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16 de Outubro, 2014 Carlos Esperança

Religiões e democracia

Todas as religiões se consideram as únicas verdadeiras, tal como o seu deus. Cada uma considera falsas todas as outras e o deus de cada uma delas e, provavelmente, todas têm razão. Os ateus só consideram falsa mais uma religião e um deus mais. Em certa medida todos somos ateus.

E somo-lo, não apenas na aceção grega, em que um ateu era o que acreditava nos deuses de uma cidade diferente, mas também na aceção atual, na descrença num ente superior imaginário, e, ainda, em relação a Zeus, a Shiva, ao Boi Ápis e à multidão que aguarda, nas páginas da mitologia, os deuses atuais.

No soneto «Divina Comédia», de Antero de Quental, os homens perguntam, com voz triste, «deuses, porque é que nos criastes»? E os deuses respondem, com voz ainda mais triste, «homens, porque é que nos criastes»?

A crença, em si, não é apenas legítima, é um direito que cabe ao Estado laico assegurar. O que assusta é o proselitismo dos que não lhes basta a sua crença e a procuram impor a outros, a violência que usam para agradar ao deus que lhes ensinaram desde a infância ou àquele que os seduziu numa qualquer fase da vida.

Infiéis são os fiéis da concorrência e os descrentes de qualquer fé, e que devem gozar de igual proteção, quer pertençam a uma seita ou religião poderosa. A seita é a religião de minorias e a religião é a seita globalizante. Todas têm direitos e deveres e não se aceita que sejam exoneradas do respeito pela Declaração Universal dos Direitos Humanos.

O pluralismo é uma exigência democrática a que nenhum deus devia poder esquivar-se. Há para com os crimes praticados em nome das religiões uma condescendência que não existe para outras associações ou ideologias profanas. Porquê?

O nazismo é reprimido mas o totalitarismo religioso é tolerado. A democracia não deve consentir quem a combata, não pode conformar-se com os vírus que a ameaçam. Não se compreende que uma religião que não aceita as outras nos países onde é dominante e escraviza os que aí vivem, possa gozar de igualdade de direitos nos países que ameaça.

Com que legitimidade se permitem mesquitas aos crentes de uma religião que não aceita igrejas, pagodes, sinagogas ou templos às outras religiões? A Europa, onde se recrutam soldados de um deus cruel e vingativo, continuará a aceitar a divulgação de manuais que apelam à guerra santa e a deixar circular os pregadores que destilam ódio nos sermões e aliciam terroristas para a guerra santa?

O pluralismo, conquistado com a sangrenta Guerra dos Trinta Anos, em Vestefália, não pode ser posto em causa por ideologias que pretendem a exclusividade do mercado da fé e a eliminação da concorrência. Basta de cobardia para com as crenças. Urge resguardar os crentes dos fenómenos racistas detonados pelo medo à sua fé. E o medo existe.

A democracia é incompatível com o totalitarismo pio e belicista que assola o mundo.

15 de Outubro, 2014 Carlos Esperança

Bispos portugueses em sintonia com a entidade patronal

Conferência Episcopal Portuguesa admite, contudo, que assunto não é consensual

O porta-voz da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) afirmou, esta terça-feira, em Fátima, que os bispos portugueses estão em sintonia com a linha «inclusiva e de acolhimento» em relação aos homossexuais e recasados, mas admitiu que o assunto não é consensual.

No final do Conselho Permanente da CEP, ao comentar o documento que o sínodo dos bispos sobre a família está a preparar para entregar ao papa Francisco, o padre Manuel Barbosa disse que os bispos portugueses estão numa «linha inclusiva» e de «acolhimento».

«Não pode ser numa linha de rejeição, pura e simples. Não se pode rejeitar ninguém, tem que ser acolhida, na variedade da sua forma de ser ou de estar», declarou o sacerdote, acrescentando: «Não é só pelo papa Francisco – e bem – nos ter apelado a isso, mas tem que ser [uma atitude] de inclusão e de acolhimento, de perceber as situações e de ver que caminho também de ajuda podemos ter perante essas situações».

Manuel Barbosa declarou que «a Igreja em Portugal, naturalmente, sintoniza com esta posição».

