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14 de Fevereiro, 2024 Onofre Varela

A crença existe no raciocínio de todos

A crença existe no raciocínio de todos, quer se seja licenciado ou analfabeto

Para quem é religioso, as leis gerais da Natureza de que resultaram os processos químicos e físicos responsáveis pelo eclodir da vida, de nada valem se não lhe acrescentar o mito do “sopro de Deus”!… A crença religiosa induziu o crente a encontrar a mão divina nas leis gerais da Natureza, levando-o a acreditar numa vontade invisível na origem de todas as coisas… sem explicar a natureza dessa vontade.

Será que, por isso, podemos afirmar que crer em Deus é sinónimo de ignorância?…

Porque é que um licenciado, médico, por exemplo (existe a Associação dos Médicos Católicos), tem, pelo conceito de Deus, a mesma adoração de um servente de obras analfabeto?

Será que o licenciado não aprendeu nada… ou o analfabeto sabe muito?!

É erro dizer que a crença em Deus pertence aos ignorantes. O saber e a crença podem coabitar (e coabitam) pacificamente na mesma mente. A religiosidade é um atributo humano e a ideia de Deus está alojada no cérebro de todos nós. O berço que tivemos, o meio em que crescemos e fomos educados, mais a sensibilidade de cada um e o percurso que fazemos na vida, ditará o interesse e o valor que cada indivíduo dá (ou não dá) à ideia do divino.

O culto de Deus está presente nas famílias desde que se nasce (pelo baptismo na pia da igreja da paróquia), na celebração religiosa da Comunhão (como referente da passagem da meninice para a juventude), no casamento frente ao altar e, mais tarde, no baptismo dos filhos, até ao enterramento depois de finado, com funeral presidido por um sacerdote que encomenda a alma do defunto ao “Altíssimo”.

Toda a vida do temeroso crente é votada à religiosidade, o que tem muito peso no entendimento que faz da palavra Deus. Não há quem possa fugir às éticas sociais e religiosas presentes na construção das suas origens… e essa impossibilidade de fuga tem o seu preço…

Para além desta verdade antropológica e social, há o comércio religioso nas lojas e espécie de enfermaria ou consultório de psicologia em que as igrejas se transformaram, prestando assistência à alma a qualquer hora do dia. Igrejas, capelas e alminhas de esquina estão tão disseminadas pelo país como as caixas Multibanco.

Qualquer produto religioso que se mostre de interesse geral (ou mesmo sem se mostrar; a fé basta) passa a ser comercializado, a alimentar indústrias, a ser massivamente publicitado e consumido tal como a Coca-Cola, os hambúrgueres e as telenovelas.

O “produto-Deus” está colado a nós. Tem a mais valia de nos acompanhar desde o Paleolítico, com reforço nas Idades do Ferro e do Bronze, acrescentado pelo medo do castigo divino induzido na Idade Média e embelezado com a Arte da Renascença.

Na nossa civilização a história de Deus “já vem de longe” (como dizia a publicidade ao Brandy Constantino da minha juventude), desde a Antiguidade Clássica importadora dos enigmáticos deuses da Mesopotâmia, acompanhando-nos nos momentos mais emblemáticos das nossas vidas, o que, por si só, exerce muita influência no nosso modo de ser.

Mas há muito mais para além disso. A ideia de Deus também serve interesses políticos, sociais e económicos, o que tem demasiada importância para os mandantes do mundo!…

Sendo assim… já se percebe porque é que a ideia de Deus também habita cabeças com raciocínio superior ao de um servente de obras analfabeto!…

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV 

12 de Fevereiro, 2024 Onofre Varela

Provada a passividade de Pio XII perante o Holocausto Judeu

A cidade-estado do Vaticano existe desde 1929. Foi criada no dia 11 de Fevereiro pelo Tratado de Latrão entre a Santa Sé e o Reino de Itália, assinado pelo chefe do governo Benito Mussolini, em nome do rei Victor Emmanuel III, e pelo cardeal secretário de Estado Pietro Gasparri que representava o Papa Pio XI.

O mundo vivia, então, um “interregno de guerras”, entre a Primeira Guerra Mundial, que terminou em 1918, e a segunda, que se iniciou em 1939. Exactamente nesse ano de 1939 foi eleito o Papa Pio XII (1939-1958) e a História do Vaticano diz que ele “seguiu uma política de neutralidade” em relação ao conflito armado. Esta neutralidade sempre foi suposta de contar com uma grande dose de passividade do Papa perante o extermínio do povo judeu pelo nazismo de Hitler, mas faltava provar tal suposição.

Recentemente (19/09/2023) o jornal espanhol “El País” noticiou que um arquivista do Vaticano encontrou uma carta onde se prova “o triste testemunho da passividade do Papa Pio XII perante o terror nazi”. A carta em questão foi publicada no fim-de-semana de 16 e 17 de Setembro último no jornal italiano “Il Corriere della Sera”, na razão directa da desclassificação do documento pelo Papa Francisco I em 2 de Março de 2020.

Tal desclassificação permitiu que, da suspeita de que Pio XII sempre fizesse um “inquietante silêncio” sobre o extermínio Judeu pelos alemães, se passasse à certeza da inacção de Pio XII sobre o Holocausto. A carta que alertava o Papa para o crime nazi tem a data de 14 de Dezembro de 1942, foi escrita pelo padre Lother Koenig “um jesuíta que participou na resistência anti-nazi na Alemanha” e enviada ao secretário pessoal do Papa no Vaticano, mas acabou nos arquivos sem que a importância histórica e o dramatismo do seu conteúdo merecessem qualquer acção de Pio XII.

A carta confirmava que cerca de “6000 polacos e judeus eram assassinados diariamente nos fornos crematórios das SS, no campo de concentração de Belzec”, próximo de Rava-Ruska, que fazia parte da Polónia ocupada pelos nazis e hoje se integra no território ucraniano.

A importância deste documento está no facto de “agora termos a certeza de que a Igreja Católica da Alemanha enviou a Pio XII notícias exactas e detalhadas sobre os crimes que se perpetravam contra os hebreus”. Na carta também há referência a outros campos nazis, como Auschwitz e Dachau.

Os defensores de Pio XII dizem que ele “trabalhou nos bastidores para ajudar os judeus, e só não falou para evitar piorar a situação dos católicos na Europa ocupada pelos nazis”. Os seus detractores, pelo contrário, culpam Pio XII “de lhe faltar coragem para falar sobre a informação que possuía”, fazendo orelhas moucas, também, aos pedidos de potências aliadas que lutavam contra a Alemanha, para que fizesse algo em favor dos perseguidos pelos nazis.

Esta desclassificação dos documentos ordenada pelo Papa Francisco I também demonstra outra verdade: a de que no Vaticano existe (agora) o desejo de uma avaliação cuidadosa de tais documentos, a partir da perspectiva científica, sejam quais forem as conclusões a que se chegue, quer elas se revelem favoráveis, ou desfavoráveis, para a História da Igreja.

(O autor escreve sem obedecer ao último Acordo Ortográfico)

9 de Fevereiro, 2024 Onofre Varela

A convicção da crença

Enaltecer a subjectividade é o que faz o partidarismo, seja ele político, religioso, ou de qualquer outra índole. Tomar partido por algo ou por alguém, é colocar-se ao lado de uma corrente de pensamento defensora de um determinado ponto de vista, o qual – quando não é aferido por uma ciência – é, sempre, subjectivo; portanto, apenas diverso do ponto de vista do outro.

As visões contrárias à natureza das coisas, nunca são avalizadas pelas disciplinas científicas que as estudam. Ninguém pode negar que dois mais dois são quatro… a Matemática garante-o sem lugar a dúvidas nem a subjectividades. No quadro científico ninguém pode afirmar que dois mais dois são cinco (embora os sofistas o possam fazer… mas é logro!).

