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Dia: 12 de Fevereiro, 2018

12 de Fevereiro, 2018 Carlos Esperança

A visita pascal – Crónica pia

O Senhor Jesus Ressuscitado viajava, no Domingo de Páscoa, pelas casas da aldeia a recolher o ósculo e a esmola dos devotos. Onde não chegava antes do anoitecer ia no dia seguinte, com desgosto dos paroquianos que o aguardavam. A bênção valia igual, é certo, mas perdia-se o tempo da espera e era diferente. Por isso, para não contrariar os mesmos, todos os anos mudava o itinerário.

Transportava-o o sacristão, que o entregava ao vigário, em cada paragem, e era acompanhado por devotos que aliviavam a alma e recolhiam esmolas suplementares para os santos que exornavam a igreja local. Um garoto levava a caldeirinha de água benta que passava ao sacristão, enquanto o padre se ocupava da cruz, e a recolhia depois deste despachar a tarefa e de se ocupar do hissope, num movimento de rotação, a aspergir com vigor, em cada lar, um círculo protetor das investidas do demo, bênção que não deixaria de acautelar também o vivo que morava na corte, por baixo.

Era um tempo em que não havia vírus nem pneumonias atípicas, as pessoas viviam porque Deus queria e finavam-se quando o Senhor era servido, sem intromissão do médico a estorvar a divina vontade de as chamar.

Em todas as casas as vitualhas aguardavam a visita ao lado de uma garrafa de jeropiga rodeada de cálices. Entrava primeiro o padre, seguido do sacristão e do garoto que conduzia a caldeirinha. Aguardavam nas escadas os outros, para depois os revezarem. Genufletiam-se os da casa, por ordem cronológica, para beijar o pé do Jesus até chegar ao chefe de família que era o último a ajoelhar e o primeiro a soerguer-se. Borrifada de água benta a habitação, recolhida a esmola destinada ao Ressuscitado, a mais substancial, o padre bebia um trago de jeropiga e mordiscava um naco de pão-de-ló, por consideração, enquanto o sacristão aviava o cálice, de um sorvo, e se desforrava nos bolos. Às vezes demoravam-se mais um pouco para que o senhor padre rezasse uns responsos a rogo, geralmente por alma de quem tinha deixado com que pagar o latim.

Havia no séquito que aguardava nas escadas um homem por cada santo que ornava os altares da igreja, disponível para arrecadar a oferenda. Assim, enquanto o padre e o sacristão desciam, subiam eles para recolher, se a houvesse, a esmola que a cada santo cabia, consoante as posses e a devoção dos anfitriões. Creio que os turnos de acesso se estabeleciam em função do espaço e não da liturgia.

Mais de metade da paróquia percorrida, com o padre e o sacristão aguentando o múnus a pão-de-ló e a fé regada a jeropiga, a vingar-se o último, a conter-se o primeiro, a acelerarem todos para as casas que faltavam, o sacristão avaliou mal a distância que o separava das escadas na última casa onde entraram, abalroou o garoto que transportava a caldeirinha que logo a soltou, verteu a água e arremessou o hissope contra a parede. Foi grande o reboliço enquanto o sacristão e a cruz varreram enrolados as escadas sem que alguém do séquito lhes deitasse a mão, impávidos, como se evitassem estorvar se acaso fosse promessa a queda.

O padre, vermelho de raiva e da jeropiga, aguentou-se nas pernas e conteve a língua, ao cimo das escadas, enquanto, sem largar a cruz, se despenhou por entre as alas de acompanhantes o sacristão. Este recuperou rapidamente o alinho e endireitou a cruz, sem ninguém se aleijar, Deus seja louvado, e o padre despachou logo um paroquiano com uma jarra de vidro a caminho da igreja a sortir-se de água benta, com o aviso de se apressar, estava a fazer-se tarde, faltava ainda muito povo para aviar. Se recriminações houve ficaram reservadas para a discrição da sacristia.

No dia seguinte as conversas da aldeia começavam todas por Deus me perdoe, seguidas de persignações apressadas e de risos amplos, terminando em ansiedade pelo pecado cometido ou pelo temor da desobriga, mas ninguém resistiu a contar o sucedido e a comentá-lo, sendo mais forte a tentação do que a piedade.

In Pedras Soltas (esgotado) – Ed. 2006 (Ortografia atualizada)

12 de Fevereiro, 2018 Carlos Esperança

Como se faz um monstro

1885, GUERRA JUNQUEIRO EXPLICA «COMO SE FAZ UM MONSTRO» (EXCERTO DE “A VELHICE DO PADRE ETERNO”)

II
Um dia o pai, um bravo aldeão,
Chamou-o ao pé de si, e disse-lhe:
«João:
À força de trabalho e à força de canseiras,
A moirejar no monte e a levar gado às feiras,
Consegui juntar ao canto do baú
Alguns pintos. Vocês são dois rapazes; tu,
Além de ser mais novo, és mais inteligente.
Vou botar-te ao latim; quero fazer-te gente.
Hás-de me dar ainda um grande pregador.
Hoje padre é melhor talvez que ser doutor.
Aquilo é grande vida; é vida regalada.
Olha, sabes que mais? manda ao diabo a enxada.
Aquilo é que é vidinha! aquilo é que é descanso!
Arrecada-se a côngrua, engrola-se o ripanço,
Arranja-se um sermão aí com quatro tretas,
Vai-se escorropichando o vinho das galhetas,
E a missa seis vinténs e doze os baptizados.
Depois, independente e sem nenhuns cuidados!
Olha, João, vê tu o nosso padre cura:
É, sem tirar nem pôr, uma cavalgadura.
Vi-o chegar aqui mais roto que os ciganos;
Pois tem feito um casão em meia dúzia d’anos.
Isto é desenganar; padres sabem-na toda…
É o sermão, é a missa, é o enterro, é a boda.
É pinga da melhor, e tudo quanto há!

Quando o abade morrer hás-se vir tu p’ra cá.
Despacha-te o doutor nas cortes; quando não
Votamos contra ele, e foi-se-lhe a eleição
Mas que é isso, rapaz? Nada de choradeira!
É tratar da merenda, e quinta ou sexta-feira
Toca pró seminário. Eu quero ir para cova
Só depois de te ouvir cantar a missa nova.»