Loading

Ser-se como se é

Há sempre razões para cada um ser como é e não de outro modo. Nada acontece por acaso. O próprio acaso, por si só, é o resultado da soma de “vários acasos”. 

O “acaso” é como a tinta na paleta de um pintor quando consegue a cor verde misturando azul com amarelo. Mas o verde assim conseguido não é um acaso fortuito… é sempre o resultado lógico de reacções físicas, químicas e matemáticas. Se cada cor tivesse menos ou mais quantidade, já o verde conseguido (o “acaso” que daí resultava) seria outro!…

As razões de sermos como somos, encontram-se no tempo imediatamente anterior a nós e repousam no fundo da arca da nossa vida. Se remexermos nela encontramo-las. Depois delas vêm outras como, por exemplo: realidades geográficas, sociais e antropológicas do meio que nos envolve (ou envolveu), ensinamentos familiares, oportunidades de vida, percursos académicos e profissionais, interesses particulares e mera curiosidade, são algumas delas, que nos formatam e às quais não se consegue fugir… acrescentando-se a inevitável e primordial transmissão genética que faz parte do processo. 

Todos estes elementos são responsáveis pela construção e formatação intelectual de cada um. Ninguém nasce crente ou ateu, do mesmo modo que não se nasce a falar ou a saber ler. A linguagem aprende-se no seio familiar desde o berço… e os credos religiosos também, na consequência directa das características do cérebro que possuímos e nos impele à busca do conhecimento… o qual tem um número imenso de portas… cabe-nos a escolha das que vamos abrir!… 

No meu caso particular, sou filho de pai nascido em 1912, quando a República Portuguesa ensaiava os primeiros passos (a escolha do tema para esta prosa surgiu-me a 5 de Outubro, na passagem do 113º aniversário da vitória dos republicanos sobre a Monarquia). Talvez por isso cresceu republicano e anticlerical, que era a característica da Primeira República. Muito provavelmente o anticlericalismo também seria uma característica filosófica do seu pai, já que o nosso pai é, na maioria das vezes, a primeira fonte onde vamos beber o conhecimento e cujas atitudes copiamos. No caso, o meu avô era operário da indústria de panificação, um meio profissional onde cabia o descontentamento pela política praticada e pela ditadura religiosa acoplada à Monarquia, cuja filosofia ainda pairava no espírito Português no início da República. 

A minha mãe (de apelido Pereira; logo, Cristã-Nova), nascida em 1923, pertencia a uma família católica. Crente, não tinha o hábito de ir à missa. Só o fazia quando entendia e podia, e não tenho memória de alguma vez a ter visto a caminho da igreja se não houvesse funeral, casamento ou baptizado (excepção feita após enviuvar, quando passou a assistir a missas com alguma regularidade). Por esta amostra se vê que o culto religioso não era coisa normal lá em casa. Nem normal, nem anormal… simplesmente… não era!

Familiarmente ensinaram-me o respeito devido aos outros e à Natureza. Cumprimentar e sorrir, falar com educação, não derrubar árvores ou arbustos nem pisar flores dos canteiros e jardins, e não maltratar animais, foram os primeiros ensinamentos caseiros de que tenho memória, dos quais nunca fez parte a Religião na sua vertente seguidista de um credo… foi porta que nunca abri.

Agradeço aos meus pais o facto de não me terem lavado a cabeça com banhos de religiosidade deísta, permitindo-me ter pensamento próprio para raciocinar de acordo com a lógica natural do Ser Humano que sou, e de me orientarem no sentido cívico da postura cidadã e ética laica universal. 

Muito obrigado, meus queridos pais.

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV