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Dia: 8 de Janeiro, 2006

8 de Janeiro, 2006 Palmira Silva

Pseudofilosofia

A minha opinião pessoal é que a filosofia é o conjunto de considerações de índole especulativa que se fazem acerca de assuntos sobre os quais ainda não é possível ter um conhecimento exacto Bertrand Russel, A Minha Concepção do Mundo

Uma filosofia definitiva, feita e assente uma vez para todo o sempre, implicaria a imobilidade do pensamento humano: o absoluto anestesiá-lo-ia. Essa tal verdade, aspiração ingénua de espíritos incultos, pode animar os crentes e exaltar os entusiastas: no domínio do puro pensamento nunca produzirá senão ilusão e vertigem Antero de Quental, Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX.

Diz a tradição que foi Pitágoras quem usou pela primeira vez o termo filosofia, por volta do século V aC, ao responder a um dos seus discípulos que não era um «sábio», mas apenas alguém que amava a Sabedoria (philia, que significa amizade, amor e sophia, que significa sabedoria, conhecimento).

Mais de 2500 anos depois, este conceito, aparentemente tão simples de entender, não penetrou alguns dos crentes que comentam no Diário Ateísta que, à falta de argumentação, afirmam que a nossa ignorância de filosofia (?) e a falta de argumentário «filosófico» para justificar o nosso ateísmo implica que somos «dogmaticamente» ateus.

Historicamente é fácil de entender porque alguém em Portugal, um país que não é exactamente conhecido pelos seus filósofos, pode demonstrar este total desconhecimento do que é de facto a filosofia. Não só em Portugal durante muitos anos filosofia foi confundida com teologia (que exige por definição uma atitude anti-filosófica) como nas nossas Universidades predominam, para além de teólogos, historiadores da filosofia.

Assim, é perfeitamente possível ter conhecimentos de História da Filosofia, do pensamento dos filósofos, saber os eventos que marcaram a produção do pensamento humano, etc., sem nunca desenvolver uma postura de questionamento próprio sobre a realidade. Ou seja, há uma diferença abissal entre ter uma postura filosófica e deter conhecimentos de Filosofia. Por outro lado, todos os que, como Sócrates em Atenas, começam a fazer perguntas, a indagar sobre factos e pessoas, coisas e situações, a exigir explicações, a exigir liberdade de pensamento e de conhecimento, enfim que não aceitam as certezas e crenças estabelecidas e tentam interpretar ab initio a realidade que nos rodeia, são filósofos em potencial, ainda que não possuam instrução formal na área.

Uma educação formal em Filosofia é útil para evitar cair nos erros do passado ou tentar «reinventar» a roda mas não é necessária para uma atitude filosófica. Para tal é necessário desconfiar, como todos os filósofos de facto, de qualquer dogmatismo ou seja, não aceitar verdades dogmáticas. A atitude dogmática é assim não só a antítese da atitude filosófica, e daí a minha classificação como tal da teologia, mas é também conservadora e obscurantista. Conservadora porque precisa da segurança de «verdades absolutas» e teme as novidades, o inesperado, o desconhecido e tudo o que possa abalar essas «verdades absolutas». Conservadorismo que se transforma em preconceito e em obscurantismo quando se tenta impedir o contacto e a discussão de ideias que refutem essas «verdades absolutas».

E dogmatismo especialmente nefasto quando professado pelos que estão convictos que essas «verdades absolutas» emanam de uma fonte sagrada, de uma revelação divina incontestável e incontestada, de tal modo que situações que contestem tais crenças são afastadas como inaceitáveis e perigosas. Ao longo da História aqueles que ousaram enfrentar essas crenças e opiniões foram perseguidos como criminosos, blasfemos e heréticos. Hoje em dia, como ilustram as nossas caixas de comentários, a persistência na postura filosófica a que se chamou ateísmo é refutada pomposamente com recurso à pseudofilosofia por aqueles para quem uma verdade revelada por Deus é a única verdade e tudo quanto pensam os humanos, se for contrário à «verdade divina», é loucura, erro e falsidade!