A garantia de que Deus existe ou que não existe, tem por base a crença ou a descrença, e não passa de uma convicção. Se não houver uma disciplina científica que garanta estar a verdade de um dos lados, a subjectividade faz lei para qualquer afirmação, e cada um defende a sua com a mesma licitude.

A ideia de Deus permite várias interpretações e discussões, desde logo sobre a sua estranha natureza que não define nada de real, de concreto, nem de palpável (não passa da ideia que é).

Todos nós temos direito às nossas ideias e convicções, bem como à sua defesa. A defesa de uma convicção só pode ser rotulada de desonesta se o seu defensor tiver consciência da “inverdade” que apregoa; e só é vigarice se, conscientemente, ele quiser comprar a concordância do outro sabendo que lhe está a vender gato por lebre.

Quando o defensor de uma ideia está convicto daquilo que defende, porque acredita naquela forma tal como a descreve, não concebendo outra imagem para aquilo que é a sua convicção, presumindo estar com a verdade, o defensor dessa ideia é honesto nas suas afirmações e deve ser respeitado na “sua verdade”… embora possa estar errado!…

Para o não crente, aquilo que para si “é erro” tem a defesa do crente como sendo a maior verdade da sua vida! Assim é a convicção religiosa quando afirma a existência real de uma divindade lendária.

Cá por mim, duvido da honestidade intelectual da maioria dos sacerdotes… porque, sendo eles detentores de um intelecto imensamente superior ao do crente de base – o qual frequenta a igreja alimentando e consumindo missas – tem um discurso de fé que o fiel ouvinte das suas palavras não descodifica… mas crê que sim… que é assim mesmo como o sacerdote diz e ele não entende!…

Penso que, muito provavelmente, o intelecto do sacerdote lhe sussurrará ao ouvido, muito baixinho: “estás a ludibriar os fiéis!…” mas é com isso que ele enche a barriguinha e se rodeia de mordomias!…

Porém, nem todos os sacerdotes se deixam cegar pelas mordomias… estou a lembrar-me de um, o Padre Mário de Oliveira: o meu malogrado Amigo, conhecido por Padre Mário da Lixa.

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico) 

OV

7 de Fevereiro, 2024 Onofre Varela

“República laica” muito sui generis

A Igreja dominou Portugal durante toda a Monarquia desde a sua Fundação – com o primeiro rei em 1143 – até depois da implantação da República, quando, a 20 de Abril de 1911, entrou em vigor a Lei de Separação da Igreja do Estado, completando 768 anos de regime Católico (quase oito séculos).

Sete anos depois (1918) Sidónio Pais reviu a Lei da Separação dos poderes políticos e religiosos, restabelecendo relações diplomáticas com a Santa Sé, o que se conservou até à Constituição da República Portuguesa de 1976 (saída da Revolução de 25 de Abril de 1974) que reimplantou a Lei da Separação da Igreja do Estado, no seu Artigo 41 § 3 (Constituição da República, 1ª Edição, 1976) – mas mantendo as relações diplomáticas com a Santa Sé – acrescentando mais 58 anos ao domínio da Igreja em Portugal, totalizando 826 anos de “Reinado Católico Lusitano”.

Hoje vivemos num regime político republicano e laico, que nos foi oferecido há 47 anos pela Constituição da República. Não é muito tempo. Meio século foi ontem… ainda cheira a pintado de fresco… ao contrário, oito séculos foi há imenso tempo. Nas tradições religiosas é natural que o espírito de fé dos Portugueses se mantenha, hoje, como sempre foi… embora não tão fundamentalista como o teríamos durante toda a Idade Média e a Renascença… mas, com toda a certeza, muito mais consciente.

O que me parece curioso em toda esta História é a nomenclatura de estabelecimentos de saúde referir, no nosso tempo, tantos santos e tantas santinhas, neste país governado por uma República Laica!… Até parece que, em vez da “Previdência Social”, nós temos a saúde entregue à “Santa Providência”! Ora vejam lá esta lista dos nomes que temos no Parque Hospitalar do Serviço Nacional de Saúde:

Santa Maria (Barcelos e Lisboa); São Marcos (Braga); São José (Fafe e Lisboa); Nª Sª da Oliveira (Guimarães); São João de Deus (Famalicão); São Gonçalo (Amarante); Santo António (Porto, e o dos Capuchos, em Lisboa); Srª da Conceição (Valongo); São João (Porto); Santa Luzia (Viana do Castelo e Elvas); Nª Sª da Ajuda (Espinho); São Sebastião (Vila da Feira, ou Santa Maria da Feira, como agora se diz); Arcebispo João Crisóstomo (Cantanhede); Santo André (Leiria); São Teotónio (Viseu); Santa Marta (Lisboa); S. Francisco Xavier (Lisboa); Santa Cruz (Carnaxide); Nossa Senhora da Graça (Tomar); Nª Sª do Rosário (Barreiro); São Bernardo (Setúbal); São Paulo (Serpa); Espírito Santo (Évora); Santo Espírito de Angra do Heroísmo e Hospital do Divino Espírito Santo (Arquipélago dos Açores).

Nas escolas observa-se o mesmo fenómeno nos nomes escolhidos para os vários Estabelecimentos de Ensino. No Porto encontrei o “Externato das Escravas do Sagrado Coração de Jesus”… só o nome arrepia!… Qual é o pai que confia a sua filha a uma instituição com tal designação?!…

Somos uns “republicanos laicos” muito civilizados, sensíveis e condescendentes (sinais de inteligência superior), e também personificamos um raro exemplo de uma sã convivência… sublinhando a inteligência do parêntesis!…

Haverá quem diga que não?!…

(O autor escreve sem obedecer ao último Acordo Ortográfico)

OV

7 de Fevereiro, 2024 Eva Monteiro

Não Blafesmarás

Fiz dois anos de catequese nos anos 90, que culminaram na primeira comunhão. Desde já, não recomendo. Aliás, por princípio, considero uma violação dos direitos da criança, dado que não tem idade para escolher se quer ou não associar-se a uma fé, e está longe da idade da razão, em que poderia ter o discernimento para recusar ideias dogmáticas e medievais. Em todo o caso, mandaram-me para lá, e para lá fui.

Para quem não sabe, não me bastou nascer mulher, tive que nascer canhota. Outrora juntar-se-iam esses dois elementos a uma personalidade pouco obediente ao dogma e ter-se-ia uma bruxa prontinha a assar no espeto. Ironicamente, na minha juventude, dediquei-me ao neopaganismo e a todo o tipo de espiritualidade new age. Não, não adivinhei o número do Euromilhões. Devo também acrescentar que, durante o primeiro ano da escola primária, a criatura de deus que me deu aulas tentou forçar-me a escrever com a mão direita. Desengane-se quem acha que nos anos 90 já tínhamos ultrapassado este tipo de ideias.

É importante este contexto porque há um episódio que não me canso de contar porque ilustra exatamente o que a Igreja Católica e a religião no geral representam para mim. Lembro-me de pouco dos ensinamentos de Cristo, a não ser que a maioria me pareceram ou fantasiosos ou de simples senso comum. Estes últimos mais raros. Lembro-me de um livro fino com uma capa branca ilustrada com um Jesus muito eurocêntrico, rodeado de crianças. Lembro-me que gostava tanto da catequista que arranjava qualquer desculpa para não comparecer. E lembro-me em específico, de aprender a fazer o sinal da cruz. Há que ajoelhar ao entrar na Igreja, tocar com a mão direita na testa -“Em nome do pai” – tocar com a mão no peito – “do filho” – no ombro esquerdo – “e do espírito” – e no ombro direito – “santo” – juntando as mãos – “amém”. Razão para fazer isto à entrada da Igreja? Disseram-me que era porque estava a entrar na casa de deus. Eu aprendi para que as beatas não ficassem a olhar para mim.