14 de Outubro, 2014 Carlos Esperança

DA (IN)COGNOSCIBILIDADE DE DEUS

Por

João Pedro Moura

1- Os crédulos religionários, para além de sustentarem a existência de deus, sem aportarem a mínima prova, quando confrontados com epidemias devastadoras, desastres de viação e aviação, catástrofes climáticas e outros males fautores de sofrimento e morte, sem que o seu deus evite a desdita humana daí decorrente, alegam que o seu deus é incognoscível ou que “os mistérios divinos são insondáveis”…

É uma boa desculpa para justificar a inércia divina, sendo que, quando se trata duma cura inexplicável ou duma salvação qualquer, já são capazes de alegar que é uma benevolência divinal e taumatúrgica, denotando que o seu deus já é bondoso e, portanto… cognoscível…

Para explicar o bem causado aos humanos, deus é cognoscível, mas para explicar o mal, é incognoscível…

Esta dualidade, caprichosa e arbitrária, de critérios só denota a hipocrisia dos religionários e a inanidade de perspetiva em relação ao deus dos mesmos…

E para que serve termos um deus que tanto é capaz de causar males como bens???!!!

Alguém que é capaz de causar efeitos dualmente opostos, só pode ser uma entidade perversa e monstruosa, em extremo, um desequilibrado, que nunca poderia existir, porque a sua existência nem sequer faria sentido…

Todavia, examinemos mais de perto a alegação crédula da incognoscibilidade divina:

PRIMEIRA OBJEÇÃO: se é incognoscível, também não se lhe poderá atribuir propriedades nenhumas, como as que decorrem do conceito divino: omnipotência, omnipresença, omnisciência, criador, governador e justiceiro. Pois que tais propriedades denotam um conhecimento total da entidade, uma abrangência total da sua manifestação e atuação.

SEGUNDA OBJEÇÃO: se deus, por ação ou inação, é o causador de tudo, pois tudo é determinado por ele e nada é imprevisível para a sua perfeição, então, para que interessa cultuá-lo ou, sequer, admitir a sua existência???!!!…

Para que serve “deus”???!!!…

Se essa entidade, no entender dos crédulos, tanto dá castigos como benesses, tanto cria como destrói, em suma, tanto beneficia como prejudica, para que serve prestar-lhe culto e impetrar o seu auxílio, se o dito deus já tem tudo programado há biliões de séculos… senão, não era deus???!!!…

2- Eu acho uma piada… ver os néscios e crédulos a rezar ou a impetrar uma benesse divinal!…

É como se dissessem assim:

– Olha, meu deus, dá-me saúde… tira-me esta doença do corpo, que tanto me atormenta…

            Ou…

            – Ai, meu deus, faz com que ele regresse a salvo e nada lhe aconteça…

            Ou…

            – Deus meu, se me salvares desta desgraça, vou a Fátima a pé e…

Ora, temos então um deus, cuja perfeição, por definição, controla tudo e todos, um deus, portanto, que tem tudo programado e que sabe tudo o que vai acontecer no futuro…

Então, fará algum sentido pedir coisas a deus, quando ele já tem tudo programado e sabe o que vai acontecer???!!!…

            É como se alguém impetrasse saúde, salvamento, evitamento, e deus depois pensasse, na sua mente incognoscível:

-“Ah, está bem, pronto, já que tanto me pedes… eu concedo-te a minha bênção… eu nem tinha reparado nisso nem era minha intenção, mas já que me pedes com tanta insistência e devoção, eu dou-te…

            …Mas àquele não lhe dou nada, porque ele não me pediu nem acredita em mim…

            É que eu sou deus, mas preciso de atenções e gente servil, para encher o meu ego e envaidecer-me com tanta gente sob meu controlo, pedindo-me o que eu lhes mando pedir-me!…”

Uma coisa destas poderia existir???!!!

Mas é assim que o povo, néscio e crédulo, encara o seu deus e demais figurões, masculinos e femininos, do jardim da celeste corte: alguém caprichoso e imprevisível (incognoscível…) que só se sacia com impetrações e sacrifícios e a quem se pedem coisas, para tentar que deus modifique o curso negativo de certas circunstâncias… que ele programou há muito tempo… senão não era deus…

Um deus assim pode existir???!!!…

3- Insistem os crédulos, na sua necedade larvar:

– Mas tem que haver uma causa primordial… tudo tem uma causa, nada aparece sem causa… olhem para as estrelas, planetas e cometas, para aquele equilíbrio todo… acham que iria haver um relojoeiro cego?!

“Equilíbrios” e “desequilíbrios”, em escalas de muitos milhões de anos, enfim, depende da perspetiva e do que se entende por “equilíbrio” ou “mecanismo de relógio”.

A matéria universal voga no espaço sideral, e aparecimentos e desaparecimentos de astros, à escala cósmica, é coisa corrente…

TERCEIRA OBJEÇÃO: se os crédulos acham que tudo teve e tem uma causa e que nada podia aparecer por si próprio, então, quem criou deus???!!!

