23 de Novembro, 2025 Eva Monteiro
Terceira Carta a Um Crente
A primeira carta está aqui, e a segunda carta está aqui. Sem esse contexto será complicado entender o texto que se segue.
Este crente é resiliente e tem genuíno interesse no debate. São qualidades que respeito mais do que ele próprio talvez reconheça. Confesso que debater com ateus tem pouco apelo. Naquilo que me interessa debater, concordamos. Naquilo em que discordamos raramente me interessa debater. É uma espécie de desabafo, mais do que debate. Nesse sentido, a troca de ideias com um crente tem para mim mais valor intelectual do que qualquer sessão de concordância com amigos que partilham a minha visão do mundo. Tanto quanto possível, procuro estes debates e sinto que encontrei neste crente alguém que, partilhando do interesse no tema, se coloca do outro lado da mesa com profunda mas respeitosa discordância. Há quem me pergunte como tenho paciência – ao que respondo que, se pudesse, era o que fazia da vida. Não há esforço em manter esta conversa, apenas satisfação em poder fazê-lo com alguém que ainda não desistiu, quanto tantos outros nem sabem por onde começar.
Assim sendo, é com prazer que vos disponibilizo a resposta deste crente anónimo, no seguimento das anteriores já publicadas e respondidas.
Agradeço sinceramente a tua mensagem — não apenas pela forma como estruturaste os teus argumentos, mas pela honestidade intelectual que demonstras ao expor aquilo em que acreditas e aquilo que rejeitas.
Acredito que o diálogo só é verdadeiramente frutífero quando existe abertura de parte a parte. E é nesse espírito — sem pretensão de evangelizar ou converter — que te respondo, ponto a ponto.“Tu não sabes, acreditas. É matéria de fé e não de facto.”
Começo por concordar contigo num ponto essencial: o verbo saber tem, no campo do conhecimento empírico, um significado que exige demonstração e verificabilidade. Quando alguém diz “sei” sem apresentar provas, é natural que surja ceticismo.
Mas há diferentes camadas de saber.
Há o saber científico (observável e replicável), o lógico (demonstrável pela razão) e o experiencial — aquele que nasce da vivência, da repetição de fenómenos, da coerência entre aquilo que se experiencia e aquilo que se compreende.
Quando um espírita diz “sei que o espírito sobrevive à morte”, não o diz no sentido de uma prova laboratorial, mas no de um conhecimento íntimo e acumulado pela observação reiterada de manifestações semelhantes, por mediunidades diferentes, e pelo impacto moral e intelectual que tais comunicações produzem.Portanto, sim: é um tipo de saber vivencial e reflexivo, não empírico-laboratorial.
E é importante ser honesto sobre isso — não é ciência no sentido estrito, mas também não é crença cega. É um saber construído a partir da experiência e da razão aplicada a ela.“Muitos dizem ‘sei’ — o muçulmano, o hindu, o cristão — e não podem ter todos razão.”
Tens razão: a multiplicidade de certezas religiosas é uma das maiores evidências de que o “saber” teológico raramente é factual.
Mas o Espiritismo não se apresenta como revelação exclusiva nem como religião que pretende ter o monopólio da verdade. Kardec partiu precisamente do princípio de convergência — ao comparar mensagens mediúnicas de diferentes locais, culturas e médiuns, procurou extrair princípios universais: a imortalidade da alma, a reencarnação, a lei de causa e efeito, o progresso moral do espírito.Esses princípios não exigem adesão a um dogma particular ou a uma figura divina específica. São hipóteses filosóficas sobre a natureza da consciência e da moral, e são apresentadas como tal — suscetíveis de reflexão e revisão, nunca como verdades absolutas.
“As experiências subjetivas são universais e explicáveis pela neurociência.”
Também aqui o teu ponto é forte.
A ciência já demonstrou que o cérebro é capaz de produzir estados alterados de consciência, alucinações e sensações de presença. Isso é inegável.
Mas reconhecer que o cérebro pode gerar tais experiências não significa automaticamente que todas elas o sejam.
