Eis uma análise feita por autores que pertencem (ou pertenceram) à ICAR e são profundos conhecedores da teologia e do direito canónico. Dificilmente poderão dizer os créus que nos visitam que o livro foi escrito por inimigos da ICAR e não sei que outros argumentos lhes sobram para continuarem a manter o crime e a hipocrisia.
Um espermatozóide está quase a alcançar o óvulo. Neste momento, dão-vos esta escolha: querem que ele fecunde ou preferem evitar que isso aconteça?
Se responderem que preferem evitar que isso aconteça, estão a matar alguém?
Se acreditam no argumento do «ser potencial» terão de responder que sim. Terão de responder que o futuro previsível de uma solução é que uma criança nasça, e no outro caso isso não se sucederá.
Mas aí, sejam coerentes: lembrem-se que o futuro «previsível» de uma mulher ir para freira é que não terá filhos, o que corresponde à morte dos filhos que previsivelmente teria se tivesse optado por outro futuro. Lembrem-se que o planeamento familiar mata imensos seres que previsivelmente nasceriam caso não se tivesse acesso aos métodos contraceptivos.
Sejam contra o preservativo e a pílula como a igreja, mas sejam também contra a castidade e abominem a abstinência. Lembrem-se que as mulheres que optaram por ter menos de 10 filhos provavelmente estão a matar seres humanos potenciais, e vejam sempre como eticamente incorrecto que as pessoas não se esforcem para ter o máximo número de filhos que podem. Construam um mundo superpovoado e cheio de incubadoras – as mulheres.
Sei que qualquer pessoa decente e civilizada sente repulsa por esta visão, e mesmo os defensores do não que usam o argumento do «ser potencial» não acreditam nisto.
Eles acreditam que existe uma diferença entre o momento antes do espermatozóide fecundar o óvulo, e depois.
A partir daí, acreditam que já existe um ser humano. A grande diferença, dizem, é o ADN.
Deixem-me dizer-vos: o ADN não define um ser humano.
Deixem-me repetir-vos: o ADN não define um ser humano.
O ser humano não está no ADN. O nosso «eu» não está no ADN.
Existe um argumento simples e ilustrativo: os gémeos verdadeiros têm o mesmo ADN.
São a mesma pessoa? Não.
Não existe uma pessoa sem cérebro.
Peço ao leitor que faça a seguinte experiência imaginária: o leitor está num hospital apetrechado com tecnologia do século XXX, um órgão vital seu está em perigo, se não for substituído, o seu corpo vai morrer. Ao seu lado está outro indivíduo – chamemos-lhe Augusto. Foi envenedado, e embora no hospital possam salvar um órgão deste paciente, o corpo do Augusto está condenado a perecer. Assim sendo, a equipa do hospital opta por trocar o orgão do leitor em perigo pelo orgão do Augusto que podem salvar.
Se trocarem o coração, apenas vai existir um sobrevivente: o leitor.
A mesma coisa para os pulmões, os rins, o fígado, quase qualquer órgão.
Mas se trocarem o cérebro, não é o leitor quem sobrevive. É o Augusto que fica com um novo corpo.
A pessoa está no cérebro, e o embrião não tem qualquer neurónio formado. Não tem actividade cerebral.
Não, o embrião não é uma pessoa.
E se para mim me parece cruel e desumano obrigar uma mulher a suportar uma gravidez que não deseja, eu não posso aceitar o argumento de que isso é feito para salvar alguém: ninguém está a ser salvo, só um mito e uma ilusão.
[continuação]
Mas, chegados aqui, uma pergunta coloca-se: não existindo base racional para votar “Não”, existe alguma base racional para votar “Sim”? A minha opinião é que sim, existe de facto essa base racional para votar “Sim”, e que, ao mesmo tempo, essa base racional nos diz que é mesmo urgente ir votar “Sim” no próximo dia 11. A base racional para o “Sim” são os muitos estudos que têm sido feitos sobre a IVG clandestina, a IVG legal, e os seus impactos em diversos países (tanto países onde a IVG é legal como onde é criminalizada). Um estudo (de natureza estatística, logo racional e científica) particularmente focado no caso de Portugal, é o estudo efectuado pela “Associação para o Planeamento da Família”, sobre as práticas de aborto em Portugal, e que pode ser encontrado, por exemplo, aqui. Acho importante salientar que, numa discussão saudável, racional e séria sobre o referendo do próximo dia 11, nos devemos restringir apenas aos assuntos que estão em cima da mesa para debater. E, neste caso, a questão única que devemos abordar é se concordamos ou não com a criminalização da IVG até às 10 semanas (é particularmente importante salientar que nunca nos é perguntado se concordamos ou não com a IVG, apenas nos é perguntado se concordamos ou não com a sua criminalização). Mais ainda, acho importante salientar que, nessa mesma discussão, e por forma a que seja de facto racional e séria, apenas devemos usar dados obtidos seguindo os mesmo critérios: dados de natureza científica, que descrevem com rigor o cenário com que nos deparamos. Nesse caso, o estudo da APF é particularmente relevante, e é um estudo que nos indica que apenas pode haver uma escolha racional para o nosso voto: o voto “Sim”. Naturalmente que, sobre opções de voto sem qualquer base racional, não vou (nem me compete) me pronunciar.
