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Dia: 17 de Janeiro, 2004

17 de Janeiro, 2004 Carlos Esperança

Sodoma

Naquele tempo, andava Deus na divina ociosidade a que se remeteu depois de ter criado o Mundo, quiçá arrependido do estratagema que engendrou para que os animais se multiplicassem, a ruminar uma desculpa por ter incluído a macieira quando fez as plantas, sabendo que sem Eva e sem maçã estaríamos todos, ainda hoje, condenados ao Paraíso e ao tédio.

Tinha acontecido o dilúvio e a engenharia ousado edificar a torre de Babel. O primeiro foi um susto bem pregado e uma experiência radical e a segunda um enorme fracasso e uma grande confusão.

Pela planície do Mar Morto espreguiçavam-se cinco cidades que tinham níveis diferentes de desenvolvimento, costumes variados e interesses diversificados. Distinguiam-se Sodoma e Gomorra pela sua enorme riqueza, com um nível de vida de causar inveja, graças ao sector terciário que então não tinha ainda designação adequada, por não haver economistas encartados. As outras eram menos importantes, a acreditar no primeiro livro do Pentateuco.

Vinha do Norte o ar quente que, depois de percorrer e acariciar as águas do mar, entrava suavemente em Sodoma para animar os corpos e dar energia à alma, soltar toda a imaginação de que o mundo era capaz na sua difícil infância e produzir um indizível arrebatamento.

Homens e mulheres contavam os minutos das poucas horas que o expediente dos escritórios lhes tomava para cultivarem a seguir todos os prazeres febrilmente sonhados. Mesmo nas horas de trabalho não se coibiam de ser felizes e soltarem a imaginação. Os afazeres que o desenvolvimento tecnológico se tinha encarregado de aligeirar eram cada vez mais um mero resquício para justificar a maldição bíblica que viria a ser criada com efeitos retroactivos. Sendo o trabalho um bem muito escasso ninguém exagerava na sua apropriação.

Como os livros ainda não tinham sido inventados todos liam o livro da vida através dos sentidos. Tinham-se habituado a usar o corpo e a dar-lhe alma. Eram imensamente felizes a ponto de esquecerem Deus e os seus ensinamentos, as suas ameaças e maldições, o sofrimento e a cultura que o criara. E, porque eram felizes, não os atingia a doença, a fome, o medo ou a guerra.

Imagina-se o seu grau de felicidade pela intensidade da cólera divina, que enviou o fogo que destruiu Sodoma e, com ela, as outras cidades, e, com os que se divertiam, as crianças, que ainda o não sabiam fazer, e também os velhos que tinham esquecido já os divertimentos, se algum dia os souberam, e provavelmente algum anjo que tivesse tentado pôr termo ao pecado e acabou violado, chamuscadas as penas no desejo e esturricado, também ele, nas labaredas.

Ao longe Abraão assistia ao espectáculo que o seu Deus lhe servia à hora da sesta, tirando moncos do nariz, enquanto Loth, seu sobrinho, por bambúrrio da sorte ou por morar nos subúrbios, se esgueirava com as filhas e a mulher, tendo esta olhado para trás, apesar da recomendação divina em contrário, e sido transformada em estátua de sal, por ser nela maior a curiosidade que a obediência.

Para dizer alguma coisa ou por ter-se arrependido do fogo que ateara, ou para simplesmente criar factos que dessem conteúdo ao Êxodo, ao Levítico e a outros escritos, fez Deus umas promessas a Abraão que acabariam por dar origem a Israel, muito tempo depois, e dado a Jacob e aos seus 12 filhos o Egipto para se instalarem e cumprirem a profecia.

Sabe-se que Sodoma ficou na memória oral dos povos pelos hábitos sexuais de uma escassa minoria. Conhecendo-se hoje melhor Deus e os seus humores, a fé e os seus preconceitos, a devoção e a sua intolerância, somos levados a crer que seriam deliciosas as vitualhas, capitosos os líquidos, requintados os hábitos, agradáveis as relações, enfim, felizes os seus habitantes, a ponto de Deus perder a paciência e ser tomado por aquela cólera que o celebrizou.

Terá sido Loth o autor do boato a que se deve a criação do verbo, a partir do nome da cidade desaparecida. Ou um qualquer viandante saído antes do fogo e rendido aos encantos do pirómano.

[Texto elaborado de acordo com a memória que guardo das catequistas]

17 de Janeiro, 2004 Carlos Esperança

Sob o título «O ópio dos intelectuais» (EXPRESSO, 10/01/04, João Carlos Espada (JCE) associa-se ao ataque generalizado que, em Portugal, acolheu a proposta francesa sobre a laicidade. JCE reduz a França aos intelectuais do Quartier Latin, acoima a lei de «fundamentalismo, (…) impotente e patético» e atribui-a à ignorância da História por parte de Chirac.

Ora, a guerra dos véus, iniciada por duas alunas francesas, foi uma provocação instigada por clérigos que vêem com bons olhos a burka, a proibição da carne de porco, a excisão e a poligamia, em nome da pureza do islamismo – uma tentativa de desafiar a laicidade do Estado, em vigor desde 1905.

A proposta de lei não põe em causa a liberdade religiosa – como alega JCE – mas apenas que seja usada para perseguir os legítimos direitos das mulheres e impedir que a discriminação se perpetue por constrangimentos sociais. É por isso que há na sociedade francesa um consenso apenas quebrado por comunistas, verdes e trotsquistas. Não tendo a sociedade francesa ensandecido somos levados a crer que, pelo menos, haja motivos fortes para tal decisão.

Os sectores mais reaccionários da igreja católica apoiam a reivindicação islâmica, unidos no proselitismo, à espera de ajuste de contas posterior. A sábia decisão francesa acautela o direito de poder ter qualquer religião, ou nenhuma, perante anacronismos que consideram a apostasia e a blasfémia crimes hediondos merecedores de julgamento sumário e penas perpétuas.

Neste, como noutros casos, a comunicação social tem-se revelado um excelente veículo de difusão de notícias mas um medíocre espaço de confronto de ideias.

Injustamente para a França.