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Efeméride — 08 de julho de 2019

Há 18 anos os restos mortais de Amália Rodrigues foram trasladados para o Panteão Nacional, num ato inédito a revelar um país de excessos.

A decisão de trasladar Amália para o Panteão Nacional foi um gesto excessivo, quiçá irrefletido, uma decisão controversa, de motivações suspeitas e critérios obscuros, um precedente prenunciador de futuras injustiças. Abriu a porta a Eusébio e não se vê que Carlos do Carmo e Cristiano Ronaldo, a seu tempo, possam evitar idêntica homenagem.

No caso de Amália, não duvidei do sentimento unânime dos deputados. Surpreendeu-me, sim, a apurada intuição musical coletiva. Não haveria na Assembleia da República alguém, com tal dureza de ouvido, que se sentisse obrigado à abstenção que desafinasse o coro da unanimidade?

Admito que Amália tivesse sido a melhor voz da vida de todos nós. Mas o respeito, a admiração e a saudade não justificavam o exagero que nada acrescentou à glória de quem se pretendeu homenagear e contribui para o descrédito das homenagens nacionais.

Edith Piaf ou Maria Callas não tiveram semelhante honraria e os seus países orgulham-se tanto delas quanto Portugal de Amália. Tratou-se de uma manifestação exacerbada de sentimentalismo que traz à memória a injustiça para com Saramago, Miguel Torga ou Salgueiro Maia. Ou mesmo para Sá Carneiro. Tratou-se da total ausência do sentido das proporções.

Como redentora consolação resta-nos o facto de saber Amália rodeada de poetas. João de Deus, Almeida Garrett e Guerra Junqueiro são os vizinhos mais próximos a fazer-lhe companhia durante a eternidade. Estou certo de que, depois de ler o Campo de Flores e Flores Sem Fruto, não deixará de temperar a piedosa devoção que a devorou em vida com os versos reparadores da Velhice do Padre Eterno.

Treze anos passados já deve saber de cor os versos de ‘O Melro’:

O MELRO

O melro, eu conheci-o: 
Era negro, vibrante, luzidio, 
Madrugador, jovial; 
Logo de manhã cedo 
Começava a soltar, dentre o arvoredo, 
Verdadeiras risadas de cristal. 
E assim que o padre-cura abria a porta 
Que dá para o passal, 
Repicando umas finas ironias, 
O melro; dentre a horta, 
Dizia-lhe: “Bons dias!” 
E o velho padre-cura 
não gostava daquelas cortesias.

O cura era um velhote conservado, 
Malicioso, alegre, prazenteiro; 
Não tinha pombas brancas no telhado, 
Nem rosas no canteiro: 
Andava às lebres pelo monte, a pé, 
Livre de reumatismos, 
Graças a Deus, e graças a Noé. 
O melro desprezava os exorcismos 
Que o padre lhe dizia: 
Cantava, assobiava alegremente; 
Até que ultimamente 
O velho disse um dia:

“Nada, já não tem jeito!, este ladrão 
Dá cabo dos trigais! 
Qual seria a razão 
Por que Deus fez os melros e os pardais?!”

E o melro entretanto, 
Honesto como um santo, 
Mal vinha no oriente 
A madrugada clara, 
Já ele andava jovial, inquieto, 
Comendo alegremente, honradamente, 
Todos os parasitas da seara 
Desde a formiga ao mais pequeno inseto. 
E apesar disto, o rude proletário, 
O bom trabalhador, 
Nunca exigiu aumento de salário.

Que grande tolo o padre confessor!

Foi para a eira o trigo; 
E, armando uns espantalhos, 
Disse o abade consigo: 
“Acabaram-se as penas e os trabalhos.” 
Mas logo de manhã, maldito espanto! 
O abade, inda na cama, 
Ouvindo do melro o costumado canto, 
Ficou ardendo em chama; 
Pega na caçadeira, 
Levanta-se dum salto, 
E vê o melro, a assobiar, na eira, 
Em cima do seu velho chapéu alto!

Chegou a coisa a termo 
Que o bom do padre-cura andava enfermo; 
Não falava nem ria, 
Minado por tão íntimo desgosto; 
E o vermelho oleoso do seu rosto 
Tornava-se amarelo dia a dia. 
E foi tal a paixão, a desventura 
(Muito embora o leitor não me acredite), 
Que o bom do padre-cura 
Perdera o apetite!

Andando no quintal, um certo dia, 
Lendo em voz alta o Velho Testamento, 
Enxergou por acaso (que alegria!, 
Que ditoso momento!) 
Um ninho com seis melros, escondido 
Entre uma carvalheira.

E ao vê-los exclamou enfurecido:

“A mãe comeu o fruto proibido; 
Esse fruto era minha sementeira: 
Era o pão, e era o milho; 
Transmitiu-se o pecado. 
E, se a mãe não pagou, que pague o filho. 
É doutrina da Igreja. Estou vingado!”

E, engaiolando os pobres passaritos, 
Soltava exclamações: 
“É uma praga. Malditos! 
Dão me cabo de tudo esses ladrões! 
Raios os partam! Andai lá que enfim”

E deixando a gaiola pendurada, 
Continuou a ler o seu latim, 
Fungando uma pitada.

