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Dia: 20 de Abril, 2014

20 de Abril, 2014 Ludwig Krippahl

Treta da semana (passada): a prova.

No blog Senza Pagare há um post que explica: «Como provar que o Catolicismo é a forma verdadeira do Cristianismo» (1). É fantástico. De um arremesso resolve uma carrada de perguntas que há milénios suscitam discussão, por vezes com violência. Se há vida depois da morte, quem criou o universo, se existem deuses, quais e o que pensam da contracepção. Tudo isso respondido «uma forma simples e rápida». Primeiro, resolve-se o problema de provar que é o cristianismo a única religião verdadeira: «Maomé ou Buda ressuscitaram dos mortos? Não. Portanto isto termina muito rapidamente o debate sobre as religiões do mundo.» Tau! Toma que já levaste.

Depois é preciso resolver o problema das «36,000 denominações que entram em conflito sobre as crenças e moral cristã». Trinta e seis mil denominações cristãs que não são católicas. Como é que podemos rapidamente saber que a católica é a verdadeira? É também muito simples. «Comecem por Martinho Lutero. Lutero fez algum milagre? Fez alguma profecia que veio a acontecer? Não, nada disso.» E já está. Começa-se por Lutero, que vai logo fora porque não fez milagres, e as restantes 35,999 denominações vão fora também por arrasto. Sobra só a católica que, segundo o autor, podemos concluir ser verdadeira porque enquanto Lutero andava sentado nas mãos sem milagrar coisa nenhuma «aconteceu o milagre de Nossa Senhora de Guadalupe (um milagre público) a S. João Diogo e a milhões de Astecas», já para não falar no «missionário Católico S. Francisco de Xavier» que, por essa altura, «estava a pregar miraculosamente aos povos da Índia, Indonésia, etc. nas suas línguas maternas sem as estudar.» Temos também muitos milagres públicos reivindicados pelos católicos nos últimos 100 anos, como as aparições de Maria em Fátima, a água mágica de Lourdes e o Padre Pio que sangrou das mãos e dos pés, um milagre de utilidade dúbia mas aparentemente impressionante.

É um curriculum difícil de superar. Assim de momento ocorre-me apenas uma outra divindade que possa concorrer com Jesus e os seus dois parceiros co-substantivos em matéria de milagres recentes e ressureição. Falo, naturalmente, de John Frum (2). Tal como Jesus, John Frum também fez o milagre de viajar do mundo dos mortos, o mundo dos deuses e dos antepassados, para o nosso plano mortal. Tal como o católicos, também os seguidores de John Frum foram testemunhas de muitos milagres que não conseguiam explicar, e em pleno século XX. É difícil decidir qual dos dois será mais plausível, mas este post que traduziram para o Senza Pagare contrasta marcadamente com a abordagem normalmente enfadonha da teologia e da filosofia da religião. É uma espécie de autoclismo argumentativo. Com uma puxadela vai-se tudo embora. Todas as religiões não cristãs, dezenas de milhares de seitas cristãs não católicas e tudo o resto. Fica apenas o catolicismo, um pequeno resquício desta diversidade toda ainda agarrado à loiça. Demonstra também quão pequena é a diferença que separa o crente do ateu. Metaforicamente, o ateu apenas se distingue do crente por dar uma passagem final com a piaçaba.

PS: Calhou, por acaso ou por mão divina (e se não me falham as contas), ser esta a treta da semana com o número 365. Foram sete anos de rubrica semanal regular, à parte de alguns atrasos quando o trabalho aperta mais. Aqui fica o link para o primeiro post da série, a 22 de Abril de 2007: Treta da semana: o meu horóscopo. Bom resto de Páscoa e desejos de muitas amêndoas e ovos de chocolate para celebrarem o dia em que os judeus pintaram as ombreiras das portas com sangue de carneiro para Deus, no seu infinito amor, só matar os filhos dos egípcios, louvado seja.

1- Senza Pagare, Como provar que o Catolicismo é a forma verdadeira do Cristianismo (Dica: Milagres).
2- Wikipedia, John Frum, e Damn Interesting, John Frum and the Cargo Cults

Em simultâneo no Que Treta!