Pseudofilosofia que consiste «em elucubrações que se apresentam como filosóficas mas que são ineptas, incompetentes, que carecem de seriedade intelectual e que reflectem um compromisso insuficiente com a procura da verdade».

Porque essencialmente a filosofia é a procura da verdade, tema a que dedicarei outro post, quem se considera detentor de «verdades absolutas» reveladas não pode, por conseguinte, ter uma atitude filosófica!

8 de Janeiro, 2006 Palmira Silva

Crise religiosa na Nigéria

Em Outubro de 2001, o estado de Kano no norte da Nigéria foi palco de violentas confrontações entre muçulmanos e católicos que causaram muitas dezenas de mortes e milhares de refugiados.

Kano é um dos estados da Nigéria que adoptou a Sharia em 2000 e onde se verifica um programa agressivo para forçar a lei islâmica em todos os habitantes. O problema é que neste estado onde domina o islamismo a maioria da população é Sufi Qadiriyyai mas os wahhabitas financiados pela Arábia Saudita detêm uma influência considerável (e desproporcional) no governo. Muitos membros da comunidade Qadiriyya opõem-se à interpretação estrita da lei islâmica do conselho da sharia (wahhabita) de Kano e à sua interferência na nomeação de imams, acusando ainda as supostas «caridades» wahhabitas de fomentarem a violência.

Aparentemente até vigorar a sharia a esmagadora maioria dos devotos muçulmanos de Kano, sufis e shiitas, não se tinham apercebido que a teocracia é uma arma de dois gumes, ou seja, pode ser inestimável aos fanáticos religiosos para impor as suas aberrantes «verdades absolutas» mas também torna a religião (e os seus lideres) subordinados ao estado.

Assim, em Março de 2004, milhares de fiéis Qadiriyya demonstraram-se na capital do estado exigindo, entre outras pontos, o encerramento das caridades wahhabitas e o fim do controle governamental sobre as suas mesquitas. As exigências dos manifestantes não foram atendidas e os sufis «declararam guerra» ao governo estadual e prometeram continuar os protestos.

A resposta do governo foi recrutar 9 000 muçulmanos wahhabitas, conhecidos como Hisba, pagos com dinheiros públicos, que zelam pela escrupulosa aplicação da sharia (wahhabita). Estes militantes fundamentalistas (na real acepção do termo) têm aterrorizado (relatório disponível em pdf) toda a população nos últimos anos, especialmente, para além das vítimas do costume, as mulheres, as minorias católica e shiita.

Este cenário de violência e perseguição dos que não seguem a «verdadeira fé» e de imposição das «verdades absolutas» reveladas dessa «verdadeira fé» repete-se nos 12 estados do Norte da Nigéria que adoptaram a sharia que, de acordo com a Constituição da Nigéria, deveria ser apenas aplicada na resolução de disputas familiares.

Várias organizações, católicas inclusive, pediram ao presidente Olusegun Obasanjo para por termo a esta aplicação abusiva da sharia. Recordando a resposta de Obasanjo em 2002 em relação ao caso que chocou o mundo inteiro, a sentença de morte por apedrejamento de Amina Lawal, diria que é pouco provável que tal aconteça. E que é mais provável que continuemos a ver uma escalada de violência neste país flagelado há décadas por sangrentas disputas políticas e religiosas e a instalação progressiva pela minoria wahhabita (mas politicamente influente e suportada pelos petrodolares sauditas) de regimes em tudo similares ao dos talibans no Afeganistão!

Enfim, há sempre esperança de que a única saída pacífica para esta situação (excepto para fundamentalistas de todas as confissões, claro, que a consideram o grande inimigo da liberdade), a laicidade preconizada por humanistas como Enyeribe Onuoha consiga prevalecer e evitar a guerra civil que se desenha na Nigéria…

8 de Janeiro, 2006 Ricardo Alves

Laicidade, igualdade e privacidade

A iniciativa da Associação República e Laicidade (ARL) de denunciar situações de realização de rituais religiosos e de permanência de símbolos religiosos em escolas públicas gerou uma polémica esclarecedora.