Ora, como mencionei, sou canhota, verdadeiramente infernal na mão com que escrevo e conduzo todo o tipo de funções terrenas. E esta é uma característica que uma criança não controla – é a sua mão dominante. Assim sendo, eis que, às vésperas da primeira comunhão, uma pequena Eva se levanta a mando da catequista e faz orgulhosamente o sinal da cruz. Sentia que era um momento decisivo, estava perante outras crianças e perante uma autoridade, que me solicitava que mostrasse o que tinha aprendido. Devo dizer que teria sido um sinal da cruz irrepreensível, não tivesse sido feito com a mão esquerda. Aqui d’el rei que a criatura estava a chamar o diabo. O senhor padre que não visse uma coisa dessas, dizia ela. Deus castiga! E ela também, se bem que não me recordo do castigo recebido. Sei que eventualmente o excelso senhor padre foi lá passar vistoria e eu já sabia que se não fizesse o sinal da cruz com a mão direita, estava em grandes sarilhos, quiçá entregue aos demónios e à blasfémia, qual verdadeira Eva caída de uma macieira.

Fui pesquisar os Dez Mandamentos, porque apesar de os ter aprendido à força, fiz todos os possíveis por mantê-los fora da mente na minha vida adulta. Encontrei um resumo no site da Opus Dei, que os resume.

Eu sou o Senhor teu Deus:

  1. Amar a Deus sobre todas as coisas.
  2. Não invocar o santo nome de Deus em vão
  3. Santificar os Domingos e Festas de Guarda
  4. Honrar pai e mãe
  5. Não matar
  6. Não cometer adultério
  7. Não roubar
  8. Não levantar falsos testemunhos
  9. Guardar castidade nos pensamentos e nos desejos
  10. Não cobiçar as coisas alheias
Versão catequética dos 10 Mandamentos

Não acreditei muito nesta versão porque sabia que um dos mandamentos é não cobiçar a mulher do próximo. Desse lembrava-me porque é dos que mais se presta ao humor. Por isso, fui a uma das muitas versões da bíblia que os cristãos juram a pés juntos ser a original mensagem de deus, a mais correta e fiel e encontrei esta versão menos… catequética.

  1. Não terás outros deuses além de mim.
  2. Não farás para ti nenhum ídolo, nenhuma imagem de qualquer coisa no céu, na terra, ou nas águas debaixo da terra. Não te prostrarás diante deles nem lhes prestarás culto, porque eu, o Senhor, o teu Deus, sou Deus zelo­so, que castigo os filhos pelos pecados de seus pais até a terceira e quarta geração daqueles que me desprezam, mas trato com bondade até mil gerações aos que me amam e obedecem aos meus man­damentos.
  3. Não tomarás em vão o nome do Senhor, o teu Deus, pois o Senhor não deixará impune quem tomar o seu nome em vão.
  4. Lembra-te do dia de sábado, para santificá-lo. Trabalharás seis dias e neles farás todos os teus trabalhos, mas o sétimo dia é o sábado dedicado ao Senhor, o teu Deus. Nesse dia não farás trabalho algum, nem tu, nem teus filhos ou filhas, nem teus servos ou servas, nem teus animais, nem os estrangeiros que morarem em tuas cidades. Pois em seis dias o Senhor fez os céus e a terra, o mar e tudo o que neles existe, mas no sétimo dia descansou. Portanto, o Senhor abençoou o sétimo dia e o santificou.
  5. Honra teu pai e tua mãe, a fim de que tenhas vida longa na terra que o Senhor, o teu Deus, te dá.
  6. Não matarás.
  7. Não adulterarás.
  8. Não furtarás.
  9. Não darás falso testemunho contra o teu próximo.
  10. Não cobiçarás a casa do teu próximo. Não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem seus servos ou servas, nem seu boi ou jumento, nem coisa alguma que lhe pertença.
10 Mandamentos segundo a bibliaon.com

Cada um destes mandamentos merece um texto que lhe seja exclusivamente dedicado e hoje não será o dia. Mas queria focar-me no segundo mandamento. E prometo que, tendo dado todas as voltas às rotundas cristãs, tenho um ponto a fazer.

A Queda e Expulsão do Jardim do Éden,1509-10, MICHELANGELO Buonarroti
Capela Sistina, Vaticano

Hei-de dizer que, de todos os mandamentos da cristandade, não invocar o nome de deus em vão é o mais importante. Sim, sim, mesmo acima de não matar e não roubar e até acima de não ter outros deuses. Mais valia ter-lhe chamado “Não blafesmarás”. Suponho que não é muito fácil de pronunciar. É que vivemos hoje numa sociedade em que ser ateu não é problema, desde que não se fale nisso. Ser ateu não é problema, desde que se respeite as crenças supersticiosas dos outros. E que se quer dizer com respeitar? Não criticar.

Ora, eu considero que tenho sim, um dever de aceitar o direito das pessoas a terem crenças. Não as posso querer impedir de as terem ou de regerem as suas vidas de acordo com preceitos religiosos. Mas as crenças não são senão ideias. E como ideias, podem ser criticadas. Devem ser criticadas. Um cristão pode dizer-me que se não me converter vou sofrer a eternidade no inferno com o a tortura de satanás como companhia. Reparem na ameaça. Ou fazes isto, ou acontece-te aquilo. Mas eu, como ateia canhota caída da macieira, não posso dizer “as tuas crenças são um bocado parvas”.

Ao longo da minha longa caminhada de desconstrução e de libertação do pensamento mágico, fui entendendo que a blasfémia é um ato de catarse, de purga, até de exorcismo diria eu. Por quê dizer em voz alta, isto é falso, isto não existe? Por que é que os satanistas ritualizam a blasfémia? Porque a forma de remover o medo da criança que acredita que o bicho papão está escondido no armário é abrir a porta e dizer “anda cá que não tenho medo de ti”. E quando nada acontece, a criança entende que o bicho papão não existe.

Temos medo. Já abrimos o armário e o bicho papão não nos papou. Mas quando o colega de escola vem dormir lá a casa e se cobre até aos olhos com medo que venha por aí o homem do saco, nós não nos permitimos rir. Não dançamos libertos no meio do quarto, com os pés expostos ao que o outro imagina que está debaixo da cama. Não lhe dizemos que cresça. Não dizemos a verdade. Não lhe tiramos os braços de debaixo das cobertas para mostrar que ninguém está ali para lhe agarrar as mãos. Que acreditar no bicho papão é estúpido.

Ah Eva, sua canhota do demo, comedora de maçãs. Mas tu também recorres à metáfora para dizeres o que realmente queres dizer. Que atrevimento!

É que a lei protege a religião. E apesar de ter a liberdade de não acreditar, e até de criticar a religião, seja ela qual for, não me posso dirigir a uma pessoa a dizer-lhe que as suas crenças são absurdas e que o seu deus é uma besta cruel, criatura abominável que, se fosse real, eu me recusaria a reconhecer ou adorar, já a pessoa se pode ofender. Se eu for para a frente de uma Igreja durante a missinha de domingo com um cartaz a dizer “párem de endoutrinar crianças”, estou a perturbar o ato de culto. E ambos são puníveis por lei. Contudo, se a um domingo de manhã uma parelha de Testemunhas de Jeová decidir vir proletarizar para a minha porta, acordando-me do meu merecido e mui antecipado sono matinal, já os meus direitos não estão a ser violados. Se durante a páscoa não posso escapar ao odioso dling dlong da sineta que acompanha a entourage das amêndoas e do peditório, já os meus direitos não estão a ser violados. Se durante as festas religiosas instalam colunas de som por todo o lado e decidem que toda a gente há-de ouvir a missinha, seguida da pior música que por cá se faz, já os meus direitos não estão a ser violados.

