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Descrente

NOTA: Este texto é da autoria de João Nascimento.

Seria talvez, à primeira vista, desnecessário começar este artigo a afirmar que sou ateu.

Na verdade, receio estar a ser extremamente redundante, pois já declarei e afirmei a minha postura individual na vida, quando se trata da falta de crença numa divindade, em contos de fadas ou no sobrenatural, muitas e muitas vezes anteriormente. Além disso, embora Spinoza tenha de certa forma dado início à ideia de que Deus é tudo, mas não é nada ou ninguém em particular – alguns poderão contestar isto -, não sou alguém que goste de rótulos, e por essa razão, não concordo muito com a existência da palavra Ateu; não existe uma palavra especial para representar alguém que não acredite no Pai Natal, ou no Coelho da Páscoa, ou na Fada dos Dentes, por exemplo.

A palavra existe, contudo, e usá-la-ei também, mas não poderão dizer nada mais sobre a minha pessoa para além da óbvia descrença na dimensão do sobrenatural. Estou cansado de tudo o que se diz sobre o ateísmo por este mundo fora. A palavra é automaticamente correlacionada com o mal, cujo significado poderia ser debatido por séculos, filosoficamente falando. Assim como os crentes, os descrentes não podem ser generalizados. As pessoas são diferentes, evoluímos assim.

Nesta história, em vez de um ateu, vou referir-me a mim e a outros da mesma índole como Descrente(s). Esta é a minha definição de ateísmo – não acreditar -, então suponho que não seja um mau rótulo para mim, de todo.

Quando digo que sou um descrente, não quero dizer apenas que não sou Mórmon ou Metodista, ou mesmo que não sou Cristão ou Budista. Estas parecem-me ser divisões e subdivisões relativamente insignificantes da crença. Quero dizer, efectivamente, que não acredito em nenhum Deus que já tenha sido fabricado ou inventado, em qualquer doutrina que já tenha sido reivindicada como revelada, em qualquer esquema de imortalidade que já tenha sido postulado, em qualquer credo que já tenha sido inventado por uma mente humana.

Sejamos estupidamente honestos aqui. Sempre houve homens e mulheres sem o dom da fé. Eles não precisam dela, não a desejam, e provavelmente nem sequer saberiam o que fazer com ela se a possuíssem. Eles, os descrentes, aparentemente não são menos inteligentes do que os fiéis, e não são menos justos. Determinar o número exacto de tais indivíduos no mundo, apresenta-se como uma tarefa dolorosamente complexa. No entanto, é inegável que a sua presença se faz notar de forma mais acentuada em contextos sociais onde o esclarecimento intelectual parece ser mais proeminente. Como eles não têm organização nem credos, obviamente não podem ter um porta-voz oficial. No entanto, pode-se confiar em qualquer um deles para falar, de certa forma, por todos eles, por todos os descrentes. Como os espiritualistas, ou religiosos, os descrentes, onde quer que se encontrem, são de uma natureza e de uma linguagem. No entanto, não posso pretender representar mais do que uma única perspectiva de descrença. Não esquecer do principal princípio de um Descrente, contudo; não acreditar.

Não considero alguém que tenha fé que possua algum dom, ou que possua algo biologicamente especial. Considero a fé, antes, como um mecanismo de sobrevivência de uma fase anterior do pensamento; em resumo, como uma forma de superstição. Ela, e não aquilo que sou forçado a nomear como descrença, parece-me ser altamente negativa. Ela refuta a razão, e nega evidências, no sentido de insistir em introduzir elementos que não provêm de factos comprovados, mas da imaginação e desejos de homens e mulheres mortais.

A descrença não nega a razão, e obedece o mais fielmente possível às evidências baseadas em factos.

Em relação aos deuses, constatei que existiram inúmeros; contudo, os nomes da maioria encontram-se enterrados no vasto mosaico a que chamamos civilização. Não me parece haver uma boa razão para acreditar que alguns deles são falsos, e alguns deles, ou apenas um deles, são verdadeiros, ou é verdadeiro. Mais uma vez, cada um foi criado por imaginações e desejos de homens que não podiam explicar o comportamento do universo de qualquer outra maneira satisfatória. Todavia, nenhum deus satisfez os seus adoradores para sempre. Oh, não! Mais cedo ou mais tarde, eles perceberam que os atributos outrora atribuídos a ele, ou a eles, como egoísmo, luxúria ou vingança, são indignos das estruturas morais que os homens evoluíram entre si.

