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Em cheio, na palha.

Num texto sobre o matemático, cosmólogo e padre Georges Lemaître, o Alfredo Dinis argumenta ser errada a «tese de que quem tem uma fé religiosa não está interessado na verdade científica, nem sequer tem competências para fazer avançar a ciência, porque a fé não deixa pensar, ter espírito crítico e criativo.»(1) Concordo. Ter fé numa coisa não impede que se tenha espírito crítico acerca de outra. No entanto, o Alfredo apresenta este caso como «incómodo para muitas pessoas, sobretudo as que continuam a insistir que há uma incompatibilidade radical entre ciência e religião, e que a ciência avança tanto mais depressa quanto mais depressa se abandonar a religião.» Eu sou da opinião de que há essa incompatibilidade radical e de que a ciência avança melhor sem religião. Mas o exemplo do Lemaître não é relevante para esta posição, porque a incompatibilidade das duas abordagens não impede que a mesma pessoa seja capaz de ambas. É como fumar e fazer pesca submarina.

O Alfredo alegou várias vezes que a ciência permite aferir a verdade de hipóteses testáveis, enquanto a religião decide a verdade das outras hipóteses. Nunca percebi como se pode aferir a verdade de uma alegação, acerca dos factos, que seja impossível de testar. E, a julgar pela diversidade dos dogmas das muitas religiões, não devo estar sozinho nisto. Mas esta diferença, que o Alfredo admite, torna a religião incompatível com a ciência. O problema fundamental é que a ciência não pode aceitar como verdadeira uma alegação que não tenha sido testada com sucesso, enquanto as religiões exigem dos seus adeptos que aceitem pela fé hipóteses que não podem ser testadas ou até que foram testadas e falharam nos testes. O criacionismo, por exemplo, que o Alfredo admite ser contrário à ciência mas que esquece sempre quando fala “da religião”.

Lemaître apenas ilustra que uma pessoa pode aceitar umas hipóteses por fé e avaliar outras com ciência. Não é novidade nenhuma. A mente humana tem uma capacidade extraordinária para ser exigente e criteriosa acerca de algumas alegações enquanto isenta de qualquer cepticismo outras crenças, mais queridas. Ninguém poderia ter uma só religião sem conseguir este feito pois, caso contrário, ou não teria nenhuma ou teria todas.

O que é pertinente e esclarecedor no caso do Lemaître é o papel que a fé católica teve na formulação, compreensão e avaliação deste modelo pela comunidade científica. Absolutamente nenhum. O processo científico, enquanto tal, não recorreu à fé de Lemaître. E, se recorresse, deixava de ser científico, porque o mérito e a utilidade da ciência vêm precisamente da forma imparcial com que esta avalia as hipóteses à luz das evidências e sem o enviesamento de preferências pessoais, tradições, fés e fezadas.

E o Lemaître teve sorte por o seu modelo não ter chocado com os dogmas que a sua religião defendia nessa altura. Caso contrário, provavelmente teria de fazer como Teilhard de Chardin. Para tentar conciliar a sua fé com a teoria da evolução, Teilhard de Chardin deturpou ridiculamente esta teoria e, mesmo assim, ainda arranjou sarilhos com os representantes oficiais da sua religião. Sempre que a fé e as evidências concordam a fé é supérflua para determinar a verdade. E sempre que discordam, a fé é nefasta. Como a ciência exige uma disposição constante para rever e alterar hipóteses perante novas evidências, mais cedo ou mais tarde a fé acaba por ser um empecilho. Investigação científica baseada na fé não leva a lado nenhum. E a fé, no fundo, não precisa da ciência para nada porque está-se nas tintas para a verdade.

A meu ver, a investida do Alfredo estripou violentamente a tese de que quem tiver fé numa alegação é incapaz de avaliar objectivamente qualquer outra. Foi palha por todo o lado. No entanto, o Alfredo nem sequer mencionou o problema mais interessante, que é a incompatibilidade das abordagens em si. Perante uma afirmação acerca dos factos, podemos ter, no máximo, uma destas duas atitudes. Ou tentamos apurar a verdade de forma objectiva e imparcial, ou escolhemos acreditar por fé. Podemos fazer uma coisa para umas alegações e outra para outras, mas não é possível ter fé e manter-se objectivo e imparcial, ao mesmo tempo, acerca da mesma hipótese.

1- Alfredo Dinis, Ciência e religião – o caso do P. Georges Lemaître
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