Só peço igualdade. Se não posso ofender o religioso, o religioso não pode proletarizar. Não me pode forçar a ouvir a missa, os sinos das igrejas, as celebrações religiosas que são dele e só dele. Não me pode impingir os santinhos e as rezas. Não me pode vir cá dizer “vai com deus”, “deus te guarde”, “deus a tenha”. O religioso não devia, também, misturar crença com a res publica. O religioso que mantenha resguardadas as suas crenças e deixe de usar símbolos religiosos no exercício de funções públicas, que não recrute para a igreja, templo, clube superticioso. O religioso que páre de impingir a sua crenca arcaica a uma criança que não se pode defender.

Ah Eva, canhota invertidora de sinais da cruz, mas os paizinhos é que sabem como educar um filho!

Sim? Experimentem tirar uma criança da escola sem mais nem menos que vêem logo a CPCJ a bater à porta com mais força que uma parelha de Testemunhas de Jeová. Se podemos exigir aos pais que permitam aos filhos um certo nível de educação, que dura um mínimo de 12 anos, não devemos impedir que durante esses anos de formação uma criança seja endoutrinada? Se temos provas concretas que o mundo não foi criado por deus há 6 mil anos, não devemos ter a expectativa que a criança não seja enganada?

Acima de tudo, dá-se um respeito desproporcional à fé. Não blasfemarás. Tudo o resto? Desde que varrido para debaixo de um tapete, faz-se. Podes matar, desde que te arrependas e peças perdão ao senhor padre. Podes trair, desde que te arrependas e peças perdão ao senhor padre. Podes [inserir acto horrendo], desde que te arrependas e peças perdão ao senhor padre. Falar contra a fé, alertar para as armadilhas mentais, para a subjugação da mente, a endoutrinação pelo medo, o condicionamento à criatividade e sentido inquisitivo das crianças, isso é que não. Isso, meus amigos, não se diz, é perseguição. E coitadinhos daqueles que, pertencendo inegavelmente ao status quo, são perseguidos pelos mauzões ateus. Deles será o reino dos céus.

Bom proveito.

6 de Fevereiro, 2024 Eva Monteiro

Os milagres Segundo a Ciência

Luigi Garlaschelli (Itália)*

Fenómenos paranormais, mistérios e milagres

Os fenómenos paranormais violam as leis da natureza, mas como cientistas curiosos gostamos de investigar se os factos paranormais realmente existem e se existem provas convincentes dos mesmos. (A resposta, até agora, é “NÃO”).
Um famoso “mágico” e escapista americano, James Randi, ofereceu, durante cerca de 30 anos, um milhão de dólares para quem conseguisse repetir o paranormal sob controlo. Ninguém conseguiu conquistar essa verba.
Os fenómenos paranormais aparecem com menos frequência, quanto mais são  investigados. Eis aqui, como exemplo, alguns mistérios (nem todos paranormais) com os quais me ocupei:
– Aprendi os segredos dos faquires (e eu próprio me tornei faquir): posso deitar-me numa cama com “unhas eriçadas”, expelir fogo, comer vidro, parar os batimentos cardíacos, etc.
– Cacei luzes perdidas num cemitério.
– Tratei da espada cravada na pedra! (E até consegui sacá-la)
– Examinei vedores, pessoas que afirmam poder encontrar uma fonte de água subterrânea com um pau, mas não foram capazes de detetar água a correr num cano.
– Testei, por meio de uma experiência, se a homeopatia seria eficaz em galinhas (e não é).
– Inquiri sobre as estradas mágicas onde os veículos sobem na descida (mas isso é apenas uma ilusão de ótica).

Mas os milagres também são fenómenos paranormais, embora ocorram na esfera religiosa. Esclareço que nós, cientistas, não estamos interessados na vertente da crença, mas no exame dos fenómenos. Em Itália, temos muitos milagres e explorei alguns deles.

Caravaggio «pictor praestantissimus», 2014

Sangue milagroso


O mistério mais famoso que investiguei é o chamado milagre do sangue de São Januário (San Gennaro). Esse “milagre” acontece três vezes por ano, na catedral de Nápoles, quando o sangue numa ampola se liquefaz, misteriosamente. É normal que o sangue coagule, mas não é normal acontecer que ele se liquefaça de novo e depois volte a coagular, novamente e novamente. Reproduzimos (ou imitamos) esse milagre por um método químico. Criámos um gel, ou seja, uma gelatina, feita de cloreto férrico e carbonato de cálcio. Este gel “tixotrópico” pode ser facilmente liquefeito com batidas suaves e depois, em repouso, solidifica novamente. Durante a cerimónia típica de liquefacção do sangue, o acto pelo qual o abade verifica se a liquefacção ocorreu faz com que o relicário portátil seja virado várias vezes, proporcionando assim a agitação necessária.
Outro sangue milagroso é o de São Lourenço (San Lorenzo), na cidade de Amaseno (a sul de Roma), que se liquefaz todos os anos, no dia 10 de agosto. Tive oportunidade de o observar bem: trata-se de uma substância normalmente sólida, mas que derrete quando a temperatura passa dos 30 graus, como acontece no verão. Na minha reprodução usei óleo de coco e corante vermelho.
A composição química da relíquia napolitana só poderá ser identificada pela análise do conteudo da ampola, porém tal análise é proibida pela Igreja. No entanto, bastaria apenas testar se o conteúdo se liquefaz batendo ou aumentando a temperatura.

As curas de Lurdes


Falemos agora das curas milagrosas de Lurdes (Lourdes, em francês), que deveriam ser as mais fiáveis, pois foram examinadas por três comissões, duas médicas e uma eclesiástica. Desde 1848, foram reconhecidos 70 milagres oficiais. Mas devemos ter em conta os seguintes factos: 
– Nos primeiros 50 anos (1848 -1909) ocorreram 38 curas. Entre 1910 e 1959: 25. De 1960 a 2009: 4. Assim, o número de milagres diminuiu constantemente.
– Nos primeiros 50 anos não existiam radiografias nem análises laboratoriais reais, portanto os diagnósticos das doenças eram muito incertos.
– As percentagens de curas “inexplicáveis” em Lurdes são iguais às que ocorrem nos hospitais, mas estas são menos visíveis.
– As curas nunca são – como seria necessário para um milagre – imediatas, perfeitas e completamente sem tratamento.
– Muitas vezes os documentos não são suficientes e os exames médicos ou diagnósticos são questionáveis (mesmo recentemente, como no caso da italiana Delizia Cirolli).
– Na maioria dos casos, tratava-se de doenças funcionais e não orgânicas (auto-sugestão e placebo).
– Muitas vezes, se confia demais nas testemunhas.
– Geralmente leva muito tempo até que o milagre seja reconhecido.
– É muito difícil – ou mesmo impossível – para quem quer fazer investigação obter fichas clínicas completas.
– O ex-diretor da Comissão Médica de Lurdes, Patrick Theillier, afirmou: “Uma pessoa doente só pode recuperar de uma doença que seja suscetível de desaparecer. O milagre não violenta a Natureza. Nunca aconteceu que uma criança com síndrome de Down fosse curada em Lurdes. Concluindo, o que se designa de milagre pode, em termos médicos, ser chamado de desaparecimento espontâneo dos sintomas.”