Lá virá a parvalheira habitual da (in)cognoscibilidade, para tentar justificar o injustificável…

Para justificarem a matéria, tudo tem de ter uma causa…

Para justificarem o seu deus, ah, aí não, aí ele criou-se a si próprio… a partir do nada…

QUARTA OBJEÇÃO: continua a insistir a religiofauna terrestre:

– “Mas como é que podia aparecer a primeira forma de vida?! Das pedras, das águas, do ar?! E toda a evolução?! E a nossa inteligência?! Só uma entidade inteligente e omnipoderosa é que podia criar a matéria, a vida e manter uma evolução!”

Isto é: para os sandeus crendeiros, é incrível que a vida possa ter surgido, mesmo em remota improbabilidade, do caldo de cultura primitivo e da complexidade inimaginável das condições primevas, até à situação atual, em centenas de milhões de anos de evolução.

E é isso que é o mundo, pois é isso que temos e que se nos depara. E os cientistas conseguem explicar, em retrospetiva, algumas datas de aparecimentos e evoluções até ao Big Bang primordial, fazendo-o com investigações e conclusões credíveis.

Tudo isto é incrível para os sandeus… com deus.

Mas aparecer, numa fração de segundo, um deus omnipoderoso, criador, governador e justiceiro, ah, coisa admirável, isso já é crível…

…E muitíssimo mais crível do que uma evolução de centenas de milhões de anos, em que apareceram formas minúsculas de vida, há 3,5 biliões de anos, evoluindo em mais centenas de milhões de anos, para sucessivas e díspares espécies…

Aparecer, do nada, um colosso absolutamente poderoso, isso sim, é crível…

…E além do mais dá um certo conforto às pessoas, ao medo, à incapacidade de pensar, refletir, explicar…

Assim, temos um deus, que criou tudo… e já está resolvido o magno problema da causa das coisas…

Haja fé, porque o resto… não há!…

 

13 de Outubro, 2014 Carlos Esperança

Era assim na ditadura clerical-fascista

Reportagem sobre católicos portugueses e Igreja no Estado Novo vence Prémio

Igreja Estado_NovoDa autoria de Joaquim Franco, Jornalista da SIC e investigador em Ciência das Religiões na ULHT, a reportagem Esplendores, que retrata a relação entre Igreja, Estado e sociedade, venceu o 17º Prémio Orlando Gonçalves.

A reportagem (que pode ser vista aqui) faz uma ponte de 60 anos: em 1953, o poder político, local e nacional, convivia confortavelmente com o poder eclesiástico, numa cumplicidade quase inquestionável. Vários grupos de católicos e os movimentos de Acção Católica politizavam-se e desenhavam já um compromisso social nem sempre em sintonia com uma hierarquia maioritariamente comprometida com a situação.

Era uma sociedade estratificada e conservadora. A economia do país começava a recuperar, mas havia perseguição e censura. Acentuava-se a emigração e o êxodo para o litoral.

Toda a informação em RELIGIONLINE

13 de Outubro, 2014 José Moreira

Voto de silêncio

Era um mosteiro original, fundado por uma variante dos frades capuchinhos: os Capuchinhos Do Silêncio – Penitentes Pios, CDS-PP para os amigos. Enquanto noviços, os CDS-PP eram considerados assistentes operacionais, e era-lhe permitido falar; mas depois de passarem à efectividade, entravam em regime de reclusão e eram obrigados ao voto de silêncio. Ou seja, nunca falavam, e mesmo as orações, missa incluída,  eram celebradas em silêncio. Se por acaso, tinham necessidade absoluta de falar, por exemplo para dizer a um assistente operacional que não havia papel higiénico na cagadeira, socorriam-se de mensagens escritas.

Mas, como acontece com todas as regres, esta também tinha uma excepção: uma vez por ano, um frade, designado pela lista de antiguidades, tinha direito a dizer uma frase. Esse dia coincidia com a data da fundação do mosteiro, pelo que se tornava um dia especialmente festivo.

Ora, no aniversário que interessa para este artigo, a lista de antiguidades apontou Frei Gabriel da Anunciação como o contemplado com a faculdade de dizer de sua justiça. Havia alguma expectativa, porque, certamente, algo de importante haveria de ser dito. Eis, pois, que é chegado o momento solene, este situado logo a seguir à sobremesa e imediatamente antes do café e digestivos. Sorvida a última colher de pudim de Abade de Priscos, Frei Gabriel levantou-se e pronunciou: “A sopa estava salgada”. Depois, sentou-se e tudo se remeteu ao silêncio habitual.

