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Dia: 12 de Novembro, 2005

12 de Novembro, 2005 Carlos Esperança

Virgem em Lisboa

A Virgem Santíssima, representada para todos os efeitos legais pela Senhora de Fátima, cansada do Santuário e das mãos beatas que a vestem e despem, escapa-se às vezes para peregrinações litúrgicas na companhia dos padres.

Longe vão os tempos em que pulava de azinheira em azinheira, antes de o reumatismo e o tamanho das saias lhe tolherem os movimentos e a liberdade.

Era o tempo em que ainda punha o Sol às cambalhotas, a espreitar por baixo do manto, e os basbaques de joelhos a procurar a melhor posição para lhe perscrutar o íntimo e mostrar o terço com que afugentavam o demo e queriam converter a Rússia.

Hoje, a Senhora de Fátima está em Lisboa, rodeada de padres, bispos e outros ociosos, à espera de a levarem a percorrer o caminho das prostitutas, proxenetas e carentes sexuais que arriscam a SIDA, a hepatite, a blenorragia e a sífilis.

O patriarca Policarpo vai consagrar Lisboa à Virgem Santíssima como quem adjudica uma ilha tropical para oferecer à amante. Consagrando-lhe a cidade, oferece-lhe crentes e ateus, virgens e delambidas, polícias e ladrões, drogados e passadores, igrejas e lupanares, casinos e escolas, como se a cidade fosse uma coutada da ICAR e as pessoas os animais de um jardim zoológico de que a diocese fosse a proprietária.

Não será possível, à semelhança dos que pagavam a bula para comer carne à sexta-feira, pagar a isenção da consagração, evitar o odor a incenso e ser conspurcado com água benta?

Um destes dias o xeique Munir sai desembestado da mesquita para consagrar a cidade a Maomé e, se a moda pega, solta-se da sinagoga um rabino que consagra Lisboa a Yavé.

Depois de tanta consagração a cidade transforma-se num imenso bordel donde é prudente, por precaução, evacuar a Virgem Santíssima. À cautela.

12 de Novembro, 2005 Ricardo Alves

O passeio da boneca

Hoje, haverá uma festa em Lisboa tendo como figura central uma boneca de louça com uma coroa de ouro. Segundo os líderes da corporação que organiza o culto deste e de outros objectos (a ICAR), a boneca que se encontra habitualmente no concelho de Ourém pernoita nas Avenidas Novas, de onde sairá às 17 horas com destino à Praça dos Restauradores, local onde a festa culminará numa, assim chamada, «Consagração de Lisboa a Nossa Senhora de Fátima».

Ingenuamente, pode perguntar-se quando e como os lisboetas deram autorização aos líderes locais da ICAR para «consagrarem» a cidade a uma boneca qualquer? Que se saiba, não houve votação alguma, os munícipes não foram consultados, e os ditos líderes religiosos nem pelos seus seguidores são eleitos: são nomeados por uma organização internacional com sede em Roma. Sendo assim, seria mais correcto «consagrar» a boneca (a «Senhora» que é deles e não nossa) a Lisboa, e não o contrário! Porque fala então a porção católica dos lisboetas em nome de Lisboa? A resposta (óbvia) é que se pretende justamente fingir que todos os lisboetas são católicos!

É portanto imperativo assinalar que a ICAR escolheu falar em nome de uma cidade onde a percentagem de habitantes que praticam o catolicismo num dado Domingo é sensivelmente a mesma do que a percentagem de pessoas sem religião declaradas como tal ao censo de 2001; onde, em 2003, 42% das crianças nasceram de pais que não estavam casados (nem sequer pelo registo civil); e numa região (a de Lisboa e Vale do Tejo) onde, no mesmo ano, a maioria dos casamentos celebrados (51%) foram-no pelo registo civil e não no altar onde o poder clerical se afirma. Pode concluir-se que os lisboetas e os seus vizinhos já abandonaram a ICAR como referência, e que o acto de hoje, como as tentativas de proselitar nos centros comerciais nos últimos dias, são acções desesperadas de quem já não consegue a atenção da população mas ainda detém o favor das instituições.

Devemos aos esforços de homens livres como Alexandre Herculano, Afonso Costa, Emídio Guerreiro e os militares do MFA, o vivermos numa sociedade em que qualquer um se pode manifestar, inclusivamente aqueles que almejam destruir a liberdade (caso dos que se manifestaram no Martim Moniz há alguns meses) ou estes que desejariam voltar aos tempos (para eles, saudosos) em que não havia liberdade porque o poder civil estava submetido ao clero, e que agora nos atrofiam com opiniões teológicas sobre questões terrenas. É ainda lamentável que a televisão que é pública, e portanto de todos, colabore. É sem dúvida estranho que a Avenida da Liberdade fique entregue, nem que seja por algumas horas, a quem atropela a liberdade humana invocando a autoridade divina. Todavia, há que ser tolerante com os católicos, ainda que com a certeza de que eles jamais o serão connosco.