O que sabemos então sobre o cenário da IVG clandestina em Portugal? Um cenário que, acrescente-se, é reconhecido por todos, defensores do “Sim” ou do “Não”, como extremamente preocupante e que necessita de solução urgente—daí também a necessidade urgente de votar “Sim” no referendo de dia 11. Sabemos quatro factos que me parecem importantes:
1 — O número de IVG clandestinas em Portugal é de cerca de 18 mil por ano. Isto são aproximadamente 50 IVG clandestinas por dia, ou 2 por hora. São IVG cometidas sem quaisquer condições de segurança, de higiene, e de acompanhamento médico. São actos de natureza médica cometidos na mais profunda clandestinidade. São IVG que produzem verdadeiras vítimas: mulheres. Mulheres que acabam por ter problemas de saúde, sejam menores, sejam graves, ou seja a própria morte, pelo facto de a IVG até às 10 semanas se encontrar criminalizada, e por serem obrigadas a recorrer à IVG clandestina, sem quaisquer condições de segurança, de higiene, e de acompanhamento médico.
2 — Sabemos que, destas 18 mil mulheres por ano que recorrem a uma IVG clandestina, 3 mulheres por dia necessitam de internamento devido a complicações decorrentes da natureza clandestina da IVG. Mulheres que assim têm problemas de saúde, sejam menores, sejam graves, ou seja a própria morte, pelo facto de a IVG até às 10 semanas se encontrar criminalizada, e por serem obrigadas a recorrer à IVG clandestina, sem quaisquer condições de segurança, de higiene, e de acompanhamento médico.
3 — Sabemos que 73% dessas IVG clandestinas são efectuadas até às 10 semanas, e sabemos ainda que, de todas as mulheres que já recorreram a uma IVG, a grande maioria destas (83%) realizou uma única IVG (e nenhuma “porque sim”).
4 — O número de IVG efectuadas por mulheres portuguesas em clínicas espanholas, e seguindo dados oficiais, é de cerca de 1500 por ano. Isto são aproximadamente 4 por dia. Mulheres com recursos suficientes para fugir à clandestinidade da IVG portuguesa, conseguindo fugir também a todos os problemas que uma IVG clandestina acarreta.
Aqui temos os factos. As únicas vítimas da lei vigente têm um número: duas mulheres por hora. Duas mulheres portuguesas recorrem a uma IVG clandestina até às 10 semanas por hora. Sem quaisquer condições de segurança, de higiene, e de acompanhamento médico. Estes são os números. Os números de um problema que todos reconhecem como gravíssimo e que deve ser resolvido. Porque queremos acabar com o problema da IVG clandestina, e porque queremos acabar com todas as complicações decorrentes da IVG clandestina, sejam menores, sejam graves, ou seja a própria morte. Não pode haver nada mais urgente para fazer dia 11, do que votar “Sim” e pôr fim a este problema. Para que essas mulheres deixem de ser vítimas de uma lei sem base racional.
Mas acresce também dizer alguma coisa sobre os países onde a IVG se encontra legalizada, e sobre os quais também se conhecem muitos estudos, efectuados precisamente por esses mesmos diversos países em que a IVG foi descriminalizada. E acresce dizer duas coisas que me parecem ser particularmente importantes para os defensores do “Não”. A primeira coisa, para todos aqueles preocupados com os aspectos morais da IVG—e que, como vimos, não podem dar base racional ao “Não”—, é dizer que, em todas as sociedades onde a IVG até às 10 semanas se encontra despenalizada, não se observa qualquer ruptura na estabilidade colectiva, ou dos valores colectivos, dessa mesma sociedade. Pelo contrário, observa-se um sentimento de modernidade, de justiça, de liberdade e—muito importante—de igualdade entre os sexos. A segunda coisa que acresce dizer é que, e segundo muitos desses mesmos estudos, o número de IVG pode diminuir com a sua despenalização, exactamente por essas mesmas sociedades mostrarem a modernidade necessária para produzir programas de planeamento familiar efectivos e ao alcance de todos.