Do ponto de vista espírita, a mente usa o cérebro como instrumento — o que significa que há interações entre ambos. O que a neurociência observa é a correlação, não necessariamente a causa única.Por isso, em vez de negar a explicação neurológica, o Espiritismo propõe ampliá-la: o fenómeno mediúnico seria uma coabitação entre planos de consciência, onde o cérebro é o tradutor físico da experiência espiritual. É uma hipótese que a ciência ainda não pode confirmar — mas também não consegue, até hoje, eliminar completamente.
“Kardec não aplicou o método científico.”
Tens toda a razão.
Kardec não realizou experiências controladas no sentido moderno — não havia grupo de controlo, protocolo replicável nem revisão por pares.
O seu método foi comparativo, baseado em observação e coerência das comunicações. Foi uma tentativa de aplicar rigor onde antes só havia superstição. Para o século XIX, foi ousado. Para os padrões científicos atuais, é insuficiente.Reconhecer isso não é desmerecer Kardec, mas situá-lo historicamente. Ele fez o que pôde com as ferramentas intelectuais e sociais do seu tempo.
A tarefa das gerações seguintes é continuar — aproximando cada vez mais o estudo espiritual das exigências metodológicas modernas.“O Espiritismo procura confirmar, não refutar.”
Aceito a crítica — e, em muitos casos, é justa.
Muitos grupos espíritas caíram na armadilha do verificacionismo, isto é, aceitar apenas aquilo que confirma a crença prévia e descartar o que a contradiz.
Mas o verdadeiro espírito da obra de Kardec não é esse. Ele próprio dizia: “A fé inabalável é apenas a que pode encarar a razão, face a face, em todas as épocas da humanidade.”
Portanto, a busca por refutação deveria ser parte do movimento espírita — e, quando não é, estamos a falhar com Kardec.“É o argumento do Deus das lacunas — usar o sobrenatural onde não há explicação.”
Concordo contigo no essencial: ausência de explicação não é prova de explicação sobrenatural.
O Espiritismo, quando é fiel ao seu princípio filosófico, não usa o sobrenatural para tapar buracos, mas como hipótese para explicar certos fenómenos observáveis, como as comunicações mediúnicas e as lembranças espontâneas de vidas passadas.
Não digo que sejam provas definitivas — mas são dados interessantes que desafiam o modelo materialista estrito.Além disso, o Espiritismo não nega a ciência. Ele apenas propõe que há dimensões da existência que o método científico ainda não consegue medir.
Não porque sejam mágicas, mas porque estão fora do alcance instrumental atual — como tantas coisas estiveram antes da física quântica ou da biologia molecular.“Darwin usou método; Kardec não.”
Certo.
Darwin partiu da observação empírica e construiu hipóteses testáveis. Kardec partiu da observação subjetiva e construiu um sistema moral e filosófico.
São naturezas de trabalho diferentes. Darwin criou uma teoria científica. Kardec, uma filosofia espiritualista.
Seria intelectualmente desonesto colocar ambos no mesmo patamar. Mas também seria injusto desconsiderar que ambos procuraram sentido num mundo que se abria à razão.
Kardec quis tirar o espiritualismo da superstição; não o conseguiu transformar em ciência, mas deu-lhe uma lógica e uma ética.“Não há provas de consciência fora do cérebro.”
Concordo — não há provas aceites pela comunidade científica.
Mas há casos documentados de experiências de quase morte (EQMs), percepções verídicas durante estados de inconsciência cerebral, e mediunidades estudadas sob condições controladas (como as de Leonora Piper ou Chico Xavier).
Nenhum desses casos é prova absoluta — mas são indícios que pedem estudo, não ridicularização.Aceito, portanto, o princípio científico: afirmações extraordinárias exigem provas extraordinárias.
Até lá, mantenho a hipótese aberta e o espírito de investigação — porque negar o inexplorado com a mesma certeza com que se afirma o conhecido também é, em si, um dogma.“O Espiritismo usa apelos à ignorância e wishful thinking.”
Em muitos casos, sim — e é importante admiti-lo.