20 de Abril, 2014 Carlos Esperança

A missa na aldeia (Crónica)_1

Os sinos da igreja intimavam os paroquianos para a missa. O templo ia enchendo, homens à frente, mulheres atrás, os menos pobres nas primeiras filas, sempre conforme à hierarquia e à tradição. Uns minutos antes das nove ouvia-se a moto do padre Farias que já tinha despachado a missa das oito em Casal de Cinza e ainda o esperava a das dez noutra paróquia.

Entrava sempre com o ar mal disposto de quem sentia o penoso serviço de Deus como condenação, em paróquias pobres, de gente rude, sem instrução nem banho. Ainda há dois dias ali estivera para ouvir em confissão os pecadores mais aflitos ou com hábitos mais frequentes da eucaristia. Não tardariam a chamá-lo de novo para levar o viático a um desgraçado que já não descolava da cama nem para a santa missa.

O latim deixava estarrecidos os crentes pelo carácter esotérico que assumia aos castos tímpanos de quem até o português, para lá de algumas centenas de palavras, soava a latim ou parecia língua estrangeira criada por Deus para confundir os homens das obras na Torre de Babel.

A homilia era breve e as ameaças repetidas. Trabalhar ao domingo deixava o Senhor furioso, comer carne à sexta-feira era veneno para a alma de quem não tivesse a bula, a côngrua andava atrasada por parte de alguns paroquianos, a trovoada tinha dizimado as searas, era certo, mas a culpa não lhe cabia a ele, padre Faria, que cuidava das almas, a moto não se movia a água nem o mecânico a consertava a troco da absolvição dos pecados. Mas o mais injurioso para Deus, e arriscado para a alma, era trair a castidade pela qual a Santa Madre Igreja tanto zelava.

Dita a missa, antes de deixar sair os paroquianos, fazia avisos: pedia a quem encontrasse uma burra que avisasse o dono, lembrava às freguesas que as crianças podiam ficar em casa se não se calassem na missa, que todos os cristãos podiam batizar um recém nascido em perigo de vida, ‘in articulo mortis’, sem necessidade de estafeta a exigir a sua presença, com risco de estar ausente ou de lhe minguar a disponibilidade.

Recordo as pias mulheres, embiocadas no xaile e lenço negro, a debitar ave-marias, sem me ocorrer que vivessem o drama de D. Josefa que Eça nos apresenta «toda sossegada, toda em virtude, a rezar a S. Francisco Xavier – e, de repente, nem ela soube como, põe-se a pensar como seria S. Francisco Xavier, nu, em pelo».

Já não me surpreende que a Ti Celesta, transida de frio e carregada de fome, de fé e de filhos, sempre com aquela tosse que irritava o padre e merecia das outras mulheres o diagnóstico de tísica, se debatesse com o mesmo problema da D. Josefa de «O crime do padre Amaro», talvez em situações mais graves.

A bondosa D. Josefa acrescentava à nudez fantasiada do santo outro pecado que a torturava: «quando rezava, às vezes, sentia vir a expetoração; e, tendo ainda o nome de Deus ou da Virgem na boca, tinha de escarrar; ultimamente engolia o escarro, mas estivera pensando que o nome de Deus ou da Virgem lhe descia de embrulhada para o estômago e se ia misturar com as fezes! Que havia de fazer?”
Com a Celeste a consumição era maior, embora alheia à metafísica. A tosse e a expetoração apoquentavam-na durante a eucaristia e o padre Farias já a tinha ameaçado de lhe recusar o sacramento apesar da devoção com que cumpria os deveres canónicos e a regularidade com que paria um filho por ano.

Mal o corpo e o sangue do Cristo lhe eram pousados na língua, em forma de alva rodela de pão ázimo, logo as secreções lhe acudiam à boca parecendo acalmar à medida que o alimento espiritual aconchegava o trato gastrointestinal, acalmando o jejum e o catarro, seguindo o curso fisiológico.

Depois, enquanto o padre desaparecia sobre a moto, entre nuvens de pó, ficavam os homens a falar da vida enquanto as mulheres regressavam a casa a fazer contas à vida e os garotos enganavam a fome com uma bola de trapos, sem pensar na vida.