O Sudário de Turim


O Sudário de Turim é um pano de linho mundialmente famoso, atualmente guardado na catedral de Turim, e que os católicos tradicionalmente consideram o pano no qual o cadáver de Jesus Cristo foi amortalhado. A autenticidade da relíquia é contestada. Segundo alguns, foi realmente a mortalha de Jesus. De acordo com outros, é uma falsificação medieval. A Igreja (teoricamente) mantém uma posição neutra a este respeito e deixa os cientistas livres para decidir.
O Sudário é um lençol de linho com dimensões de 1,41 x 1,13 metros. Traz, nos dois lados, uma imagem escura de um homem torturado. (Vestígios de queimaduras também marcavam a imagem). Há vários indícios de que o sudário não é autêntico:
– As verdadeiras mortalhas palestinianas do século I DC eram totalmente diferentes. Naquela época os cadáveres eram amarrados e usavam-se vários panos. Além disso, os panos eram feitos de materiais diversos e confecionados com uma forma de tecelagem diferente.
– Para fabricar o Sudário de Turim foi utilizado um tipo de tecido que não existia até à Idade Média.
– O Sudário só apareceu no ano de 1355, numa pequena capela em França. Imediatamente após esse aparecimento, foi exibido para atrair os peregrinos e apresentado como verdadeiro. Por causa disso, dois bispos proibiram a sua exposição. (Existem documentos e mesmo bulas do papa da época, relacionados com essa proibição). Assim, mesmo a Igreja durante vários séculos não o considerou autêntico.
– Em 1988, três dos laboratórios mais experientes do mundo dataram-no com carbono-14. Resultado: é do século XIV!
– Um corpo humano real não deixa traços como os do Sudário: o traço é deformado e não matizado, mas é limpo.

O Sudário foi estudado, em 1978, e as características da imagem humana foram especificadas. Assim:
– A imagem é clara, matizada e não distorcida
– A imagem não se deve ao pigmento (ou seja, a grânulos sólidos), mas sim às fibras amareladas devido à decomposição da celulose (térmica ou química). O amarelecimento existe apenas na parte superficial dos fios de linho. No entanto, foram encontrados microvestígios de ocre (= terra argilosa, geralmente pulverulenta, de amarelada a avermelhada, usada como pigmento para tintas)
– A imagem mostra “negatividade”: descoberta graças à primeira fotografia, em 1898, na altura da revelação das placas fotográficas, parecia uma imagem real, porque as partes proeminentes do rosto se tornam brilhantes e as menos proeminentes, escuras.
– A imagem não fluoresce.
– Os vestígios de sangue não são matizados como a imagem corporal, mas são nítidos.

Todas essas características são consideradas inexplicáveis e, como tal, não criáveis por um artista. “O sudário é um objeto “impossível”, portanto um milagre”. Será possível? Eis as minhas hipóteses para o testar:
– A imagem original deveria ser mais visível, no início. Um artista não criaria uma imagem muito fraca.
– O Sudário foi criado esticando um pano sobre um corpo e esfregando-o com ocre seco. – Para a face foi utilizado um baixo-relevo para evitar deformações.
– Marcas de sangue e chicote foram pintadas posteriormente.
– Com o passar dos anos, o pigmento degradou-se.
– As impurezas contidas no pigmento provocaram o amarelecimento superficial das fibras.
– Este processo deve produzir automaticamente um pseudonegativo, uma imagem superficial, rasa e fraca, sem distorção e sem pigmento.
– Explicam-se os microvestígios de ocre remanescente, a falta de deformação e as características das manchas de sangue.

Os meus testes práticos foram, portanto, os seguintes:
– Esfregar, sobre um corpo real, o ocre, contendo vestígios de ácido (para simular impurezas de pigmento).
– Usar um baixo-relevo para o rosto.
– Adicionar marcas de chicote e sangue com um pincel.
– Meter no forno, a 125 graus e durante 2 horas, para simular antiguidade, com a minha “Máquina de fazer Sudários”!
– Lavar o pano para retirar o pigmento.
– Adicionar queimados, vestígios de sangue, etc.

O resultado apresenta uma imagem matizada, vestígios de sangue não matizados, pseudo-negatividade, imagem superficial devido ao amarelecimento das partes superficiais dos fios, etc. Portanto, não é verdade que o Sudário tenha propriedades que não podem ser reproduzidas!

Mais maravilhas


Na religião católica há casos de hóstias que sangram, como o milagre de Bolsena (1263). No entanto, muitos casos semelhantes também ocorreram em pão, bolos, etc. geralmente no verão. Por exemplo:
– Sangramento de hóstias em Paris (verão de 1290); Bruxelas (junho de 1369 e julho de 1379); Wilsnack, Alemanha (agosto de 1383); Sternberg, Alemanha (julho de 1492); Berlim (verão de 1510);
– Sangue num bolo, Stennwitz, Alemanha (julho de 1693);
– Sangue no pão, Chalons, França (setembro de 1792);
– Sangue na polenta (comida de milho), Legnaro, Itália (agosto de 1819).
Somente em 1819 se entendeu que se tratava de um microrganismo (Serratia marcescens) que cresce em alimentos ricos em amido, se o clima for quente e húmido, e que produz um pigmento vermelho. Assim nasceu a microbiologia. O milagre é facilmente reproduzido se se colocar algumas gotas da cultura Serratia numa fatia de pão.

Estátuas a chorar (e a beber)


Como pode uma estátua chorar? Às vezes há explicações naturais: a humidade condensa, a cola para os olhos derrete, etc. Por exemplo, numa estátua do Padre Pio, a água condensou-se por dentro e pingou de uma fenda (do cotovelo!). Por vezes ocorre trapaça. Houve um caso na Sicília de uma estátua a transpirar óleo. A polícia escondeu uma câmara e foi observada uma mulherzinha com uma garrafinha a derramar óleo na testa da estátua. Nestes casos, bastaria fechar a estátua num recipiente hermético, com câmaras e boa iluminação, para ver se ela realmente continuava a chorar.
Um caso famoso foi o de Civitavecchia, perto de Roma (1995): uma estatueta de Nossa Senhora parecia chorar lágrimas de sangue. Testemunhas viram-na chorar novamente. Mas cada testemunha relatou coisas diferentes, e as fotografias mostraram que nenhuma gota de sangue apareceu na face da estátua, exceto as primeiras. Além disso, o sangue era masculino e os donos da estátua sempre se recusaram a analisar seu DNA. Deixo as conclusões consigo.
É possível fazer uma estátua chorar sem tocá-la (este é um truque de laboratório, que reproduzi em entrevistas na TV). Numa estátua de gesso, oca, o líquido é guardado em um pequeno reservatório e escorre dos olhos. Os buracos não podem ser vistos porque estão cobertos por uma pequena quantidade de gesso que, por ser poroso, permite que o líquido escorra lentamente após alguns minutos.
Em 1996, muitas estátuas, em templos hindus, aparentemente bebiam leite de uma colher que lhes era levada à boca. O ‘milagre’ durou alguns dias. Em breve se percebeu que o leite não entrava realmente na boca, mas na verdade escorria pelo corpo da estátua.

Ligações:

www.luigigarlaschelli.itwww.cicap.org

https://sindone.weebly.com

https://skepticalinquirer.org/

Luigi Garlaschelli é um químico (agora reformado) e membro de C.I.C.A.P.  (italiano: Comitato Italiano per il Controllo delle Affermazioni sulle Pseudoscienze – português: Comissão italiana para o Controlo  das Afirmações nas Pseudociência).

Texto da revista Ateismo, nº 37, cedido por Luís Ladeira, tradutor.