Mas há espíritas que, como eu, tentam viver a fé sem abdicar da lucidez.
O Espiritismo não deve servir como anestesia da razão. Deve servir como estímulo ao questionamento, à pesquisa e à melhoria moral.
Se a fé serve para fugir da dúvida, é frágil.
Mas se a fé te leva a estudar mais, a servir melhor e a compreender o outro, então cumpre a sua função espiritual.“Ciência e fé não se complementam; misturá-las é erro.”
Depende do que chamamos “complementar”.
Não defendo que fé e ciência expliquem o mesmo — a ciência responde ao como, e a espiritualidade ao porquê.
Uma estuda os mecanismos; a outra, o sentido.
O erro está em confundir as fronteiras: quando a fé tenta substituir a investigação, erra. Quando a ciência tenta negar o valor da experiência espiritual, erra também.
Ambas são expressões da mesma busca humana por compreensão. Só diferem nas ferramentas.“O Espiritismo é autoritário porque tem postulados inquestionáveis.”
Infelizmente, parte da prática espírita contemporânea confirma isso.
Há grupos que transformaram princípios em dogmas e médiuns em oráculos. Mas isso não é o Espiritismo de Kardec — é o seu desvio humano.
O verdadeiro Espiritismo é livre-pensador, experimental, questionador.
O seu lema é “fora da caridade não há salvação” — não “fora do Espiritismo não há verdade”.
Se há autoritarismo, é sinal de que nos afastámos da essência.“A fé é conforto; a verdade é desconfortável — devemos escolher a verdade.”
Concordo plenamente.
O conforto é uma consequência possível da fé, mas não deve ser o seu propósito.
Prefiro uma fé inquieta, que questiona, que aceita a dúvida como parte do caminho, do que uma fé adormecida que teme pensar.
A verdade é o objetivo — e, se um dia a ciência provar que o espírito não sobrevive, aceitarei com serenidade.
Mas até lá, as minhas experiências, os testemunhos que observei, as transformações morais que vi em pessoas através da prática espírita — tudo isso me indica que há mais para descobrir.
E enquanto essa hipótese resistir à razão e à ética, continuarei a estudá-la.✦ Conclusão ✦
Eva, agradeço sinceramente a tua mensagem.
Sei que a tua intenção não foi ofender, mas propor um debate com rigor — e é exatamente isso que o Espiritismo genuíno deve acolher.
Não te escrevo para te convencer; escrevo para partilhar a minha forma de compreender a realidade, consciente das suas limitações e aberta à crítica.Creio que a busca pela verdade não pertence a nenhum campo em exclusivo.
A ciência investiga o universo externo; a espiritualidade investiga o universo interno.
Quando ambas caminham com honestidade, complementam-se — não em autoridade, mas em propósito.No fim, o que realmente importa é evoluir moralmente — aprender a amar, compreender e servir melhor.
E nisso, quer se seja ateu, espírita, cristão ou nada disso, todos estamos na mesma estrada.
Segue-se a minha resposta:
Agradecimentos à parte, porque já ambos expressamos gratidão pela disponibilidade um do outro, acho que te devo apenas dizer que as tuas respostas me dão sempre prazer em ler e igual prazer em contra-argumentar. Não nego que continuo a discordar das tuas posições e que dificilmente isso mudará (apesar de reconhecer que a possibilidade existe), como não tenho qualquer pretensão de mudar a tua. Contudo, explicar as nossas ideias a outros expõe-nos à crítica. De que outra forma posso encontrar falhas no meu pensamento? Por isso, enquanto tiveres paciência e o tema não se esgotar, eu mantenho a minha disponibilidade para continuar este debate.
Confesso que a expressão “tentar dar a volta ao texto” surge-me com alguma facilidade à medida que leio os teu comentários. Em relação ao verbo saber, usas o termo “conhecimento empírico”. Espero que não te importes que eu prefira “epistemologia”. Acho sinceramente que a distinção importa. É que a epistemologia investiga os critérios, fundamentos e limites do “saber”: o que justifica uma crença, como distinguimos verdade de erro, que métodos são fiáveis e porquê. O conhecimento empírico, por sua vez, nasce da fricção direta com a realidade, daquilo que podemos ver, medir e testar. A diferença entre ambos é simples: a epistemologia é a reflexão sobre o conhecimento; o conhecimento empírico é o próprio conteúdo observado no mundo.
