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Suplemento Q_o convidado. Hoje, DN (9 de agosto de 2013)

Convidado como presidente da Associação Ateísta Portuguesa, deixo aqui as respostas que dei, há 6 anos:

VER

Casablanca é o filme da minha geração

Sendo um filme romântico, fica para sempre a tensão dramática do tema, o desempenho notável de Humphrey Bogart e Ingrid Bergman e o dilema dilacerante entre a virtude e o amor, numa situação extrema onde o sacrifício do amor é cruel e obrigatório.

Só um filme em que o interesse do tema, a realização exemplar e o sublime desempenho dos atores se conjugam para documentar um dos mais dramáticos momentos da história da Humanidade, podia resistir aos 70 anos que já leva a cativar sucessivas gerações de cinéfilos e espectadores comuns.

Rever Casablanca é uma viagem ao Governo de Vichy e à demência nazi que apavorou a humanidade, particularmente a Europa, e prestar homenagem à resistência heroica que uniu as mais diversas correntes democráticas contra o esmagamento das liberdades pelo extremismo ideológico do nazismo que reuniu o que pode haver de pior em qualquer ideologia: o imperialismo, o racismo e a xenofobia, numa orgia de horror, violência e morte.

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Citizen Kane ou «O Mundo a Seus Pés» é um filme de suspense com uma realização soberba de Orson Welles. A palavra “Rosebud”, com que começa, pronunciada imediatamente antes da morte do magnate do jornalismo, acerca do qual se desenrola o filme, perdura pela vida de quem o viu e sentiu necessidade de o rever. «Rosebud» é a palavra enigmática, quiçá, algo que Kane perseguia e não conseguiu, talvez o fracasso derradeiro de quem subiu ao cume do poder, tornando-se um dos homens mais ricos do mundo, e algo lhe escapou.

Citizen Kane é um filme obrigatoriamente presente na história do cinema. Desde a direção artística à banda sonora, da fotografia à montagem, tudo se conjuga para a apoteose do ator protagonista, o próprio Orson Welles, que interpreta a vida de um homem pobre cuja indiferença alheia o levou a construir uma fortuna colossal e um poder imenso.

OUVIR

Recordo Os vampiros, de Zeca Afonso, talvez pelo momento presente em que a crise do capitalismo encontrou a saída na fuga para a frente, sem reparar na angústia, medo e revolta que semeia com o ultraliberalismo a que, neste momento, quer condenar-nos, em Portugal, na Europa e no Mundo.

Vem-me à memória a primeira quadra: «No céu cinzento sob o astro mudo / Batendo as asas Pela noite calada / Vêm em bandos Com pés veludo / Chupar o sangue Fresco da manada». Não posso deixar de pensar no homem generoso que pôs o seu talento ao serviço dos seus valores numa dádiva constante de um sonhador, para quem a vida foi madraça, e que tanto deu recebendo tão pouco.

Ouvir Zeca Afonso é prestar homenagem a um grande cantor de intervenção que ajudou a mudar Portugal quando não se sonhava que, numa manhã de abril, nasceriam cravos nos canos das espingardas.

Pedra Filosofal – Este belo poema, de António Gedeão, atinge uma sonoridade especial na voz de Manuel Freire. Enquanto houver homens e mulheres para quem o sonho comande a vida, não deixará de ser ouvido. É um hino à liberdade que nos interpela e extasia os sentidos.

Gosto de ouvir a Pedra Filosofal, fechar os olhos e sonhar, porque sei que «sempre que um homem sonha, o mundo pula e avança, como bola colorida, entre as mãos de uma criança». Quando o mundo volta a ser a preto e branco, quando a realidade quotidiana nos empurra para a melancolia, valem-nos os poetas e cantores para descobrir, por entre as nuvens pardacentas das noites escuras, o raio de luz que desponta para iluminar a aurora dos dias.

Ouvir música, como a referida, e ler um bom livro apazigua e traz a serenidade a que todos devíamos ter direito.

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LER
Memorial do Convento é na obra do maior ficcionista português de todos os tempos a marca indelével do escritor que trago no meu devocionário há muitos anos, do escritor a quem sempre profetizei o Nobel da literatura e a quem o devemos.

Estou a reler o livro que me despertou para a leitura do enorme escritor, para a escrita do estilista que revolucionou a arte literária e elevou a ficção a um nível raramente atingido, neste livro, no Memorial do Convento, casando a beleza da escrita com o rigor da descrição.

É uma viagem na história, pela mão do erudito e observador atento da monarquia e da sociedade, no tempo da construção do convento de Mafra, quando a fé num milagre era mais eficaz para a gravidez da augusta rainha do que assiduidade de D. João V a cumprir os deveres conjugais. Há personagens que vão resistir ao tempo, a todos os tempos, como Sete Luas e Sete Sóis e tantas outras.
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Li «Velhos Marinheiros», de Jorge Amado, quando «A Morte e a Morte de Quincas Berro d’Água» e «Vasco Moscoso de Aragão Capitão de Longo Curso» ainda faziam parte do mesmo volume. Foi uma delícia percorrer S. Salvador da Baía, onde um dia, talvez influenciado por Jorge Amado, haveria de rumar.

Nunca mais esquecerei o boémio que prostitutas e amigos passearam pelas ruas de S. Salvador, já no seu caixão, a despedir-se dos botequins onde devorava aguardente e fazia amigos. O berro que lhe deu a alcunha, quando lhe trocaram a cachaça por água, ficou imortalizado na prosa humorada de Jorge Amado.