Passou-se um ano. Desta vez, a lista de antiguidades apontava Frei Hermogeneges Andapolipepédico como o feliz contemplado. Chegado o momento, levantou-se e disse: “Não acho que a sopa estivesse salgada”. Ponto.

E mais um ano silencioso decorreu, sem ruídos nem sobressaltos. A lista de antiguidades tinha dado, no ano anterior, a volta completa, pelo que, agora, voltava a ser a vez de o frade superior, o frade de todos os frades, se pronunciar. A expectativa era enorme, já que Frei Adalbataberto era não só um exímio gestor de silêncios mas também conhecido pela sua rigidez de comportamentos e austeridade na imposição de normas Eis, pois, que é chegado o momento de Frei Adalbataberto se pronunciar, consumida que foi a última “barriga de freira” e com o café já escaldante na chávena. Levantou-se na sua rigidez esfíngica e pronunciou, implacável: “Não quero mais discussões à mesa!”

13 de Outubro, 2014 Carlos Esperança

A escola, a laicidade e a fé

Dedicatória:

A Malala, prémio Nobel da Paz, a quem a doçura do rosto juvenil esconde a afoiteza, e a ânsia do conhecimento se sobrepõe aos preconceitos da fé.

«Abrir uma escola é fechar uma prisão». A frase, atribuída a vários pensadores, teve a calorosa defesa de Vítor Hugo, num discurso inflamado, na Assembleia Constituinte Francesa, em 1848. A instrução que seduziu Malala é o ódio de estimação dos talibãs, que a impedem, sobretudo às mulheres, o alvo dos terroristas que julgam o Paraíso ao alcance da ignorância e como prémio da discriminação de género.

Abrir uma escola laica é uma impossibilidade nos pântanos onde germina o Islão, mas é a única forma de revezar madraças e rejeitar mesquitas, ainda que os trogloditas de Alá continuem a gritar que Deus é grande e Maomé o seu profeta. As democracias não são confessionais.

Hoje, um jornalista escreveu que a Turquia é o único país islâmico democrático. Não há democracias muçulmanas, cristãs, judaicas ou hindus. As democracias adjetivadas não o são. A Turquia é uma democracia porque é laico o país. Está em risco com o presidente, Erdogan, que se esforça na reislamização. Prefere um Estado Islâmico, com riscos para si próprio, a um Estado curdo na fronteira da Turquia.

Um Estado confessional não é democrático. Veja-se o Vaticano ou o Estado monástico do Monte Atos, autónomo da Grécia, a título de exemplo. São teocracias.

O ensino, tal como a ciência, não podem ser tutelados pela teologia, a exótica «ciência» sem método nem objeto. Não pode preparar almas para a morte, deve conduzir pessoas para a vida e ter como objetivo a felicidade humana e a autodeterminação individual.

Que muitas Malalas floresçam no pântano da boçalidade medieval dos dementes da fé e que as sementes da sabedoria frutifiquem em mulheres que arrasem os valores tribais de sociedades patriarcais onde a mulher continua a nascer com pecado original, vítima dos preconceitos ancestrais e da vontade divina interpretada por facínoras.

12 de Outubro, 2014 Ludwig Krippahl

De onde vem a ética?

O Jónatas Machado comenta regularmente no meu blog, como “Perspectiva” ou “Criacionismo Bíblico”. Infelizmente, os seus comentários são tão repetitivos e desligados dos posts que comenta que deixei de olhar para eles. Mas chamaram-me a atenção para uma excepção, no post sobre a igualdade de direitos, que é um bom ponto de partida para algo que me interessa. Escreve o Jónatas que «ficamos sem saber porque é que o facto as pessoas sentirem, desejarem, planearem, sonharem e pensarem lhes confere dignidade e direitos iguais. Especialmente quando se acredita que as pessoas são um acidente cósmico», pondo em seguida as seguintes questões: «Como é que um acidente cósmico pode reclamar dignidade intrínseca? […] E reclama dignidade diante de quem? Que norma obriga um acidente cósmico a reconhecer a igual dignidade de outra acidente cósmico?». Finalmente, alega que «O princípio da igualdade não faz sentido à luz de uma visão ateísta» e que «O princípio da igualdade é, na realidade, uma doutrina cristã, cuja origem está em Génesis. Ele baseia-se no facto de homens e mulheres terem sido criados à imagem e semelhança de Deus.» (1) Penso que quem não for fundamentalista religioso percebe que estas alegações são falsas. Mas, como de costume, o que me interessa mais é detalhar o porquê.