É importante fazer esta distinção porque primeiro há que estabelecer o que significa “saber”, e depois então partimos para a descoberta da realidade, para os dados concretos. Partindo da epistemologia, saber é aquilo que resta depois de termos removido a fé, a superstição, o autoengano e o sentimentalismo. Ou seja, aquilo que se aguenta em pé mesmo quando alguém está ativamente a tentar derrubá-lo. Saber é o que resta do empirismo quando lhe apontas uma bazuca e tentas dar cabo de tudo o que achas que aprendeste com os dados que obtiveste. O saber é para abalar, porque só a fé pode ser inabalável.
Percebes certamente porque é que não posso aceitar a tua posição à luz da epistemologia. Não há camadas de saber, há factos e há hipóteses. Há diferentes tipos de hipóteses, no sentido em que umas são mais plausíveis e bem sustentadas que outras. Contudo, a factualidade não se presta a graus. O meu maior problema, se calhar onde vamos sempre encalhar a conversa, está aqui: “experiencial — aquele que nasce da vivência, da repetição de fenómenos, da coerência entre aquilo que se experiencia e aquilo que se compreende”. Ora, a vivência pessoal, por mais intensa, repetida ou emocionalmente marcante que seja, não é, em si, critério de verdade. A epistemologia moderna é clara neste ponto: uma crença verdadeira por acidente ou por impressão não constitui conhecimento. Centenas de pessoas podem ter visões religiosas, encontros com antepassados, presenças espirituais ou sensação de sair do próprio corpo. A repetição dessas vivências não as torna mais verdadeiras; torna-as apenas mais humanas. A subjetividade não se valida a si mesma.
A repetição de fenómenos subjetivos não tem o mesmo estatuto que a replicação experimental, pelo que não concordo que os coloques no mesmo patamar. Repetir a experiência de alguém não é repetir um fenómeno observável e controlável. Uma alucinação recorrente continua a ser uma alucinação. Uma interpretação errada que se torna rotina não deixa de ser errada. Nos vários campos da ciência, repetir significa recriar condições, controlar variáveis, medir resultados, comparar com hipóteses formuladas anteriormente e permitir que outros obtenham os mesmos resultados. Não só permitir como garantir, no sentido em que, se for avançada uma hipótese que só pode ser repetida pelo próprio, simplesmente não passa no escrutínio de pares e cai por terra com um estrondo vergonhoso. Nada disto se aplica à experiência íntima, que é, por definição, privada, não controlável e não partilhável enquanto dado bruto.
A “coerência entre o que se experiencia e o que se compreende” é um critério circular, sem valor epistemológico. Uma crença aparenta ser coerente quando encaixa nas expectativas e no sistema previamente aceite pelo próprio. Mas coerência interna não é prova de verdade. Um astrólogo encontra coerência entre os mapas astrais e as personalidades que interpreta. O conspiracionista encontra coerência entre os seus medos e os sinais que recolhe, em padrões que lhe parecem inegavelmente relacionados. O místico encontra coerência entre estados mentais e explicações espirituais. Em todos estes casos, a coerência é produto do sistema de crenças, não prova da realidade. Alguém encomenda um bruxedo para fazer mal ao Trump. Por sua vez, o presidente dos EUA, de 79 anos vividos à base de excessos e big macs parece ter a sua saúde afetada repentinamente. A bruxa convence-se que o seu feitiço resultou e nós todos aplaudimos?