Vinha tombando a noite silenciosa; 
E caía por sobre a natureza 
Uma serena paz religiosa, 
Uma bela tristeza 
Harmónica, viril, indefinida. 
A luz crepuscular 
Infiltra-nos na alma dorida 
Um misticismo heroico e salutar. 
As árvores, de luz inda douradas, 
Sobre os montes longínquos, solitários, 
Tinham tomado as formas rendilhadas 
Das plantas dos herbários. 
Recolhiam-se a casa os lavradores. 
Dormiam virginais as coisas mansas: 
Os rebanhos e as flores, 
As aves e as crianças.

Ia subindo a escada o velho abade; 
A sua negra, atlética figura, 
Destacava na frouxa claridade, 
Como uma nódoa escura. 
E, introduzindo a chave no portal, 
Murmurou entre dentes:

“Tal e qual tal e qual! 
Guisados com arroz são excelentes.”

* * * * * *

Nasceu a Lua. As folhas dos arbustos 
Tinham o brilho meigo, aveludado, 
Do sorriso dos mártires, dos justos. 
Um eflúvio dormente e perfumado 
Embebedava as seivas luxuriantes. 
Todas as forças vivas da matéria 
Murmuravam diálogos gigantes 
Pela amplidão etérea. 
São precisos silêncios virginais, 
Disposições simpáticas, nervosas, 
Para ouvir falar estas falas silenciosas 
Dos mundos vegetais. 
As orvalhadas, frescas espessuras, 
Pressentiam-se quase a germinar. 
Desmaiavam-se as cândidas verduras 
Nos magnetismos brancos do luar. 
………………………………………….. 
…………………………………………..

E nisto o melro foi direito ao ninho. 
Para o agasalhar, andou buscando 
Umas penugens doces como arminho, 
Um feltrozito acetinado e brando. 
Chegou lá, e viu tudo. 
Partiu como uma frecha; e, louco e mudo, 
Correu por todo o matagal; em vão! 
Mas eis que solta de repente um grito 
Indo encontrar os filhos na prisão.

“Quem vos meteu aqui?!” O mais velho, 
Todo tremente, murmurou então:

“Foi aquele homem negro. Quando veio, 
Chamei, chamei Andavas tu na horta 
Ai que susto, que susto!, ele é tão feio! 
Tive-lhe tanto medo! Abre esta porta 
E esconde-nos debaixo da tua asa! 
Olha, já vão florindo as açucenas; 
Vamos a construir a nossa casa 
Num bonito lugar 
Ai! quem me dera, minha mãe, ter penas 
Para voar, voar!”

E o melro alucinado 
Clamou:

“Senhor! senhor! 
É porventura crime ou é pecado 
Que eu tenha muito amor 
A estes inocentes?! 
Ó natureza, ó Deus, como consentes 
Que me roubem assim os meus filhinhos, 
Os filhos que eu criei! 
Quanta dor, quanto amor, quantos carinhos, 
Quanta noite perdida 
Nem eu sei… 
E tudo, tudo em vão! 
Filhos da minha vida 
Filhos do coração!!! 
Não bastaria a natureza inteira, 
Não bastaria o Céu par voardes, 
E prendem-vos assim desta maneira! 
Covardes! 
A luz, a luz, o movimento insano, 
Eis o aguilhão, a fé que nos abrasa 
Encarcerar a asa 
É encarcerar o pensamento humano. 
A culpa tive-a eu! Quase à noitinha 
Parti, deixei-os sós 
A culpa tive-a eu, a culpa é minha, 
De mais ninguém! Que atroz! 
E eu devia sabê-lo! 
Eu tinha obrigação de adivinhar 
Remorso eterno! eterno pesadelo! 
………………………………………….

Falta-me a luz e o ar! Oh, quem me dera 
Ser abutre ou fera 
Para partir o cárcere maldito! 
E como a noite é límpida e formosa! 
Nem um ai, nem um grito 
Que noite triste!, oh, noite silenciosa!”

E a natureza fresca, omnipotente, 
Sorria castamente 
Com o sorriso alegre dos heróis. 
Nas sebes orvalhadas, 
Entre folhas luzentes como espadas, 
Cantavam rouxinóis.

Os vegetais felizes 
Mergulhavam as sôfregas raízes 
A procurar na terra as seivas boas, 
Com a avidez e as raivas tenebrosas 
Das pequeninas feras vigorosas 
Sugando à noite os peitos das leoas. 
A lua triste, a Lua merencória, 
Desdémona marmórea, 
Rolava pelo azul da imensidade, 
Imersa numa luz serena e fria, 
Branca como a harmonia, 
Pura como a verdade. 
E entre a luz do luar e os sons das flores, 
Na atonia cruel das grandes dores, 
O melro solitário 
Jazia inerte, exânime, sereno, 
Bem como outrora o Nazareno 
Na noite do calvário!