5 de Fevereiro, 2024 Onofre Varela

Ser-se como se é

Há sempre razões para cada um ser como é e não de outro modo. Nada acontece por acaso. O próprio acaso, por si só, é o resultado da soma de “vários acasos”. 

O “acaso” é como a tinta na paleta de um pintor quando consegue a cor verde misturando azul com amarelo. Mas o verde assim conseguido não é um acaso fortuito… é sempre o resultado lógico de reacções físicas, químicas e matemáticas. Se cada cor tivesse menos ou mais quantidade, já o verde conseguido (o “acaso” que daí resultava) seria outro!…

As razões de sermos como somos, encontram-se no tempo imediatamente anterior a nós e repousam no fundo da arca da nossa vida. Se remexermos nela encontramo-las. Depois delas vêm outras como, por exemplo: realidades geográficas, sociais e antropológicas do meio que nos envolve (ou envolveu), ensinamentos familiares, oportunidades de vida, percursos académicos e profissionais, interesses particulares e mera curiosidade, são algumas delas, que nos formatam e às quais não se consegue fugir… acrescentando-se a inevitável e primordial transmissão genética que faz parte do processo. 

Todos estes elementos são responsáveis pela construção e formatação intelectual de cada um. Ninguém nasce crente ou ateu, do mesmo modo que não se nasce a falar ou a saber ler. A linguagem aprende-se no seio familiar desde o berço… e os credos religiosos também, na consequência directa das características do cérebro que possuímos e nos impele à busca do conhecimento… o qual tem um número imenso de portas… cabe-nos a escolha das que vamos abrir!… 

No meu caso particular, sou filho de pai nascido em 1912, quando a República Portuguesa ensaiava os primeiros passos (a escolha do tema para esta prosa surgiu-me a 5 de Outubro, na passagem do 113º aniversário da vitória dos republicanos sobre a Monarquia). Talvez por isso cresceu republicano e anticlerical, que era a característica da Primeira República. Muito provavelmente o anticlericalismo também seria uma característica filosófica do seu pai, já que o nosso pai é, na maioria das vezes, a primeira fonte onde vamos beber o conhecimento e cujas atitudes copiamos. No caso, o meu avô era operário da indústria de panificação, um meio profissional onde cabia o descontentamento pela política praticada e pela ditadura religiosa acoplada à Monarquia, cuja filosofia ainda pairava no espírito Português no início da República. 

A minha mãe (de apelido Pereira; logo, Cristã-Nova), nascida em 1923, pertencia a uma família católica. Crente, não tinha o hábito de ir à missa. Só o fazia quando entendia e podia, e não tenho memória de alguma vez a ter visto a caminho da igreja se não houvesse funeral, casamento ou baptizado (excepção feita após enviuvar, quando passou a assistir a missas com alguma regularidade). Por esta amostra se vê que o culto religioso não era coisa normal lá em casa. Nem normal, nem anormal… simplesmente… não era!

Familiarmente ensinaram-me o respeito devido aos outros e à Natureza. Cumprimentar e sorrir, falar com educação, não derrubar árvores ou arbustos nem pisar flores dos canteiros e jardins, e não maltratar animais, foram os primeiros ensinamentos caseiros de que tenho memória, dos quais nunca fez parte a Religião na sua vertente seguidista de um credo… foi porta que nunca abri.

Agradeço aos meus pais o facto de não me terem lavado a cabeça com banhos de religiosidade deísta, permitindo-me ter pensamento próprio para raciocinar de acordo com a lógica natural do Ser Humano que sou, e de me orientarem no sentido cívico da postura cidadã e ética laica universal. 

Muito obrigado, meus queridos pais.

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

2 de Fevereiro, 2024 Onofre Varela

Falar “contra” ou falar “sobre”, ou, “Todos diferentes, todos iguais”

Ter pensamento próprio e não calar, é tarefa que pode causar dissabores a quem possui tal característica. Há quem não tenha sido “desenhado” para o exercício do pensamento crítico e por isso não reconheça o valor que tem falar livremente, liberto das amarras da ditadura da tradição.

As tradições, sendo respeitáveis, também podem (e devem) ser questionadas. No lote das tradições incluem-se as que são defendidas por associações religiosas e seitas aparentadas, na obediência a um credo comportamental. Há quem não conheça outra liberdade para além da “liberdade de obedecer”, que é sempre cómoda por se enquadrar nas explicações oficiais internas do grupo a que pertence… mas não mostra outros caminhos, afirmando que há “apenas um caminho”; aquele que o seu grupo indica!…

Recentemente (23 de Setembro) Miguel Esteves Cardoso, na sua crónica diária do jornal Público, com o título “Ainda ontem”, dissertou “Contra a obediência”, congratulando-se pelo facto de, no Reino Unido, a obediência dos jovens estar em queda livre desde há um quarto de século. Mencionou o lema dos movimentos hippy dos anos 60 e Punks dos anos 70 que, numa tradução livre e jocosa, referiu como “recusa-te a fazer aquilo que os mais velhos querem que tu faças”, na tentativa de ferir de morte o culto à obediência cega.

Obedecer cegamente é o que, desde sempre e até hoje, os ditadores esperam dos seus povos, quer a ditadura seja de pensamento político ou religioso. Os chefes da nossa tribo (de todas as tribos) anseiam por nos controlar o pensamento. A desobediência é a solução que, partindo das franjas sociais mais livres e progressistas (habitualmente as mais jovens) constrói a modernidade (ou fornece matéria para a sua construção) mostrando que o “nosso” pensamento não é o “deles”. Quem usa o saudável raciocínio próprio, recusando bitolas padronizadas pelas tradições e usadas nas “histórias oficiais”, corre sempre vários riscos. Um deles é colarem-lhe o rótulo (já tão velho de usado) que o acusa de “falar contra” determinada matéria, quando, na verdade, apenas “fala sobre” ela!

Se os meus textos “sobre a Religião” são interpretados como sendo “contra a Religião”… será uma leitura abusiva por ser pouco atenta, não coincidindo com a intenção que a produziu… embora possa coincidir com o espírito religioso do leitor que, preconceituosamente, me julga “contra” a sua fé, e não como um “crítico” da sua fé (a diferença é abissal!).

Neste esquema retórico, o termo “contra” é usado por quem defende determinado pensamento, tendo dificuldade em aceitar discurso diverso do seu. Há até quem, na superlatividade do seu radicalismo, reaja com violência perante ideias diferentes das suas. Tal é o caso dos extremistas islâmicos, muitos dos quais são, apenas, assassinos que nunca passam dessa triste e desumanizada figura.

Dizer algo diferente do discurso habitual dos crentes que repetem o que ouviram nos bancos das madrassas, das catequeses, das juventudes partidárias e de outras organizações aparentadas que lhes moldaram o pensamento… é “falar contra”!…

No desporto acontece o mesmo fenómeno indiciador da menor atenção sobre o outro, substituindo a frase “jogar com”, pela tão usada e podre de agressiva “jogar contra”! É uma atitude que demonstra, desde logo, falta de desportivismo, sobrando-lhe em demasia o pensamento tacanho do confronto, tantas vezes destruidor do saudável espírito desportista.

Na minha experiência de abordar o espírito religioso indagando sobre ele, tenho aprendido com a fé dos outros… e da boca de um amigo religioso já ouvi, sobre o meu discurso: “curioso!… Nunca tinha pensado no tema sob esse ponto de vista!…”. Isto pode querer dizer que o melhor das relações humanas é a aprendizagem mútua… e para isso é preciso ouvir o outro, entender o que ele diz e raciocinar sobre o que ouviu.