Portanto, quando afirmas que o conhecimento experiencial “nasce da vivência, da repetição de fenómenos e da coerência entre experiência e compreensão”, estás, sem te aperceberes, a oferecer uma definição de crença subjetiva, não de conhecimento. O que se quer é a coerência entre conclusões e a realidade, os malditos dados que o espiritismo teima em não avançar ou deixar recolher. A tua definição ignora os pilares básicos do conhecimento: justificação adequada, possibilidade de erro identificável, correspondência com a realidade e métodos que eliminem vieses cognitivos, ilusões internas, distorções emocionais e interpretações à base do desejo, o tal do wishful thinking.
A ciência não rejeita a experiência; rejeita apenas a elevação da experiência a critério de verdade. A experiência é o ponto de partida, nunca pode ser o ponto de chegada. O rigor epistemológico exige que se pergunte: “o que é que, na minha vivência, pode ser explicado por mecanismos naturais, psicológicos, neurológicos ou culturais antes de recorrer a hipóteses sobrenaturais?” Se esta pergunta for evitada (e é apenas isso que o espiritismo faz), o resultado deixa automaticamente de ser conhecimento e passa a ser convicção sentimental(ista). O critério do espiritismo, levado a sério, destrói-se a si mesmo: se tudo pode ser “sabido” pela experiência íntima, nada pode ser verdadeiramente sabido. O verbo saber é de uma austeridade que nega qualquer subjetividade. É um binário: ou sabes ou não sabes. Se sabes, consegues demonstrar, se não sabes, bom… não sabes.
Não querendo ser aborrecida, eu tenho mesmo de fincar o pé. Tanto quanto consigo entender os teus comentários, parece-me que apresentas como método aquilo que, analisado friamente, não passa de filtragem seletiva de dados. Dizes que se recolhem (suponho) largos números de comunicações e que se encontram as convergentes. Mas esse processo, se descrito com precisão epistemológica, é simplesmente isto: sistematização de testemunhos subjetivos mediante critérios arbitrários de coerência. É precisamente o oposto do método científico, cujo valor reside não na confirmação, mas no teste destrutivo, vulgo, na tentativa sistemática de refutar as próprias hipóteses.
Tenho que discordar quando dizes que não há dogmas envolvidos neste processo. Claro que há. Se questionares precisamente “a imortalidade da alma, a reencarnação, a lei de causa e efeito, o progresso moral do espírito” que resta do teu espiritismo? Não tens de acreditar em espíritos para seres espiritista? Então isso é um dogma. Parece-me, e corrige-me se estiver errada, que poderás estar a confundir dogma com pecado ou proibição. Essas crenças que partilhas com os outros espíritas e das quais depende a vossa adesão a essa doutrina (ou a uma das muitas doutrinas espíritas) não têm que informar as vossas decisões no dia a dia. Uma coisa é aquilo em que se acredita outra é aquilo que se faz com o que se acredita. Tem de ser dogmática a crença, no mínimo, em espíritos, senão até eu posso dizer que sou espírita:
– Mas Eva, acreditas na imortalidade da alma?
– Não, eu nem na alma acredito quanto mais.
– Mas então és espírita?
– Pois claro que sou, acreditar em espíritos não é um dogma do espiritismo, eu sou o que me apetecer ser, deixa-me estar cá com as minhas “verdades pessoais”.
Acho que não preciso de te dar mais exemplos do quão incoerente é dizer que não há dogma no espiritismo. Se há uma crença que é condição sine qua non para a tua identificação com o espiritismo, isso é precisamente o dogma do qual dependes para o seres.
Impõe-se-me aqui uma pergunta: em que te baseias para dizeres que “O que a neurociência observa é a correlação, não necessariamente a causa única”? A tua frase distorce o que a investigação científica realmente demonstra. A neurociência não se limita a observar paralelismos entre atividade cerebral e experiência mental. Pelo contrário, observa relações causais diretas, repetidamente testadas e manipuláveis. Qual correlação? Causalidade, se faz favor. Repara: estimular certas áreas do cérebro produz pensamentos e emoções específicos, lesões em regiões definidas eliminam funções cognitivas particulares, há fármacos que alteram neurotransmissores e que por isso modificam o humor, a personalidade e até, imagina, convicções religiosas. A anestesia geral suspende a consciência ao desligar circuitos neurais específicos. Estes factos não são apenas correlações: são provas de dependência causal. Parece-me que estás a tentar insinuar a possibilidade de uma “causa oculta” como um espírito a operar por trás do cérebro. Só que essa hipótese não produz previsões, não é necessária para explicar os dados existentes, não melhora o modelo neurobiológico e não é testável. É, portanto, uma adição metafísica ad hoc, introduzida apenas para preservar uma crença prévia, e não uma inferência razoável baseada em evidência. Lá vamos nós ao dogma.
