2 de Novembro, 2011 Raul Pereira
Livros de Humberto Eco e Jesse Bering
Umberto Eco
Construir o inimigo e outros escritos ocasionais (Costruire il nemico e altri scritti occasionali), Gradiva, 2011, 312 pg. (****)
Eco tem um apetite intelectual bulímico e omnívoro, de forma que esta recolha de 15 textos apresentados em conferências ou publicados na imprensa durante a primeira década deste século, vai do Ulisses de James Joyce à Balada do Mar Salgado de Hugo Pratt, das cogitações de São Tomás de Aquino sobre a alma dos fetos às raparigas de formas generosas que adornam as televisões do Sr. Berlusconi. Alguns textos perdem pertinência e inteligibilidade quando retirados do contexto em que foram apresentados – é o caso de “Delícias Fermentadas” ou “O Grupo 63, 40 Anos Depois” – mas a lucidez e engenho de cada um dos restantes seria, por si, só razão para adquirir toda a colecção.
“Construir o Inimigo”, o ensaio que dá título à antologia, é uma brilhante súmula de, como ao longo da história, cada povo ou raça foi concebendo o Outro. Outro texto de grande pertinência e actualidade é “Absoluto e Relativo”, que distingue os vários tipos de relativismo que o debate público confunde (ou faz por confundir).
A ironia de Eco assoma em “Andar em busca de tesouros”, que retoma um tópico já abordado em O Nome da Rosa: a proliferação de relíquias sagradas pelas igrejas e mosteiros da Europa. Veja-se o caso do prepúcio de Jesus, cuja posse é reclamada, simultaneamente, por Roma, Santiago de Compostela, Chartres, Besançon, Metz, Hildesheim, Charroux, Conques, Langres, Antuérpia, Fécamp, Puy-en-Velay, Auvergne e Calcata, embora esta última tenha perdido essa pretensão desde 1970, quando o pároco comunicou o seu furto. Já os cueiros do Menino Jesus são reclamados apenas por Aquisgrana (Aachen), o que se compreende pois nos tempos bíblicos a fralda descartável ainda não tinha sido inventada – um Jesus do século XXI deixaria um rasto capaz de satisfazer todos os santuários. Constantinopla (hoje Istambul) pôde orgulhar-se de uma extraordinária concentração de relíquias, mas a IV Cruzada levou à dispersão da maior parte, incluindo “uma porção de esterco do burro em cima do qual Jesus entrou em Jerusalém” (se o prezado leitor tiver notícia do seu paradeiro queira alertar as autoridades eclesiásticas).
A antologia encerra com umas “Reflexões sobre o Wikileaks” bem mais penetrantes e iluminadoras do que a maior parte do que se tem escrito sobre o assunto: “Todo o dossier construído pelos serviços secretos […] é feito exclusivamente de material já de domínio público. […] Preguiçoso o informador e preguiçoso, ou de mente estreita, o dirigente dos serviços secretos, que julga verdadeiro apenas aquilo que reconhece”.
Jesse Bering
O Instinto de Acreditar, Temas & Debates, 2011, 284 pg. (****)
No debate sobre Deus que anima o meio intelectual anglo-saxónico (por cá o debate anda mais em torno de Jesus e da sua capacidade em levar o Benfica a campeão) é desconcertante que este livro tenha sido recebido pelo sector religioso com bonomia. Bering não é tão agressivo como Richard Dawkins e Christopher Hitchens, mas não é menos assertivo.
Bering introduz a coscuvilhice como explicação do apetite por criar deuses: a conjugação de duas características únicas da espécie humana – a capacidade de imaginar e prever o pensamento e comportamento dos nossos pares (a “teoria da mente”) e a linguagem (que nos permite relatar os comportamentos dos nossos pares) – fez do mexerico um eficaz “dispositivo de policiamento” da sociedade.
Mais eficaz ainda é imaginar que existe um deus que nos observa mesmo quando os nossos pares estão distraídos. “A atracção inebriante das crenças no destino, de ver sinais numa série infinita de acontecimentos naturais inesperados, a ilusão inabalável da imortalidade psicológica, e a assumpção implícita de que os infortúnios estão ligados a um qualquer plano divino […], tudo isso amadureceu no cérebro humano, [levando] os nossos antepassados a sentir-se e a comportar-se como se as suas acções estivessem a ser observadas, etiquetadas e julgadas por uma audiência sobrenatural”. Ao refrear o comportamento egocêntrico e impulsivo, “a ilusão cognitiva de um Deus omnipresente e atento foi útil para os nossos genes, e isso é razão suficiente para que a natureza mantivesse a ilusão bem viva no cérebro humano”.
— José Carlos Fernandes —
❖ Críticas publicadas na Time Out: Lisboa a 19 e a 26 de Outubro de 2011, respectivamente. Agradeço ao autor a autorização para as publicar também no Diário Ateísta.