Segundo o seu costume habitual, 
Logo de madrugada 
O padre-cura foi para o quintal, 
Levando a Bíblia e sobraçando a enxada. 
Antes de dizer missa, 
O velho abade inevitavelmente 
Tratava da hortaliça 
E rezava a Deus-Padre Omnipotente 
Vários trechos latinos, 
Salvando desta forma, juntamente, 
As ervilhas, as almas e os pepinos.

E já de longe ia bradando:

“Olé! 
Dormiram bem? Estimo 
Eu lhes darei o mimo, 
Canalha vil, grandíssima ralé! 
Então vocês, seus almas do Diabo, 
Julgam que isto que era só dar cabo 
Da horta e do pomar, 
E o bico alegre e estômago contente, 
E o camelo do cura que se aguente, 
Que engrole o seu latim e vá bugiar! 
Grandes larápios! Era o que faltava 
Vocês irem ao milho, 
E a mim mandar-me à fava! 
Pois muito bem, agora que vos pilho 
Eu vos ensinarei, meus safardanas! 
Vocês são mariolões, são ratazanas, 
Têm bico, é certo, mas não têm tonsura 
E, nas manhas, um melro nunca chega 
Às manhas naturais de um padre-cura. 
O melhor vinho que encontrar na adega 
É para hoje, olé! Que bambochata! 
Que petisqueira! Melros com chouriço! 
E então a Fortunata 
Que tem um dedo e jeito para isso! 
Hei-de comer-vos todos um a um, 
Lambendo os beiços, com tal gana enfim, 
Que comendo-vos todos, mesmo assim 
Eu fico ainda quase em jejum! 
E depois de vos ter dentro da pança, 
Depois de vos jantar, 
Vocês verão como o velhote dança, 
Como ele é melro e sabe assobiar!”

Mas nisto o padre-cura, titubeante, 
Quase desfalecendo, 
Atónito de horror, parou diante 
Deste drama estupendo:

O melro, ao ver aproximar o abade, 
Despertou da atonia, 
Lançando-se furioso contra a grade 
Do cárcere. Torcia, 
Para os partir os ferros da prisão, 
Crispando as unhas convulsivamente 
Com a fúria dum leão. 
Batalha inútil, desespero ardente! 
Quebrou as garras, depenou as asas 
E alucinado, exangue, 
Os olhos como brasas, 
Herói febril, a gotejar em sangue, 
Partiu num voo arrebatado e louco, 
Trazendo, dentro em pouco, 
Preso do bico, um ramo de veneno. 
E belo e grande e trágico e sereno, 
Disse: 
“Meus filhos, a existência é boa 
Só quando é livre. A liberdade é a lei, 
Prende-se a asa mas a alma voa 
Ó filhos, voemos pelo azul! Comei!” –

E mais sublime do que Cristo, quando 
Morreu na Cruz, maior do que Catão, 
Matou os quatro filhos, trespassando 
Quatro vezes o próprio coração! 
Soltou, fitando o abade, uma pungente 
Gargalhada de lágrima, de dor, 
E partiu pelo espaço heroicamente, 
Indo cair, já morto, de repente 
Num carcavão com silveiras em flor.

E o velho abade, lívido d’espanto, 
Exclamou afinal: 
“Tudo o que existe é imaculado e é santo! 
Há em toda a miséria o mesmo pranto 
E em todo o coração há um grito igual. 
Deus semeou d’almas o universo todo. 
Tudo que o vive ri e canta e chora 
Tudo foi feito com o mesmo lodo, 
Purificado com a mesma aurora. 
Ó mistério sagrado da existência, 
Só hoje te adivinho, 
Ao ver que a alma tem a mesma essência, 
Pela dor, pelo amor, pela inocência, 
Quer guarde um berço, quer proteja um ninho! 
Só hoje sei que em toda a criatura, 
Desde a mais bela até à mais impura, 
Ou numa pomba ou numa fera brava, 
Deus habita, Deus sonha, Deus murmura! 
…………………………………………………… 
Ah, Deus é bem maior do que eu julgava”

E quedou silencioso. O velho mundo, 
Das suas crenças antigas, num momento, 
Viu-o sumir exausto, moribundo, 
Nos abismos sem fundo 
Do temeroso mar do Pensamento. 
E chorou e chorou A Igreja, a Crença, 
Rude montanha, pavorosa, escura, 
Que enchia o globo com a sombra imensa 
Dos seus setenta séculos d’altura; 
O Himalaia de dogmas triunfantes, 
Mais eternos que o bronze e que o granito, 
Onde aos profetas Deus falava dantes, 
Entre raios e nuvens trovejantes, 
Lá dos confins sidérios do infinito; 
Esse colosso enorme, em dois instantes 
Viu-o tremer, fender-se e desabar 
Numa ruína espantosa, 
Só de tocar-lhe a asa vaporosa 
Duma avezinha trémula, a expirar! 
…………………………………………. 
…………………………………………. 
E, arremessando a Bíblia, o velho abade 
Murmurou: 
“Há mais fé e há mais verdade, 
Há mais Deus concerteza 
Nos cardos secos dum rochedo nu 
Que nessa Bíblia antiga Ó Natureza, 
A única Bíblia verdadeira és tu!…”

Guerra Junqueiro