Por tudo isto, dia 11 é urgente votar SIM.
[Também no Esquerda Republicana]
Dois mil anos de mentiras impostas por meios vigorosos, com a cumplicidade do poder secular, parecem verdades irrefutáveis que legiões imensas de supersticiosos e beatos se esforçam por perpetuar e disseminar.
As tradições e os interesses instalados jogam a favor das intrujices primárias e dos mais inverosímeis embustes. Todas as religiões se dizem criadas pelo único Deus verdadeiro, donde se conclui facilmente que são todas falsas menos uma, na melhor das hipóteses, e, provavelmente, todas.
Mas quem convence o clero das religiões monoteístas a exercer uma actividade normal, a ter uma profissão honesta e a abdicar do poder que as funções pias conferem?
Um dia Guerra Junqueiro disse para Tomás da Fonseca: «Ó Tomás, aos padres, com a barriga cheia, tanto lhes dá que as pessoas da Santíssima Trindade sejam 3 como 300».
O clero é quem menos acredita em Deus e quem mais se esforça por persuadir os outros. Depois de João Paulo II, supersticioso eivado do catolicismo jurássico da sua Polónia, não é provável que apareça outro Papa que acredite em Deus, mas nenhum terá a coragem de voltar a dizer:
«A fábula de Cristo é de tal modo lucrativa que seria loucura advertir os ignorantes do seu erro». (Leão X – Papa)
Neste momento venho anunciar o meu desejo de sair da equipa da Diário Ateísta. Não porque não me reveja na linha editorial ou por estar em desacordo com outros membros em algum ponto concreto. Longe disso, penso que sempre existiu (e existe) um amplo espaço para que todos os pontos de vistas ateus fossem expressados. O que está em causa aqui é o meu grau de compromisso intelectual para com o conceito de ateísmo. Neste momento, por razões extremamente pessoais (nas quais prefiro não entrar…), abandonei esse compromisso e não posso honestamente pertencer a este muito bom, excelente, grupo.
As minhas posições fora do ateísmo continuam iguais e não será pela minha saída que não darei todo o apoio que puder a todas as iniciativas que visem a liberdade e dignidade humana. Espero continuar a ser um comentador do DA por muitos anos apesar de por razões de coerência interna e honestidade para com o resto da equipa e os leitores não poder continuar a escrever. Obrigado a todo(a)s pelo muito que aprendi ao longo deste período.
Saio pela mesma razão que entrei, vontade de ser coerente, e não por pressão de seja quem for.
Um abraço a todo(a)s,
Pedro Fontela
[continuação]
Estes são os principais argumentos apresentados pelos movimentos de apoio ao “Não”. São, também, e do meu ponto de vista, argumentos desprovidos de qualquer base racional. Para além destes dois argumentos principais, têm também sido postos a circular uma série de argumentos “menores”. Argumentos com o único objectivo de tentar convencer a votar “Não” quem descarta, de forma racional, os dois argumentos anteriores, em forma análoga à que é feita em cima. Mas estes argumentos “menores”, tal como o nome indica, são mesmo de qualidade inferior aos anteriormente desconstruídos. Podemos rapidamente revelar a irracionalidade por detrás de cada um deles (sem nenhuma ordem particular):
— O argumento financeiro. Um argumento que tem estado na berra na campanha em out-door é o argumento financeiro. Quanto vai custar a eventual IVG legal, e quem a vai pagar? Essa pergunta é uma pergunta legítima, mas nunca pode ser feita sem fazermos primeiro a pergunta: quanto custa actualmente a IVG clandestina e quem a paga? Recentemente, Boaventura Sousa Santos escreveu um artigo na revista Visão a mostrar que, se queremos de facto olhar apenas para as cifras, a IVG clandestina custa mais, e quem a paga são todos os contribuintes. A título de exemplo, alguns números do seu artigo indicam que, de todas as mulheres que anualmente recorrem à IVG clandestina (estimadas em cerca de 18 mil por ano, de acordo com o recente estudo da “Associação para o Planeamento da Família” que abordaremos mais adiante), cerca de 3600 destas (isto são cerca de 10 mulheres por dia) têm problemas de saúde, com um terço dessas a necessitarem de internamento (ou seja, aproximadamente 3 mulheres por dia a necessitarem de internamento). Muitas ficam com problemas crónicos de saúde. Isto, em contrapartida a uma IVG feita em estabelecimento de saúde autorizado, onde a IVG será feita a maior parte das vezes por ingestão de fármacos, com custos marginais. A cifra