O Senhor Jesus Ressuscitado viajava, no Domingo de Páscoa, pelas casas da aldeia a recolher o ósculo e a esmola dos devotos. Onde não chegava antes do anoitecer ia no dia seguinte, com desgosto dos paroquianos que o aguardavam. A bênção valia igual, é certo, mas perdia-se o tempo da espera e era diferente. Por isso, para não contrariar os mesmos, todos os anos mudava o itinerário.
Transportava-o o sacristão, que o entregava ao vigário, em cada paragem, e era acompanhado por devotos que aliviavam a alma e recolhiam esmolas suplementares para os santos que exornavam a igreja local. Um garoto levava a caldeirinha de água benta que passava ao sacristão, enquanto o padre se ocupava da cruz, e a recolhia depois deste despachar a tarefa e de se ocupar do hissope, num movimento de rotação, a aspergir com vigor, em cada lar, um círculo protetor das investidas do demo, bênção que não deixaria de acautelar também o vivo que morava na corte, por baixo.
Era um tempo em que não havia vírus nem pneumonias atípicas, as pessoas viviam porque Deus queria e finavam-se quando o Senhor era servido, sem intromissão do médico a estorvar a divina vontade de as chamar.
Em todas as casas as vitualhas aguardavam a visita ao lado de uma garrafa de jeropiga rodeada de cálices. Entrava primeiro o padre, seguido do sacristão e do garoto que conduzia a caldeirinha. Aguardavam nas escadas os outros, para depois os revezarem. Genufletiam-se os da casa, por ordem cronológica, para beijar o pé do Jesus até chegar ao chefe de família que era o último a ajoelhar e o primeiro a soerguer-se. Borrifada de água benta a habitação, recolhida a esmola destinada ao Ressuscitado, a mais substancial, o padre bebia um trago de jeropiga e mordiscava um naco de pão-de-ló, por consideração, enquanto o sacristão aviava o cálice, de um sorvo, e se desforrava nos bolos. Às vezes demoravam-se mais um pouco para que o senhor padre rezasse uns responsos a rogo, geralmente por alma de quem tinha deixado com que pagar o latim.
Havia no séquito que aguardava nas escadas um homem por cada santo que ornava os altares da igreja, disponível para arrecadar a oferenda. Assim, enquanto o padre e o sacristão desciam, subiam eles para recolher, se a houvesse, a esmola que a cada santo cabia, consoante as posses e a devoção dos anfitriões. Creio que os turnos de acesso se estabeleciam em função do espaço e não da liturgia.
Mais de metade da paróquia percorrida, com o padre e o sacristão aguentando o múnus a pão-de-ló e a fé regada a jeropiga, a vingar-se o último, a conter-se o primeiro, a acelerarem todos para as casas que faltavam, o sacristão avaliou mal a distância que o separava das escadas na última casa onde entraram, abalroou o garoto que transportava a caldeirinha que logo a soltou, verteu a água e arremessou o hissope contra a parede. Foi grande o reboliço enquanto o sacristão e a cruz varreram enrolados as escadas sem que alguém do séquito lhes deitasse a mão, impávidos, como se evitassem estorvar se acaso fosse promessa a queda.
O padre, vermelho de raiva e da jeropiga, aguentou-se nas pernas e conteve a língua, ao cimo das escadas, enquanto, sem largar a cruz, se despenhou por entre as alas de acompanhantes o sacristão. Este recuperou rapidamente o alinho e endireitou a cruz, sem ninguém se aleijar, Deus seja louvado, e o padre despachou logo um paroquiano com uma jarra de vidro a caminho da igreja a sortir-se de água benta, com o aviso de se apressar, estava a fazer-se tarde, faltava ainda muito povo para aviar. Se recriminações houve ficaram reservadas para a discrição da sacristia.
No dia seguinte as conversas da aldeia começavam todas por Deus me perdoe, seguidas de persignações apressadas e de risos amplos, terminando em ansiedade pelo pecado cometido ou pelo temor da desobriga, mas ninguém resistiu a contar o sucedido e a comentá-lo, sendo mais forte a tentação do que a piedade.
In Pedras Soltas (esgotado) – Ed. 2006 (Ortografia atualizada)
1885, GUERRA JUNQUEIRO EXPLICA «COMO SE FAZ UM MONSTRO» (EXCERTO DE “A VELHICE DO PADRE ETERNO”)
II
Um dia o pai, um bravo aldeão,
Chamou-o ao pé de si, e disse-lhe:
«João:
À força de trabalho e à força de canseiras,
A moirejar no monte e a levar gado às feiras,
Consegui juntar ao canto do baú
Alguns pintos. Vocês são dois rapazes; tu,
Além de ser mais novo, és mais inteligente.
Vou botar-te ao latim; quero fazer-te gente.
Hás-de me dar ainda um grande pregador.
Hoje padre é melhor talvez que ser doutor.
Aquilo é grande vida; é vida regalada.
Olha, sabes que mais? manda ao diabo a enxada.
Aquilo é que é vidinha! aquilo é que é descanso!
Arrecada-se a côngrua, engrola-se o ripanço,
Arranja-se um sermão aí com quatro tretas,
Vai-se escorropichando o vinho das galhetas,
E a missa seis vinténs e doze os baptizados.
Depois, independente e sem nenhuns cuidados!
Olha, João, vê tu o nosso padre cura:
É, sem tirar nem pôr, uma cavalgadura.
Vi-o chegar aqui mais roto que os ciganos;
Pois tem feito um casão em meia dúzia d’anos.
Isto é desenganar; padres sabem-na toda…
É o sermão, é a missa, é o enterro, é a boda.
É pinga da melhor, e tudo quanto há!
Quando o abade morrer hás-se vir tu p’ra cá.
Despacha-te o doutor nas cortes; quando não
Votamos contra ele, e foi-se-lhe a eleição
Mas que é isso, rapaz? Nada de choradeira!
É tratar da merenda, e quinta ou sexta-feira
Toca pró seminário. Eu quero ir para cova
Só depois de te ouvir cantar a missa nova.»
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