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Dia: 4 de Março, 2006

4 de Março, 2006 Palmira Silva

Blair, Bush, Deus e o Iraque

O que têm em comum Tony Blair e George W. Bush? São ambos devotos cristãos renascidos, movidos para a vida política pela sua fé e que afirmam terem sido inspirados e apoiados por Deus na decisão pela invasão ilegal do Iraque.

De facto, já sabíamos que G. W. Bush justificou a guerra no Iraque por obediência a ordens divinas, expressas de viva voz, que lhe incumbiram a guerra ao «eixo do mal»: «Sou conduzido por uma missão de Deus. Deus disse-me ‘George vai e luta contra estes terroristas no Afeganistão’. E eu fui. E então Deus disse-me ‘George, vai e acaba com a tirania no Iraque’. E eu fui.»

Tony Blair foi mais discreto em relação à inspiração divina da sua decisão, por aconselhamento dos seus assessores, que o persuadiram, por exemplo, a não terminar a sua alocução ao país no seguimento da invasão do Iraque, em 20 de Março de 2003, com «Deus vos abençoe». Esses assessores, que Blair classificou de «um bando de ateístas», convenceram-no que não era uma boa ideia invocar Deus porque «estaria falando para muita gente que não quer padres a enfiarem-lhe coisas pela garganta abaixo». Mas afirmou ao então editor do The Times, Peter Stothard, em 2 de Abril de 2003 – o dia em que tropas norte-americanas mataram sete mulheres e crianças num checkpoint – que estava pronto para responder a Deus por «aqueles que morreram ou foram horrivelmente mutilados em consequência das minhas decisões».

Mas hoje no programa da TV1 com Michael Parkinson (partilhado com Andrea Bocelli, Christina Aguilera e Kevin Spacey) Blair confessou que essa decisão, como a maioria das suas decisões políticas, foi inspirada pela sua fé cristã.

Durante o programa, Blair confirmou ainda uma hipótese avançada por um dos seus biógrafos, de que foi levado para a política quando, durante a sua frequência da Universidade de Oxford, redescobriu a religião – cristã, claro, com algumas suspeitas de que Blair se tenha convertido ao catolicismo da sua esposa Cherie, o que talvez explique porque nomeou uma Opus Dei ministra da Educação.

Aparentemente nem os partidos da oposição nem os familiares dos soldados britânicos ficaram impressionados com a manifestação de fé do primeiro-ministro britânico

4 de Março, 2006 fburnay

Galileu e a Igreja (IV – fim)

Em 1621 morreu o cardeal Bellarmine, o papa Paulo V e o grão-duque da Toscânia, Cosimo II. Galileu havia perdido todos os seus principais apoiantes numa altura em que o poder da Igreja Católica recuperava. Antes de Gregório XV ser eleito papa Galileu publica “O Analisador” e durante o seu papado Galileu fortalece a sua amizade com os Barberini. Francesco Barberini havia sido doutorado em Pisa e o seu tio, o cardeal Maffeo Barberini, escreveu a Galileu elogiando-o. Quando Gregório XV morre Maffeo Barberini é eleito Urbano VIII e a dedicatória à família Barberini agradou ao papa. Isso certamente facilitou a possibilidade de seis audiências em Roma, onde Galileu recebeu algumas homenagens. Urbano VIII dá ainda autorização a Galileu de ensinar o Copernicanismo desde que não o defendesse, o que era ainda melhor que o anterior documento que certificava que Galileu não havia abjurado.

É então que Galileu se prepara para escrever uma das obras mais famosas da História da Ciência: “Diálogo sobre os Dois Principais Sistemas do Mundo”. Nele, Galileu simula um diálogo entre os dois sistemas, copernicano e aristotélico, representados por duas personagens, Salviatti e Simplício, respectivamente. Uma terceira personagem, Sagredo, modera o diálogo de forma neutra mas aos poucos toma o partido de Salviatti. O censor de Roma aprova o livro tal como havia anteriormente aprovado “O Analisador” mas desta vez com uma advertência: Galileu deve incluir no texto uma notificação que adverte o leitor de que ele, Galileu, não apoiava o Copernicanismo. Essa notificação poderia ser alterada na forma mas não na substância. Galileu fê-lo, incluindo-o numa espécie de ex-libris, pela boca de Simplício. Os jesuítas agarraram a oportunidade pelos cabelos e fizeram ver a Urbano VIII que estava a ser insultado. Reuniram-se os eclesiásticos para avaliar a situação.

A acusação de Galileu começou por uma acusação de heresia, por ter publicado um livro (com a autorização de Roma, diga-se) em que ensinava o Copernicanismo. As provas? As minutas não assinadas na comissão com Bellarmine. Galileu foi chamado a Roma.

Para além de conhecer o perigo em que se encontrava, Galileu estava muito doente, com dores crónicas, e tentou adiar a ida a Roma tal como o fizera o seu amigo Sarpi. Tentou ainda impedir a distribuição do livro, tarde demais.

O julgamento iniciou-se em Abril de 1633, sem que a acusação conseguisse arranjar algo mais concreto do que o crime de escrever em italiano e não em latim. Galileu usou o documento que lhe havia sido dado por Bellarmine garantido a inexistência de abjuração. Mas a questão para os inquisidores era simples: uma falsa acusação de heresia era tão grave como uma heresia e a Inquisição não é herege, obviamente. Galileu tinha de confessar algo, nem que para isso fosse torturado. O próprio cardeal Barberini o advertiu desse facto. Galileu percebeu que não tinha saída e assinou a confissão.