Também as peripécias de Vasco Moscoso de Aragão, que tinha comprado um título de capitão de longo curso, como hoje se compra em Portugal uma licenciatura, ficou célebre a dar ordens para amarrar o navio que lhe coube comandar pela morte súbita do comandante. Foi o único navio que a ignorância do falso comandante salvou do vendaval que varreu o porto de S. Salvador da Baía.

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O Fim da Fé, Sam Harris – É um livro de um ateu militante que revela a origem humana das religiões e desmascara o potencial belicista dos livros sagrados. Nele, Sam Harris tem a coragem de denunciar o terrorismo islâmico não como obra de fanáticos, mas como maldade intrínseca do mais implacável dos monoteísmos.

Mostra como um livro da Idade do Bronze, criação da sociedade tribal e patriarcal, deu origem aos três monoteísmos e perpetua valores desse período histórico. Fica a saber-se que não foi Deus que criou os homens, mas estes que criaram Deus, à sua imagem e semelhança. Daí que o carácter xenófobo, violento, vingativo e misógino seja uma característica do Deus abraâmico que é comum às três religiões do livro. Quem ignora o sangue vertido em nome desse Deus cruel fica a saber como a humanidade sofreu por ser habituada, desde criança, a crenças que não resistem ao escrutínio da razão e se desmorona com os inúmeros exemplos de versículos que cita e dos factos históricos a que alude.

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«Porque não sou cristão» – Neste livro, Bertrand Russel, insigne matemático, filósofo e escritor, galardoado com o prémio Nobel da Literatura, prestou um enorme contributo à causa do ateísmo. O seu ateísmo, que não era militante, impediu-lhe a docência numa Universidade americana, tal a sanha que o ateísmo despertava, e ainda desperta.

No fundo invocou dois argumentos para justificar o título e o conteúdo do livro. Um argumento intelectual, que o impedia de acreditar em afirmações que não pudessem ser comprovadas; e outro, de natureza moral, que o impelia a ter valores civilizados e humanistas completamente inexistentes na época em que Deus foi criado.

De facto, hoje, quando a pena de morte é um símbolo de atraso civilizacional, é com espanto que vemos o Deus que os homens criaram a exigir tal sacrifício, por vezes por razões tão fúteis como a apostasia e a blasfémia. B. Russel foi um verdadeiro pedagogo.

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Antigo Testamento – É uma obra cuja leitura é recomendada pela Associação Ateísta Portuguesa (AAP). Estando na origem dos três monoteísmos ninguém ficará indiferente ao potencial de violência que contém. São particularmente significativos o Levítico e o Deuteronómio cujos horrores ultrapassam os preconizados pelos três outros livros que integram o Pentateuco.

Não foi por acaso que a Igreja católica proibiu a leitura da bíblia durante muitos séculos. Desde as contradições que encerra, até à fragilidade das afirmações científicas, há matéria suficiente para desconfiar de um Deus, se o houvesse, que fosse tão violento e reduzisse a criação humana a um mero trabalho de olaria. Mas o que mais perturba, mesmo quem tem convicções firmes sobra a natureza humana do AT, é o seu carácter misógino, que está na origem de séculos de sofrimento por metade da Humanidade –as mulheres. Veja-se, aliás, que a libertação da mulher foi conseguida, onde foi, no último século e sempre contra a vontade das religiões que a reduzem à menoridade, com especial violência no Islão.

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Deus não é grande – Christopher Hitchens procura demonstrar através deste livro como a religião envenena tudo. Foi um ateísta militante que deu uma notável conferência, uma das últimas, na Casa Fernando Pessoa, em Lisboa. Este notável jornalista, escritor e crítico literário dedicou uma parte importante da sua vida a combater as religiões.

Talvez nenhum outro ateu tenha sido tão inflamado na defesa do ateísmo, uma opção filosófica que, contrariamente ao cristianismo e islamismo, não costuma ser prosélita.

A sua inteligência e sagacidade fez do livro «Deus Não É Grande» («God Is Not Great», no original), um libelo implacável contra a influência deletéria das religiões. Era temido pela rapidez do raciocínio e argúcia argumentativa.

Este livro é, para os ateus, uma referência que estimula o estudo das religiões. Hitchens, baseado nos textos ditos sagrados, documenta à saciedade como Deus é um reflexo do nosso medo da morte e desmascara, de forma inexorável, os dogmas responsáveis pela violenta repressão sexual e pelos caminhos ínvios que a humanidade, refém desses dogmas, percorreu.

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O Conde de Abranhos – Eça de Queirós é um notável retratista. No Conde de Abranhos, mais do que a ironia, é o sarcasmo que domina a imagem impiedosa de uma figura do Constitucionalismo. Misto de biografia e de romance, Eça escreve a história privada de Alípio Abranhos e a sua ascensão social, num delírio de humor e escárnio com que cria uma figura de que todos os regimes, todos os países e todas as épocas têm um avatar.

A descrição do Conde de Abranhos, cuja origem se perde numa genealogia suspeita, entre relações adúlteras e a roda de crianças abandonadas de um convento, é uma sátira ao oportunismo de um medíocre bacharel em direito que passa por deputado e chega ao ministério.

Este exercício de humor corrosivo ficou como imagem de marca do grande romancista. A biografia deste político constitucionalista, pela pena do seu secretário e dedicado biógrafo, Z. Zagalo, é uma das mais demolidoras críticas com que Eça de Queirós criou mais um personagem da sua imensa galeria de retratados.

Carlos Esperança – 09-08-2013

Q – Era, se a memória me não falha, um suplemento do DN que convidava pessoas para enumerarem filmes, músicas e livros que particularmente apreciaram. Hoje poderiam ser algo diferentes as respostas, mas, como memória, aqui ficam respostas que então dei.