Considerando esta reflexão, sem a rotular como uma verdade absoluta, testemunhamos o lento declínio da divindade, independentemente da duração da fidelidade dos seus seguidores à sua veneração. Quando se trata do deus que ainda encontra lealdade entre os homens, mesmo após eras de escrutínio e análise, é notável que quase nada, exceto o seu nome, perdurou sem alterações. Os seus atributos foram modificados repetidamente, transformando-o numa entidade divina quase irreconhecível. O argumento de que apenas a concepção do deus foi alterada, mantendo intacta a sua essência, não invalida esta constatação. É pela sua concepção que ele é compreendido, enquanto a sua verdadeira essência permanece inalcançável para o discernimento humano. Poderia favorecer, de entre as diversas divindades, aquele Deus que me transparece ter sido mais rigorosamente depurado de traços que vejo como impuros.

Contudo, baseio essa preferência, evidentemente, em critérios moldados pela observação das atitudes humanas.

Se um deus foi criado à imagem de desejos sujos ou puros não importa muito. A diferença apenas prova que diferentes homens desejaram deuses, e forneceram-se os deuses que conseguiram conceber. Por trás de todas as suas invenções, ainda jaz o grande abismo da ignorância. Não há evidência confiável quanto à existência absoluta de um deus.

Ao considerar a natureza da revelação, fica claro que ela leva a evidência além dos limites do tangível. Todos os profetas juram que um deus fala através deles, e ainda assim preveem apenas contradições. Mais uma vez, os homens devem escolher de acordo com os seus próprios princípios, ou valores morais. Que uma revelação foi anunciada há muito tempo torna difícil examiná-la, claro, mas não atesta de outra forma a sua solidez moral de maneira nenhuma. Que alguma doutrina revelada tenha durado séculos, e respondido às necessidades de muitas gerações, prova que é o tipo de doutrina que sobrevive e satisfaz, mas, mais uma vez, não que seja divina de forma alguma.

Doutrinas seculares que se mostraram perfeitamente falsas também perduraram e satisfizeram alguém, em algum lugar. Se a crença num deus tem que partir da premissa de que ele existe, a crença em revelação primeiro tem que partir da presunção de que um deus existe, e depois ir mais longe na suposição de que ele comunica a sua vontade a certos e determinados homens apenas, especiais e únicos. Mas ambas são meras conjecturas. Nenhuma delas, no actual estado do conhecimento, é capaz de fornecer alguma evidência.

Ponderemos por um instante a hipótese de um deus efectivamente existir, de natureza masculina, e consideremos que ele de facto comunica o seu intento a algum dos seres por ele criados e moldados. Quem, dentre de essas criaturas, teria a capacidade de interpretar tal dialecto divino? Quem teria a habilidade de registar tal mensagem num bocado de papiro? E quem ostentaria a coragem de persuadir os seus pares de que fora o eleito, e que eles deveriam reconhecê-lo como legítimo? O máximo a que se poderiam comprometer seria confiar em duas suposições, e pôr à prova a mensagem revelada através da sua sintonia com os seus devaneios e expectativas. Tal conclusão não é atingida sem um mergulho da lógica no domínio da conjectura, novamente. O que se evidencia é a profunda semelhança dos seres humanos em todos os cantos do mundo. Todos partilham das mesmas estruturas, dos mesmos órgãos, das mesmas glândulas, mas em distintas escalas e formas. Com tantas semelhanças, tendem naturalmente a convergir em determinadas aspirações fundamentais.

Um desejo que constantemente inquieta a consciência humana é a aspiração por uma existência após a morte. A explicação não é intrincadamente complexa. Os homens vivem de forma tão efémera que os seus diminutos planos transcendem amplamente a sua capacidade de os concretizar, e estão cientes disso — eu estou consciente. Eles veem-se abruptamente interrompidos antes que a sua intrínseca vontade de viver se extinga. De forma bastante natural, almejam perdurar, e, na sua condição humana, creem nas probabilidades de sobrevivência. Todavia, as suas aspirações não oferecem qualquer evidência concreta. Um desejo não constitui prova de nada além do próprio desejo. Ainda que adoptado por milhões, continua a ser apenas uma aspiração. Mesmo se diversas culturas o expressarem, ele persiste como um simples anelo. Que seja defendido pelo mais sábio com tanta intensidade quanto pelo mais ingénuo, ele ainda se mantém como mero desejo.