Estar com o outro (em vez de “contra ele”), mantendo conversa sobre assuntos em que, naturalmente, cada um tem entendimento diverso, é a aprendizagem da vida em sociedade saudável, onde é imprescindível a existência do respeito mútuo pela diferença que há na igualdade (Todos Diferentes, Todos Iguais).

Se assim não for… eclode a guerra que os melhores de nós repudiam e querem evitar… sendo certo que nas cadeiras do poder das sociedades que nos governam, muito raramente estão sentados os melhores de nós!…

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

31 de Janeiro, 2024 João Monteiro

Pedir perdão

Em 2016 o presidente dos EUA, Barack Obama, visitou Hiroshima. Foi a primeira visita de um presidente norte-americano ao Japão depois da Segunda Grande Guerra (durante a qual, em 6 de Agosto de 1945, os EUA lançaram uma bomba atómica sobre Hiroshima destruindo a cidade e matando, instantâneamente, mais de 70.000 pessoas. Destruição atómica que se repetiu dias depois, em Nagasaki, causando mais de 60.000 mortos).

Estranhou-se que Obama não pedisse desculpa pelo facto de os EUA terem enlutado o Japão. Perguntado pelos jornalistas se pedia perdão ao Japão, Barack Obama respondeu que o objectivo daquela sua visita era “honrar todos os que morreram na Segunda Grande Guerra Mundial”.

Era aqui que eu queria chegar para dizer que pedir perdão por actos cometidos no percurso da História, se pode parecer um acto de contrição com alguma positividade pelo arrependimento demonstrado, já não me parece ter cabimento quando não passa de “uma acção puramente teatral”… e, no caso, também sem ressarcir o Japão pelos actos cometidos há mais de 70 anos… o que seria mais do que “teatro”… seria “fita”!

Também seria um pedido hipócrita, já que os actos bélicos dos EUA continuaram a ser praticados provocando sofrimento nas populações, como a História regista!

Os pedidos de perdão não eliminam os males provocados. O que é preciso é que aprendamos com a História e tenhamos inteligência e sensibilidade suficientes para não repetirmos tantos erros através do percurso que fazemos pelo mundo, escrevendo uma História da Humanidade nada dignificante.

Também a Igreja Católica, no seu Jubileu do ano 2000, pela voz do Papa João Paulo II, dirigiu dezenas de pedidos de perdão (a Deus!… Não à memória dos ofendidos!) dos quais destacarei uns poucos, respigados da imprensa da época: “pelos males provocados pela Igreja aos Judeus por parte do Papa Pio XII; pelo anti-semitismo no tempo de Mussolini; por todos os crimes cometidos pela Inquisição; por todas as vítimas abandonadas pela Igreja; pelos actos praticados pelo Vaticano contra os cientistas; por queimar vivos Giordano Bruno e João Hus; pelas divisões no seio das várias sensibilidades cristãs; pelas repressões aos Protestantes e Ortodoxos; pelos pecados cometidos contra o amor, a paz e os direitos dos povos, e pelos pecados cometidos com as mulheres, os pobres e os marginalizados; e, até, pela inoperância da Igreja perante o Ateísmo” (!). 

A Igreja Espanhola pediu perdão pela atitude nada evangélica demonstrada perante os elementos da ETA, e a Igreja da Argentina pediu perdão pelos pecados por ela cometidos durante a ditadura do general Videla. (Curiosamente a Igreja Católica Portuguesa não pediu perdão algum!… Nem, sequer, pelo mal que fez ao poeta Bocage).

Desde o início de 2000 até Junho de 2001, contabilizei 94 pedidos de perdão. E numa cerimónia litúrgica celebrada no Vaticano, o Papa pediu perdão pela soma de todos os pecados.

Pedidos de perdão que me parecem patéticos!

A Igreja, que se considera modelo moral, não devia tê-los cometido… mas cometeu-os! São factos históricos que o perdão panfletário não elimina. 

O importante é termos consciência do mal cometido e emendarmos procedimentos para que não tornemos a cometê-los.

Se assim se fizer, jamais haverá necessidade de se pedir perdão, vivendo-se em paz e de consciência tranquila.

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

30 de Janeiro, 2024 João Monteiro

O DEUS ANÓNIMO

De Jesus a Shakespeare

O seguinte texto é da autoria de Daniel Ramalho

Mesmo sem saber quem está neste momento a ler estas linhas, arrisco afirmar que é nelas que lerá pela primeira vez o nome de Constantin François de Chassebœuf, conde de Volney. Digo-o com quase absoluta certeza porque o seu anonimato chega ao ponto de o dia do seu aniversário, 3 de Fevereiro, ser conhecido como “Nobody’s Day” – o dia em que por algum inexplicável desígnio do destino alegadamente nenhuma personagem histórica de relevo nasceu.

Que é uma injustiça relegar de Volney à vala comum da História é facilmente justificável. Os seus contributos como arabista, filósofo e político (nomeadamente pelo seu envolvimento na Revolução Francesa) são demasiados em número e interesse para que procure aqui resumi-los. Direi apenas que não será tempo perdido pesquisá-los. Contudo, refiro-o aqui em particular à sua magistral obra As Ruínas, ou Meditações sobre as Revoluções dos Impérios (1817), por ter sido a primeira a popularizar muitos dos argumentos mais comuns no arsenal argumentativo daqueles que defendem a teoria do “Mito de Cristo.”  Apesar de então ter inaugurado a dúvida sobre a existência do Jesus histórico, de Volney foi sem dúvida o mais importante dos seus divulgadores entre a intelligentsia iluminista, em particular após o referido livro ter sido traduzido para Inglês por Thomas Jefferson, seu amigo próximo. Poucos sabem que de Volney existiu, mas o problema histórico e teológico que nos deixou em legado é hoje, em grande medida graças a si, lugar-comum.

A teoria do mito de Cristo foi amplamente discutida nos últimos dois séculos e não é minha intenção abordá-la aqui, mesmo porque a posição de que o Jesus histórico existiu é quase consensual entre historiadores. Mais do que a questão em si, interessa-me como é possível que tenha surgido – ou por outras palavras, como pode ser que não saibamos com absoluta certeza se a personagem mais importante da História é ou não fictícia. A forma mais simples de um cristão responder a estas objecções consiste em apontar para o facto de se tratar de alguém que viveu há 2000 anos, numa sociedade predominantemente analfabeta e antes de haver imprensa, e que este abismo cronológico faz com que seja fácil para os cépticos questionar se estas figuras tão distantes no tempo chegaram a nascer (como acontece, por exemplo, com o ainda mais remoto Sócrates).

Será então que a distância temporal justifica duvidar da existência de Jesus, e que se estivéssemos apenas mais perto do tempo e espaço em que ele viveu teríamos dados suficientes (orais e escritos) para saber sem sombra de dúvidas que ele de facto existiu e que fez milagres? Será por miopia histórica que não vemos o que é evidente para todo o cristão?

Não, e sabemos que assim é pelo exemplo de uma outra figura central da história ocidental historicamente muito mais próxima de nós. Refiro-me ao caso de William Shakespeare.