Comecemos pelo mais fácil. Se alguém me pisa eu digo “Au! Está a pisar-me!” É fácil perceber que a minha capacidade de sentir, pensar e falar bastou para que reclamasse dessa violação da minha integridade. É também natural que eu dirija a minha reclamação a quem me pisou. Este mecanismo é comum nos animais. Se o Jónatas pisar a cauda de um cão grande, o animal irá reagir sem dificuldade em saber contra quem e facilmente lhe ocorrerá como persuadir o Jónatas a não repetir a brincadeira. É verdade que isto não tem nada de ético, mas já lá vamos. O importante primeiro é perceber que o mecanismo para identificar estes conflitos, reclamar deles e coagir para que não se repitam é consequência natural de capacidades sensoriais, motoras e cognitivas comuns em várias espécies.

Quando animais destes vivem em grupos, a pressão para reduzir conflitos e maximizar benefícios condiciona padrões colectivos de comportamento. Assim, em galinheiros, matilhas de lobos e grupos sociais de golfinhos, por exemplo, surgem normas implícitas, aprendidas por cada nova geração pela socialização com os mais velhos, e que regulam comportamentos que vão desde quem pode dar bicadas em quem até estratégias complexas de caça e reprodução. Na nossa espécie, a capacidade de codificar estes padrões em linguagens e ritos cria a moral, um conjunto de normas e de regras explícitas que condicionam o comportamento de indivíduos em cada cultura. É comum invocar-se deuses para ameaçar infractores ou justificar as regras mas, em rigor, isso seria dispensável. Talvez dizer “se roubas cortamos-te as mãos” não seja tão eficaz como dizer “roubar é pecado aos olhos de Xumbundu, por isso se roubas cortamos-te as mãos e Xumbundu condenará a tua alma ao inferno das mil diarreias”. Mas a diferença, se houver, será meramente quantitativa. A ideia é a mesma: as normas surgem pela interacção dos elementos do grupo, esses elementos encarregam-se de coagir o respeito pelas normas e a moral que daí advém é apenas a representação simbólica de padrões que cristalizaram sem plano nem propósito. Com isto já se faz leis, religiões, costumes, castas, tradições e regras sociais complexas. Mas, como há muitos pontos de equilíbrio nestes sistemas complexos, a moral de uma sociedade pode ser muito diferente daquela que surge noutra e pode incluir racismo, escravatura, tortura, despotismo e outras injustiças terríveis, conforme calhe. Quanto a isto, a religião de nada adianta.

A ética é um bicho diferente porque não é feita de comportamentos, nem de normas, nem de regras, direitos ou obrigações. A ética é feita de perguntas. Quando Sócrates perguntou o que é a virtude, todos os seus contemporâneos julgavam que a resposta era óbvia. Mas não era. Nem é. Porque não devemos roubar? Quando é legítimo matar? Viver é um direito, um privilégio ou uma obrigação? Estas perguntas são importantes porque impedem uma adesão cega ao sistema moral que nos tenha calhado e permitem uma abordagem consciente e racional dos problemas. Eu considero que homens e mulheres têm direitos iguais porque considero que são equivalentes naquilo que importa para ter direitos, como sentir, pensar e dar valor à sua existência. O Jónatas acha que é por «terem sido criados à imagem e semelhança de Deus» mas essa premissa não tem fundamento factual, não passa de uma interpretação possível para a rábula da costela e nem sequer é consensual no cristianismo. Também não permite estender a noção de direitos a animais de outras espécies que, apesar de não serem semelhantes ao deus do Jónatas, partilham connosco muito daquilo que justifica ter direitos.

A ética serve para substituir os mecanismos cegos de estabilização de comportamentos pelo debate consciente e as racionalizações do status quo por justificações racionais. Os princípios que daí advêm depois podem ser transpostos para normas, como leis, formas de governo e afins, corrigindo gradualmente os erros do passado. Ao contrário do que o Jónatas defende, a religião não traz benefícios nisto porque é apenas mais um legado desses mecanismos primitivos que dominaram as sociedades até há poucos séculos. Os mesmos mecanismos que governam galinheiros e matilhas. E a ética não pode vir de Deus porque a ética não é algo que nos dão. É algo que temos de fazer por nós, pois exige questionar, reflectir e perceber os problemas de outras perspectivas. O único deus que poderia participar nesta actividade seria um deus filósofo, disposto a dialogar e a justificar as suas posições. Mas como um deus filósofo não é útil aos sacerdotes, as religiões só inventam deuses déspotas, prepotentes e preconceituosos, que nada podem contribuir para esta empreitada.

1- Igualdade e diferenças, segundo comentário.

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