Aquele que proclama deter o conhecimento de que a imortalidade é um facto concreto, na realidade, está simplesmente a alimentar a esperança de que tal o seja. E aquele que postula, como frequentemente os homens o fazem, que a vida seria desprovida de sentido sem a imortalidade, pois esta confere, de forma singular, significado ao destino humano, deve primeiramente argumentar — algo que homem algum fez de forma deveras convincente até então — que a vida possui um propósito inequívoco, e que é equitativa. Não estou persuadido por nenhum destes dois pontos. Embora esteja, creio eu, versado em todos os argumentos, não encontro nenhum que se destaque particularmente em relação aos demais. Tudo o que percepciono é que o anseio pela imortalidade é ubíquo, e que certas concepções de imortalidade geradas por este desejo têm sido mais amplamente aceites do que outras. Nas religiões que apresentam tais perspectivas, percebe-se uma compreensão mais profunda dos anseios humanos do que em outras. Entretanto, não lhes posso conceder um estatuto superior no que toca à veracidade das doutrinas. A verdade, em minha opinião, representa o alvo intelectual máximo ao qual todos deveriam visar.

Muitos crentes, segundo me contam, têm as mesmas dúvidas e, ainda assim, possuem a peculiar aptidão de relegar as suas incertezas para segundo plano, imergindo fervorosamente na comunhão dos fiéis. Não consigo verdadeiramente compreender este conceito. Tanto quanto percebo, tais crentes são movidos pelos seus desejos ao ponto de permitirem que estes governem, não apenas o seu comportamento, mas também os seus pensamentos, o que acaba por deturpar, ou envenenar, as relações humanas. Os desejos de um descrente têm, aparentemente, menos influência sobre a sua razão.

Talvez isto seja apenas outra forma de dizer que o seu desejo é ser o mais razoável possível.

Um descrente honesto não consegue forçar-se a crer contra o seu discernimento, tal como não pode escapar da força gravitacional que lhe permite andar na superfície do planeta terra. Não me sinto compelido a ter fé. Talvez, em determinado momento, tenha achado sensato calar-me, reconhecendo que os seres humanos, por mais ingénuos que possam ser, mostram-se inflexíveis nas suas convicções; contudo, actualmente, com a multiplicidade de crenças existentes, até um céptico se pode expressar com confiança sem temer julgamentos ou represálias mortais.

Assim, devo responder a algumas questões frequentemente colocadas aos descrentes. Por exemplo, não me persuade o facto de que muitos homens sábios reflectiram sobre questões sobrenaturais, e se converteram à crença? De todo, não. Com todo o respeito devido aos deuses, revelações e imortalidade, nenhum homem é significativamente mais sábio do que os seus semelhantes, ao ponto de ter o direito de insistir que eles o sigam para regiões sobre as quais todos os homens parecem igualmente ignorantes. A descrença, na minha perspectiva, não é ignorante nem desprovida de humanidade. Está simplesmente enraizada na coragem, e não no medo. A crença ainda é um predicado daquelas antigas sociedades que, na ausência de conhecimento, povoaram as florestas com sátiros e fadas, os mares com monstros fantásticos, e as extremidades da terra com canibais deformados. Assim, os mais derrotistas entre os crentes povoaram o vazio com bruxas e demónios, e os mais esperançosos entre eles preencheram-no com anjos e deuses. Existem mitos vivos, lendas reconfortantes, esperanças consoladoras. Mas elas têm, como o descrente as vê, autoridade que não ultrapassa a da poesia, mesmo a um nível literário épico. As crenças, tal como os gostos nesse sentido, podem e de facto diferem.

De entre os perigos da tendência aleatória da natureza, o descrente não procura segurança em qualquer providência vigilante. Embora saiba que o conhecimento, a ciência, é imperfeito, ele deposita a sua confiança nestes conceitos. Cada descoberta de uma nova verdade traz-lhe genuína alegria. Ele constrói-se, tanto quanto pode, com base na verdade, e fortalece-se com ela. Ao fazê-lo, nunca cai no domínio ignorante da superstição, mas, em vez disso, torna-se mais robusto e extasiado na sua coragem. Ele pode ainda ter muitos medos, mas não os multiplica na sua imaginação e, em seguida, combate-os com os seus desejos e orações, sendo este um atributo quase único dos crentes.

Entendo que muitos, tal como eu, que optam pelo cepticismo, se sintam algo perdidos na procura por um sentimento de pertença. No entanto, ser Ateu não é simplesmente seguir uma moda, ou aderir a uma tendência popular. O Ateísmo é uma postura intelectualmente robusta que foi, e em certos lugares ainda é, amplamente criticada e condenada. Valorize a capacidade de duvidar e, se como eu e tantos outros, tem um espírito naturalmente inquisitivo, continue a evoluir na sua compreensão. Não acredito, sou Ateu.

João Nascimento