Significativamente, nem os mais veementes na defesa da perpetuação dessas situações ousam negar que elas são inconstitucionais e ilegais. De facto, constitucionalmente as igrejas estão separadas do Estado e o ensino público não é confessional, todos os cidadãos são iguais perante a lei independentemente das suas convicções religiosas, e segundo a Lei da Liberdade Religiosa o Estado não adopta qualquer religião e ninguém pode ser obrigado a praticar ou a assistir a actos de culto, ou a receber propaganda em matéria religiosa. O entendimento de que a permanência de crucifixos em salas de aula de escolas públicas é inconciliável com os preceitos constitucionais foi aliás reiterado em 1999 pelo Provedor de Justiça, num parecer em que afirmou que «[se trata] de uma situação desconforme com o princípio da separação das confissões religiosas do Estado». Parecendo a situação jurídica consensual, existe porém quem defenda a desobediência à lei.

A resistência ao cumprimento da Constituição da República evidencia que a pedagogia da laicidade do Estado não tem sido adequadamente realizada. Deveria ser óbvio que a laicização do Estado não privará a Igreja Católica, ou qualquer outra comunidade religiosa, de uma única das liberdades que lhes são indispensáveis ao exercício do culto. No entanto, a acreditar em alguns dos opositores à laicização, estas medidas seriam inseparáveis de puros desvarios que se lhes seguiriam inexoravelmente, como a interdição da posse de crucifixos, a implosão de todas as igrejas em território nacional ou a proibição de todo e qualquer culto religioso! Quem tal afirma entende a laicidade – erradamente – como um totalitarismo simétrico do totalitarismo católico e inquisitorial, quando pelo contrário, ao impor limites ao poder do Estado sobre os cidadãos, é a defesa do indivíduo contra todos os totalitarismos religiosos e ideológicos que se assegura. A laicidade implica exactamente que o Estado não professa uma religião nem patrocina qualquer coacção religiosa sobre os cidadãos, ficando assim os cidadãos efectivamente livres de professar uma religião ou nenhuma no domínio privado e associativo, ou mesmo em público desde que no respeito pela possibilidade de outros também o fazerem.

Recorda-se a quem argumenta com a tradição que deve fazê-lo ciente de que esta foi inventada pelo salazarismo em 1936, quando se legislou que «em todas as escolas públicas (…) existirá, por detrás e acima da cadeira do professor, um crucifixo, como símbolo da educação cristã determinada pela Constituição». E aos que defendem que as maiorias sociológicas podem suspender a aplicação de direitos individuais que, como a liberdade de consciência, estão assegurados constitucionalmente, assinalamos que tomamos esta iniciativa justamente por recebermos numerosas queixas de encarregados de educação e professores que nem sempre desejam revelar, perante as comunidades em que estão inseridos, as suas convicções em matéria religiosa. Permitir que cada comunidade decidisse quais as leis e preceitos constitucionais a aplicar localmente seria demitir o Estado do seu papel de garante dos direitos individuais contra as coacções das maiorias locais, e nomeadamente do direito à privacidade das opções em matéria religiosa.

Finalmente, a posição assumida pelo Ministério da Educação – ao fazer depender a retirada dos crucifixos ou a cessação de rituais religiosos de queixas recebidas – é manifestamente insuficiente. Novamente porque a aplicação de preceitos constitucionais de aplicação geral não pode depender de pedidos pontuais nem da desistência, pelos cidadãos, do direito à privacidade das suas convicções.

Só se o Estado for realmente laico a sociedade poderá ser livre e plural. Só a laicidade garante a liberdade de consciência de todos, os que têm uma qualquer religião e os que não têm nenhuma.

Ricardo Alves (Secretário da Direcção da Associação República e Laicidade)

Nota: texto publicado como carta de leitor no jornal «Público» de 7/1/2006.