clandestina naturalmente aumenta quando a lei vigente criminaliza a IVG e, consequentemente, requer—pelo menos em princípio—investigação policial e subsequente julgamento. Numa nota pessoal, devo dizer que acho todo este assunto da questão financeira de muito mau gosto, mas se é para ser desconstruída, pois seja, continuemos. Esta suposta questão financeira em apoio do “Não” é de base argumentativa tão fraca que, mesmo se de facto a IVG clandestina fosse mais barata, o argumento não pegava: é que, estando a analisar os custos associados a um grave problema de saúde pública nacional, e chegando à conclusão que não os queremos pagar, podemos sempre usar esse mesmo argumento no que diz respeito a qualquer outro problema de saúde pública nacional. Eu, que nem fumo e até faço desporto, poderia, nesta “lógica” financeira, recusar a ver dinheiro dos meus impostos ser gasto no combate aos malefícios do tabaco ou no combate às doenças cárdio-vasculares. Naturalmente não o faço pois, apesar da probabilidade de eu vir a sofrer dessas doenças ser inferior à média nacional, mesmo assim sei que a sociedade, como um todo, fica a lucrar com a existência e acção desses mesmo programas. Em resumo, o “argumento financeiro” não só não faz sentido pois o custo real na realidade poderá baixar, como, mesmo que aumentasse, não poderia servir como argumento para impedir a resolução de um grave problema de saúde pública nacional. Finalmente, para quem quiser reflectir sobre os custos sociais das maternidades não desejadas, recomendo a quem não conhece a letra da música Pátria que me Pariu, do músico brasileiro Gabriel, o Pensador, e que pode ser encontrada aqui.
— O argumento religioso. Este argumento baseia-se em dogmas religiosos para tentar justificar a escolha no voto “Não”. É perfeitamente claro que quaisquer argumentos de índole religiosa, pela sua própria natureza, não são argumentos de carácter racional mas antes de raíz dogmática. Mais ainda, é óbvio que não compete a ninguém fazer qualquer julgamento moral sobre as escolhas religiosas de cada pessoa, mas da mesma forma a nenhuma pessoa religiosa compete fazer qualquer julgamento sobre o código penal de um dado estado, quando esse julgamento é feito com base em princípios de natureza religiosa, pelo menos não num estado laico. Não podendo esse género de argumentos servir assim como base legisladora num estado laico, não me parece também muito correcto fazer uso deles numa campanha eleitoral. Independentemente da minha opinião, fica, no entanto, a falta de motivos racionais nesta orientação de voto. É ainda de salientar que, muito perto deste argumento, se encontram também argumentos relativos a posições de natureza moral ou filosófica. Certamente nenhuma posição deste tipo de natureza (religiosa, moral ou filosófica) pode ser criminalizada num estado livre, como queremos que seja o nosso. Pelo contrário, esta é uma linha de pensar particularmente próxima de estados totalitários, em que códigos de natureza religiosa, moral ou filosófica são impostos na população através de leis de criminalização. Existem sem dúvida muitas posições, sejam de natureza religiosa, moral ou filosófica, com as quais não concordamos de todo, mas nem por isso nos passa pela cabeça as criminalizar. Assim sendo, nenhuma destas razões pode funcionar como argumento racional para suportar uma posição de voto que implique a sua criminalização: todas as escolhas de natureza religiosa, moral ou filosófica não podem ser criminalizadas e devem pertencer à livre escolha de qualquer cidadão. Mas existem ainda dois pontos curiosos, associados a estas posições. Um está associado à posição religiosa. Este argumento é contraditório mesmo que seja considerado puramente dentro da sua natureza religiosa: cerca de 20% de todas as gravidezes acabam em aborto espontâneo. Seria certamente estranho classificar como “errada” a IVG até às 10 semanas, com base em argumentos religosos que consideram a vida humana como “sagrada”, quando—nesta linha de pensar—precisamente 20% de todas as gravidezes acabam por sofrer IVG “divina”. O outro ponto curioso é que, mostra a experiência, quando em condições de tragédia pessoal ou familiar, as posições morais ou filosóficas são das primeiras a ser postas de parte, por forma a se encontrar uma solução para o problema. E, neste caso, além de irracional, tal atitude só poderia ser classificada como de hipocrisia.
