assim para os níveis de paz social e harmonia tão conhecidos de todos).

Infelizmente, um dos partidos necessários à coligação governamental é o Shas, um partido que obedece assumidamente ao Rabi-chefe da comunidade sefardita, Shlomo Amar. Este senhor, do alto da sua autoridade clerical, fez o seu submisso partido propôr uma «união civil» exclusivamente para cidadãos sem religião, mantendo a impossibilidade legal de casamentos mistos. Mas nem isso está garantido.