O culto de Shakespeare atingiu ao longo dos séculos proporções tão desmesuradas que George Bernard Shaw sentiu necessidade de criar uma designação para quem padece dessa condição clínica: “bardólatra” – da qual me confesso paciente crónico. Quase dois milénios passaram até que alguém pusesse em causa a existência do Jesus histórico. Com Shakespeare, apesar de ter vivido na Inglaterra isabelina que era obcecada com registos de toda a espécie, foi preciso apenas um século. O espraiar da bardolatria pela Europa foi acompanhado por uma crescente desconfiança sobre quem seria realmente o mítico “Bardo.” Ninguém questiona que alguém chamado Shakespeare existiu entre 1654 e 1616.  Poucas certezas há sobre o homem – alguns até questionam que tenha sido um homem –, mas entre elas estão a de que era actor, filho de um luveiro (provavelmente analfabeto), que não deixou indicação de ter viajado para lá de Londres, que saiu da escola aos 15 anos, e que nunca frequentou uma universidade. Destas certezas uma outra foi extraída por vários ao longo da História: a de que este retrato simplesmente não pode ser o do autor do corpo literário 100.000 palavras mais longo que a Bíblia do King James, e que Harold Bloom designou de “bíblia secular.” Além disso, de todas essas incontáveis palavras que escreveu – muitas das quais cunhadas por si, entre as quais a palavra “incontável” – apenas seis nos chegaram escritas à mão: todas elas assinaturas, de autenticidade duvidosa, e todas escritas de forma diferente (nenhuma delas “Shakespeare” como escrevemos hoje).

Os que não acreditam que o Shakespeare de Stratford-upon-Avon foi o autor da obra que lhe é atribuída consideram que está provado de forma decisiva que o autor foi outro, muito provavelmente Edward de Vre, Conde de Oxford – de onde deriva a designação de “Oxfordianos” atribuída a quem defende esta hipótese. Foram várias as celebridades ao longo do tempo que se incluíram no número dos Oxfordianos, como Sigmund Freud, Henry James, Walt Whitman, William James, Ralph Waldo Emerson, Mark Twain, Orson Wells, Charlie Chaplin, e muitos outros. Diana Price, uma das mais famosas Oxfordianas da actualidade, afirma que “se escrever peças fosse crime, não haveria provas suficientes para condenar Shakespeare em tribunal.” Alexander Waugh, outro anti-Stratfordiano contemporâneo, está convicto de que uma enorme conspiração foi engendrada para proteger a identidade de Edward de Vere, verdadeiro autor da obra “Shakespereana,” com pistas espalhadas aqui e ali que uma vez identificadas provam sem margem para dúvidas que o Shakespeare histórico não foi mais do que um actor e astuto homem de negócios que provavelmente nunca escreveu uma linha na vida por nunca ter aprendido sequer a escrever. Há aqui um interessante paralelismo com o conde de Volney, que propôs a hipótese de ter havido uma obscura figura histórica correspondente a Jesus transubstanciada em Cristo pela religião até pouco ou nada restar da pessoa que realmente existiu.

Mas o paralelo vai mais longe do que isso. Tal como especialistas em crítica textual procuram extrair dados sobre o Jesus histórico dos Evangelhos, também os bardólatras fazem o mesmo com a obra de Shakespeare. A cena do festival da tosquia na peça As You Like It leva os Stratfordianos a crer que o Shakespeare de origens humildes e poucos estudos foi de facto o autor, pois um aristocrata nunca saberia tanto sobre um festival de camponeses. Um outro bardólatra foi a todos os locais de Itália referidos por Shakespeare nas suas peças e concluiu que as descrições feitas dos mesmos só poderiam ter sido escritas por quem tenha lá estado, o que reforça a posição Oxfordiana porque Shakespeare, que se saiba, nunca saiu das fronteiras britânicas.

E há ainda dilemas textuais, como acontece com a Bíblia. Por exemplo, no final da peça King Lear encontram-se em diálogo Edgar e Albany, dois candidatos à coroa, nenhum dos quais a quer. Tradicionalmente, no teatro isabelino e jacobino, as palavras que concluem a peça são proferidas por quem fica no poder. Nos últimos versos do King Lear, um destes dois acaba por ter de aceitar ser rei, mas numa edição (1623) quem o faz é Edgar, e noutra (1632) é Albany. Ora, Albany é o legítimo sucessor, pelo que a mensagem de Shakespeare é diferente consoante quem ascende ao poder no final. E apesar dos rios de tinta que correram sobre a questão, a verdade é que não se sabe. Stephen Greenblatt, um famoso estudioso de Shakespeare da actualidade, diz sobre esta questão que provavelmente nem Shakespeare sabia qual das personagens devia ascender ao trono no final, e que a indeterminação em que nos vemos hoje a esse respeito é tão nossa quanto foi dele.

Ou seja, tanto no caso de Jesus quanto no de Shakespeare, temos uma personalidade histórica que sabemos ter existido mas que é identificada pela tradição com uma personagem rodeada de uma aura de divindade de tal modo ofuscante que não conseguimos perceber se são ou não a mesma pessoa. E este é o ponto para o qual pretendo chamar a atenção. Estando nós na posse quando um milhão de palavras na “voz” de um autor, atribuídas a uma personalidade que sabemos sem sombra de dúvida ter existido, separada de nós por uns meros 400 anos, ainda assim não nos livramos de uma “dúvida razoável” relativamente à sua identidade igual à da do Jesus Cristo dos Evangelhos. Em ambos os casos a dúvida é suscitada pelo carácter “sobrenatural” dos textos que nos chegaram dessas figuras, com a diferença de que no caso de Shakespeare o texto na origem da discussão não lhe atribui milagres mas é em si o milagre que lhe é atribuído.

A hipótese Oxfordiana mais popular aponta, como referido, para uma conspiração que alegadamente visou escudar a real identidade do autor dos textos “Shakespereanos.” Autores como Bart Ehrman defendem algo semelhante em relação a Jesus, i.e. que foi um profeta apocalíptico falhado, cuja mensagem os discípulos desiludidos alteraram para justificar o facto inesperado e traumático de verem crucificado aquele que esperavam vir a ser seu rei terreno, tornando o seu reino sobrenatural. É verdade que houve uma “conspiração” nos casos de Shakespeare e de Jesus? Não sabemos. Apenas sabemos que qualquer medida de tempo tem solo fértil que chegue para a teoria da conspiração germinar.

Então, se a dúvida relativa à identidade de uma figura considerada sobre-humana pode surgir com a mesma pertinência em relação a alguém nascido há 2000 anos e há 400 anos, poderia surgir relativamente a alguém que morreu ontem? Estamos convictos de que os registos audiovisuais que conseguimos captar hoje protegem a identidade histórica dos nossos génios, mas se Shakespeare tivesse morrido ontem, após receber o Nobel da Literatura e três ou quatro Óscares, e com infindáveis entrevistas gravadas ao vivo em programas televisivos e podcasts, seria impensável que a questão da autoria das suas peças se tornasse tópico de debate no ano 2424? Seria impossível que uma franja de intelectuais desconfiados atribuísse a sua fama literária à inteligência artificial, ou a uma conspiração de autores, ou a outra coisa qualquer, de forma plausível?

Caso a resposta seja “não,” o mesmo pensamento é aplicável com igual propriedade a Jesus. Estaríamos em melhor posição para julgar a veracidade dos eventos relatados nos Evangelhos se Jesus tivesse morrido há 400 anos? Ou em Inglaterra no século XVII? Ou ontem? Talvez. Afinal, temos câmaras e microfones. Mas poderia essa certeza manter-se incólume historicamente? O caso de Shakespeare indica que não. Mais século menos século, a dúvida razoável surgirá nas franjas académicas e a posição céptica deixaria de ser absurda. O tempo acumula-se nas figuras que endeusamos como um sarcófago, até que finalmente dos lábios dourados alguém ouve as famosas palavras de Iago: “I am not what I am.”

Se de facto assim for, se o milagre for sempre mais absurdo do que a conspiração independentemente do registo histórico, se a existência do Cristo bíblico não fosse mais certa hoje tivesse ele sido contemporâneo de William Shakespeare, é tarefa de todo o céptico responder à questão a que assim fica exposto perante o Cristianismo: “Ateu, que Evangelho, ainda que em formato audiovisual, te converteria?”