Ao insinuares que a explicação neurobiológica pode não ser suficiente por não ser “a causa única”, confundes complexidade causal normal (genética, ambiente e história pessoal, entre outros) com a necessidade de introduzir entidades sobrenaturais não demonstradas. A alegação de que “correlação não implica causalidade” torna-se, assim, um pretexto para proteger uma hipótese espiritual, ao ignorares que a ciência, neste caso, já demonstra causalidade. Invocar causas invisíveis que não acrescentam poder explicativo e que não podem ser refutadas é um exemplo clássico do argumento da ignorância, do “espírito das lacunas” e da inversão do ónus da prova. A neurociência não pode provar o que não está lá. A hipótese neurobiológica é simples, preditiva, testável e suficiente; a hipótese espiritual não explica nada que o modelo científico não explique e só subsiste quando se abdica do rigor científico. Incomoda-me esta frase porque me parece apenas um mecanismo retórico para manter intacta uma crença metafísica.
Na ciência, a posição padrão é metodologicamente naturalista: postulam-se explicações que fazem uso de causas dentro do reino observável e testável até que surjam razões muito fortes que justifiquem o recurso a entidades não-falíveis e não-observáveis. Isso nunca aconteceu. E isto não é dogma, é a regra prática que torna possível o progresso científico.
A apreciação histórica de Kardec, que fazes é sensata num plano historiográfico: para o seu tempo, comparativo e sistemático, o método de Kardec revelou um esforço por organização intelectual de fenómenos que muitos consideravam superstição. Cabe aos historiadores das ideias reconhecer isso. No entanto, o facto de um método ter sido útil ou inovador para um contexto social passado não converte automaticamente o seu resultado em ciência moderna. Os critérios de cientificidade evoluíram: controlo experimental, cegamento quando possível, grupos de controlo, documentação replicável, análise estatística e revisão por pares são exigiências que surgiram precisamente porque reduzem o erro humano. A ausência desses elementos em investigações do século XIX não é um erro moral de Kardec, é uma limitação metodológica. Quanto a mim, isto significa que as conclusões por ele retiradas não gozam do estatuto de teorias científicas no sentido contemporâneo. Na verdade, mal se consequem qualificar para os mínimos olímpicos da hipótese.
Eis o que me incomoda: que os espiritistas ou kardecistas (qualquer que seja a nomemclatura com que te identifiques) tenham dado a mão a Kardec no século XIX e prefiram manter o braço esticado no tempo em vez de reverem a hipótese postulada à luz de uma metodologia científica atual. Porquê?
Que aconteceria se em vez de retirar só o que lhe interessa, Kardec tivesse analisado os dados todos? Esquece Kardec, porque é que os espíritas não o fazem agora? Que vos impede de utilizar o método científico agora? Se consegues demonstrar “a imortalidade da alma, a reencarnação, a lei de causa e efeito, o progresso moral do espírito”, eu ofereço-me como tributo. Em vez dos Jogos da Fome, fazemos os Jogos do Espiritismo. Deixa-me reunir uma equipa de céticos e vamos ter contigo (e com a equipa de espíritas que quiseres reunir), de mente aberta. Desde que nos deixes estabelecer os critérios de investigação (que serão inequivocamente científicos), nada nos deixaria mais felizes. Recolhemos todos os dados que nos forem possível recolher, apresentamos as descobertas que houver a apresentar e submetemo-las ao escrutínio de pares. A mim soa-me incrível. Perdoa-me o humor mas: Nobel Prizes galore.
Continua?







