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A verdade – em busca do paradigma perdido

«Mas hoje em dia, para substituir uma série de ideologias em crise, algumas pessoas fazem a corte cada vez mais com uma escola de pensamento de acordo com a qual o curso da história não nos aproxima cada vez mais da verdade.

De acordo com estas pessoas, tudo o que há para compreender já foi compreendido há muito por civilizações antigas há muito desaparecidas, e só o regresso humilde a esse tesouro tradicional e imutável permite reconciliar-nos connosco e com o nosso destino.

Nas versões mais abertamente ocultistas desta escola de pensamento, a verdade era cultivada por civilizações com as quais perdemos contacto: Atlantis, engolida pelo oceano, os Hiperbóreos, arianos 100% puros que viviam num cimo gelado de uma montanha eternamente temperada, os sábios da antiga Índia e outras divertidas patranhas que, sendo indemonstráveis, permitem que filósofos de terceira categoria e autores comerciais continuem a mastigar versões requentadas do mesmo velho lixo hermético para diversão dos veraneantes.»

Humberto Eco, artigo publicado no Guardian e disponível na Crítica, Revista de filosofia e ensino.

O meu post «A Sétima Dimensão» (e também a sua sequela «Pseudofilosofia»)
motivou uma acesa discussão sobre a verdade, discussão despoletada pelo parágrafo referente à moral e ética:

«O direito que rege as sociedades deve transcrever o progresso ético da humanidade e não «verdades absolutas» reveladas de uma qualquer mitologia. Verdadeiro e falso são valores lógicos atribuídos a uma determinada proposição, ou seja, a verdade não pode ser absoluta, porque ela é um conceito que emitimos sobre uma proposição. Uma verdade de ontem pode não ser uma verdade hoje, porque o contexto em que essa verdade é avaliada mudou ou porque novos dados entretanto descobertos transformaram essa verdade em mentira.»

Embora este parágrafo me parecesse pacífico no contexto em que esta «verdade» se inseria, como seria expectável, foi utilizado pelos crentes que frequentam estas páginas para mais um ataque non sequitur, ou seja, sem uma palavra sequer sobre ética ou moral ou sobre o «absolutismo» de verdades do passado «glorioso» do cristianismo, como ser a vacinação uma interferência inadmissível na vontade divina ou a legitimidade da escravatura, da tortura, da produção de castrati para os coros das igrejas, da morte na fogueira de hereges e blasfemos, etc..

Na realidade, como já escrevi há uns tempos, o progresso na descoberta das «leis absolutas» que regem o homem social é fortemente impedido porque a ética se confunde com a moral e esta, mesmo na sociedade mais laicizada, é ainda fortemente determinada pela religião. E na religião os dogmas são um fim, uma lei, uma verdade absoluta, e não um meio que se deve descartar quando se comprova desnecessário, anacrónico e até contraproducente. E assim a religião inibe o progresso ético da sociedade. Mas esta verdade histórica é desconfortável para os crentes que preferem atirar cegamente ao lado sempre que é levantada…

Neste dia em que a verdade assume outros contornos e quando finalmente tenho tempo para abordar o tema, vou tentar resumir algumas ideias que acho fundamentais sobre a verdade em geral e não apenas no contexto da ética. Nomeadamente as minhas elucubrações sobre o que é a verdade, porque para a atitude crítica ou filosófica, a verdade nasce da decisão e da deliberação de encontrá-la, da consciência da ignorância e do desejo de saber. Nesta procura da verdade, a Filosofia é herdeira de três grandes concepções do tema: a do ver-perceber (aletheia), a do falar-dizer (veritas) e a do crer-confiar (emunah). Destas concepções a veritas tem mais a ver com veracidade (cujo contrário é mentira ou engano) que propriamente com verdade (cujo oposto é erro).

Mas existem outras concepções de verdade, nomeadamente nas ciências exactas, descendentes há muito emancipadas da Filosofia, predomina a verdade pragmática, isto é, a verificabilidade dos resultados. E esta concepção da verdade está muito próxima da aletheia uma vez que esta é, se quisermos, a verdade absoluta, mas cujo conhecimento depende de que esta verdade se manifeste. Este problema não se põe em matemática em que o critério da verdade é dado pela coerência interna ou pela coerência lógica do pensamento matemático. Assim, em matemática a verdade é reconhecida pela validade lógica dos argumentos.

Ou seja, quando falamos em verdade podemos falar a vários níveis. No nível realista para que os nossos críticos crentes desviaram a discussão, a verdade intrínseca das coisas, o conhecimento da essência real e profunda dos seres – que é necessariamente universal e absoluta – a verdade é o acordo entre o pensamento e a realidade, a adequatio rei et intellectus, e para mim, claro, só pode ser estabelecida pragmaticamente. Claro que a verdade pragmática será sempre uma verdade relativa não só no sentido em que é necessário indicar o referencial em que estabelecemos esta verdade mas também porque muitas vezes esta verdade pragmática não é uma verdade ontológica mas sim fenomenológica (explicarei com um exemplo num próximo post o que quero dizer com isto).

A outro nível, de que a matemática é o exemplo perfeito, a verdade é uma verdade validada logicamente (que é diferente de verdade lógica ou adequação da inteligência ao objecto) , ou, mais genericamente, refere-se ao acordo entre o pensamento e a linguagem em que este pensamento é expresso (verdade moral). Neste nível por vezes a verdade é limitada pela linguagem, já que, como afirmava Ludwig Wittgenstein no Tractatus Logico Philosophicus «Os limites da minha linguagem são os limites da minha mente».

No nível idealista ou, talvez, spinoziano, em que coloquei a verdade no post que originou a discussão, a verdade refere-se a ideias no campo da ética que determinam o direito numa sociedade democrática e que são avaliadas verdadeiras ou falsas numa determinada conjuntura. Enunciados, argumentos e ideias éticas que, como nos recorda profusamente Albert Camus, devem evitar «o pior erro», «fazer sofrer», e devem preservar os direitos fundamentais dos homens, nomeadamente, a liberdade de eleger os próprios valores morais e/ou religiosos, e simultaneamente regular efectivamente a convivência nas sociedades.

Como tal, devem resultar de juízos éticos baseados na razão e não em quaisquer pretensas «verdades absolutas» reveladas. E devem assentar num consenso obtido validando logicamente argumentos que resultam em convenções universais sobre o que é verdade ou erro e que, como devem ser respeitadas por todos, não podem significar uma doutrinação das opiniões/valores morais defendidos pela maioria, ou, pior ainda, das opiniões de uma minoria religiosa fundamentalista.

Por outro lado, se analisarmos a evolução das várias concepções da própria verdade estas decorrem não só de mudanças na estrutura e organização das sociedades como também de mudanças na Filosofia. Ou seja, as verdades mudam, a própria concepção da verdade muda, mas não muda a atitude de procura da verdade, isto é, a invariante histórica é a determinação em ultrapassar dogmatismos e concumitantes preconceitos. É igualmente uma invariante histórica a oposição das religiões predominantes a este progresso, ético, filosófico e científico da Humanidade…