— O argumento associado à campanha visual. Este não é tanto um argumento, mas mais uma campanha que tenta precisamente atacar o lado emocional das pessoas, mostrando-lhes fotografias de bébés e tentando sugerir assim que o que está em causa no que diz respeito à IVG até às 10 semanas é, numa linguagem mais directa, “matar criancinhas”. Eu penso que não é preciso extender-me muito sobre a natureza de uma campanha visual nestes moldes. Apenas me parece importante salientar que nenhuma dessas imagens naturalmente corresponde a um feto de menos de 10 semanas. A julgar sobre dados extrapolados para eventuais futuras IVG legais, caso o “Sim” vença, sabemos que os embriões em causa terão tamanhos típicos a rondar os 4 a 20 milímetros, e que qualquer semelhança visual com as imagens que nos são apresentadas pelas campanhas do “Não” são simplesmente inexistentes. Isto, naturalmente, classifica esse tipo de campanha visual como mentirosa. O que a classifica como irracional é a sua tentativa de apelar ao lado emocional dos eleitores (ao invés de seguir por uma linha de discussão esclarecedora e séria).
— O argumento da saúde psíquica da mulher. Este argumento diz-nos que a opção por uma IVG pode vir a causar problemas para a saúde psíquica da mulher que a escolheu fazer. Aceitemos os dados estatísticos desses estudos como verdadeiros (eu digo “aceitemos” pois, no estudo que vi, e que servia de suporte a uma campanha pelo “Não”, não estava medida a existência ou não de correlações entre problemas psíquicos anteriores e posteriores à descrita IVG, e logo não me pareceu um estudo que permitisse imediatamente aceitar causalidade). Bom, mas aceitemos de qualquer forma esses dados como verdadeiros. Neste caso, como se pode racionalmente defender que este é um argumento para votar “Não”? Parece-me que, racionalmente, este é um argumento para votar “Sim”: se queremos de facto salvaguardar a saúde psíquica de uma mulher, e sabendo que o número de IVG não diminui por esta ser criminalizada, mas apenas faz com que essas mesmas IVG ocorram em situações de clandestinidade ou de fuga para o estrangeiro, então ao votar “Não” estamos precisamente a contribuir para agravar as condições de saúde psíquica da mulher que optou por uma IVG até às 10 semanas. Pelo contrário, ao votar “Sim”, estamos a optar para que essa mesma mulher, e em acordo com a eventual futura lei, possa receber acompanhamento psiquiátrico antes da realização da IVG e que, se decidir levar esta mesma por diante, possa fazê-la em condições condignas com o acto médico de que se trata, e possa ainda vir a receber acompanhamento psiquiátrico após a realização da IVG. Parece-me que este tipo de argumento é um argumento que nos força racionalmente a votar “Sim”, não podendo nunca suportar a posição do “Não”, excepto num contexto carregado de hipocrisia, ao fazer salientar um problema e oferecer como sua possível solução uma opção—a criminalização—que únicamente serve para agravar o problema que se diz querer ver resolvido!
— Finalmente, o argumento que acho mais redutor e ofensivo para com as mulheres, entre todos os que têm sido apresentados nos movimentos pelo “Não”, é o argumento que diz que, se o “Sim” vencer, então uma mulher pode efectuar uma IVG “só porque lhe apetece”. Como se alguém pudesse alguma vez tomar essa opção de forma leviana! Eu devo dizer que, pessoalmente, acho este argumento de um profundo moralismo (e já em cima expliquei porque argumentos de natureza moral não podem nunca servir de base racional para a legislação num estado livre e democrático). Mais do que isso, acho que este argumento mostra também uma forte dose de machismo e frustração pessoal. Mas, considerações sobre a natureza psicológica de quem profere estes argumentos postas de parte, vejamos porque também este argumento não tem base racional: não tem base racional pois, como é indicado por qualquer estudo estatístico (como, por exemplo, o estudo conduzido pela “Associação para o Planeamento da Família”, que abordaremos mais adiante), naturalmente de base racional e científica, essa nunca é, nem nunca foi, a razão indicada pelas mulheres para a escolha da opção da IVG. Assim, não existe base racional para um argumento desta natureza, pois este é contrariado pelos estudos feitos nesse mesmo sentido.
[continua]
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