«Eu juro que sempre acreditei, acredito agora, e com a ajuda de Deus irei no futuro acreditar em tudo aquilo que a Santa Igreja Católica e Apostólica sustiver, pregar e ensinar […] Eu abjuro de coração sincero e genuína fé, eu amaldiçoo e detesto os ditos erros e heresias, e de forma geral todo e qualquer erro e partido contrário à Santa Igreja Católica. E eu juro que no futuro não direi nem defenderei por palavra ou escrita tais coisas que possam trazer-me semelhante suspeita; e se conhecer algum herege, ou suspeito de heresia, que o denunciarei a este Santo Ofício, ou ao Inquisidor e Ordinário do local onde possa estar.»

Galileu foi condenado a uma prisão perpétua domiciliária por sete dos dez cardeais do tribunal. Um dos três que se recusaram a assinar a pena foi o cardeal Barberini.

Galileu Galilei viria a morrer em 1642 mas não sei antes publicar na clandestinidade a sua obra prima: “Discursos e Demonstrações Matemáticas Relativas a Duas Novas Ciências”. A sua influência na Europa viria a contribuir grandemente para a continuidade do desenvolvimento da Ciência agora estagnado, debaixo do peso da Igreja, na Itália onde o próprio Renascimento havia surgido.

4 de Março, 2006 Palmira Silva

Linda Smith: Deus, a maior piada

Morreu Linda Smith, uma das mais fabulosas comediantes britânicas, com um domínio extraordinário da língua inglesa e um humor espontâneo e inteligente, com que deliciava os seus ouvintes da BBC4 e tele espectadores dos vários programas que protagonizava.

Depois de duas décadas a partilhar com a sua audiência uma visão satírica da actualidade, não é de surpreender que nos seus últimos dias planeasse a expressão pública dos seus valores humanistas e ateístas de forma condigna. Assim, o adeus a Linda Smith será efectuado num funeral humanista.

Um serviço memorial será efectuado no dia seguinte ao funeral no teatro East London, e também para a semana realizar-se-à no Theatre Royal em Stratford, uma homenagem a Linda por colegas comediantes, de certa forma cumprindo uma aspiração da comediante, não concretizada em vida, a realização de um espectáculo que reunisse «pessoas que não fossem necessariamente a audiência humanista normal».

Esperemos que seja realizado em breve, e não apenas no Reino Unido, outro dos seus desejos, a separação efectiva da religião da esfera pública em geral e o fim do financiamento público de escolas confessionais em particular. Numa sociedade em que crescentemente a noção de Deus se revela se não absurda pelo menos irrelevante, como o é a britânica, não faz sentido a quantidade de dinheiro público que se desperdiça em escolas confessionais prosélitas, que não só promovem a segregação da sociedade desde tenra idade, como são elitistas no mau sentido, ou seja, recusam a entrada a crianças problemáticas!

4 de Março, 2006 lrodrigues

A noção do ridículo

A reunião da Câmara Municipal de Cascais do próximo dia 6 de Março de 2006 adivinha-se, sem dúvida, muito animada e educativa.
De facto, a ilustre vereadora com a responsabilidade do pelouro da cultura, Ana Clara Justino (independente eleita pelo PSD), resolveu proporcionar ao executivo municipal uma lição sobre a Páscoa.

E já fez o trabalho de casa e tudo:
De acordo com a «Informação à Câmara» que já fez distribuir, a piedosa vereadora ensina-nos que «o cordeiro, a cruz, o pão e o vinho» são os símbolos que identificamos com a Páscoa.

E a lição continua:
«O cordeiro simboliza Cristo, sacrificado em prol do seu rebanho, a cruz mistifica todo o significado da Páscoa na ressurreição e no sofrimento de Cristo. O pão e o vinho oferecido aos seus discípulos, simbolizam a vida eterna, o corpo e o sangue de Jesus. Mas se perguntarmos a uma criança qual o símbolo que para ela mais se associa à Páscoa, facilmente adivinhamos a resposta: o ovo!»

E depois lá continua a dissertação, desta vez sobre os ovos na antiguidade, como podemos observar na imagem à direita.

(Clicar sobre a imagem para a ampliar, e de seguida sobre o ícone que aparecer no canto inferior direito).

Talvez não tenha ocorrido à senhora vereadora (isso teria sido para ela um ovo de Colombo) que o Estado português é laico por imposição constitucional.

A senhora vereadora esqueceu-se certamente que o cordeiro que ela toma como Deus ensinou há já dois milénios ao rebanho de que ela faz parte que «a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus».

E talvez a senhora vereadora não saiba que não lhe pagam um salário ao fim do mês, nem senhas de presença nas reuniões do executivo, nem lhe dão carro e motorista às ordens, para andar a espalhar a fé cristã pelo concelho.
Nem tem de andar a esbanjar os recursos financeiros da autarquia a evangelizar o munícipes.

Mas pior do que tudo, a senhora vereadora sabe muito bem que as crianças do concelho de Cascais não lhe fizeram mal nenhum, e não têm que ser martirizadas e sujeitas à tortura de ensinamentos iconoclastas e medievais, infligidas pelo próprio executivo da Câmara Municipal, que deveria ser o primeiro a respeitar o laicismo do Estado.

Mas, no fim, se virmos bem, há ainda outra coisa que falta à senhora vereadora:
A noção do ridículo!

(Publicado simultaneamente no «Random Precision»)