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Abençoado gavetismo.

Demarcar o conhecimento daquilo que, ilegitimamente, alega ser sabedoria é um problema complexo. Não deve ser possível dar uma receita detalhada e simples que se aplique a todos os casos. Mas há uma diferença fundamental entre o conhecimento e as várias fés, fezadas, religiões, superstições e disparates da moda que se apresentam como “outras formas de saber”. Enquanto o primeiro tenta integrar os dados em explicações que os unifiquem, o resto separa tudo em gavetinhas para disfarçar as inconsistências.

Disto, o criacionismo dá muitos exemplos claros e caricatos. «Que hipóteses tem um grilo voador nocturno de escapar aos dentes do morcego?», pergunta o Mats. «A solução que o Criador inventou como forma de preservar a existência do grilo revela mais uma vez a Excelência Criativa de Deus. Ele construiu o grilo com um detector de morcegos mono-celular conectado ao seu sistema nervoso.»(1) Quem quiser perceber o que originou esta situação quererá considerar todos os dados de que dispõe. Há grilos que se escapam e morcegos que comem grilos. Os grilos que são comidos e os morcegos que morrem à fome deixam de se poder reproduzir. Cada grilo e morcego descende de antepassados parecidos consigo que, obviamente, se conseguiram reproduzir. E assim por diante. Tentar encaixar estes dados leva-nos a hipóteses testáveis, o teste dessas hipóteses revela mais dados e a restrição de manter tudo consistente guia-nos ao conhecimento.

Mas o Mats já julga saber as respostas todas. Foi o menino Jesus e os detalhes estão na Bíblia. Por isso não quer perceber. Quer apenas disfarçar o disparate das premissas isolando-as, para não se notar a inconsistência. Deus teve pena do grilo e deu-lhe um detector de morcegos para o salvar. Que querido. E ao morcego deu o sonar com que caça grilos para comer. Que bonzinho. Desde que ponha cada ideia na sua gaveta não precisa de enfrentar o problema do mesmo deus ter criado ambos, algo que sugere crueldade, estupidez ou uma extraordinária falta de atenção.

Passa-se o mesmo com as medicinas alternativas. Querem um estatuto igual ao da medicina a sério mas sem o inconveniente dos testes rigorosos. Isso de testar é uma coisa à parte, uma modernice da medicina “convencional”. E, tal como nas astrologias e bruxarias, cada um inventa o seu método sem incomodar os outros porque ninguém quer explicações que unifiquem com a ciência coisas como a influência dos astros, a clarividência das cartas e a terapêutica dos cristais. Se fizerem de conta que o conhecimento é apenas uma lista de opiniões isoladas, cada um pode fingir-se perito no que quiser. Afinal, não se pode provar que as vibrações positivas do cristal não desbloqueiem mesmo as energias espirituais dos chakras. Como diria o Sherlock Holmes da nova era, o que não se prova ser falso, por mais disparatado que seja, é a mais pura Verdade.

Mas é pelas religiões que este gavetismo tem maior impacto. Não por ser mais extremo ou ridículo nestas do que é nas outras tretas – nisto andam todas empatadas – mas porque, de todos os disparates, são as religiões que mais gente leva mais a sério. Isto tanto na religiosidade dos criacionistas e fundamentalistas mais crédulos como na dos teólogos e dos crentes que se dizem mais esclarecidos. Os primeiros, se lhes quiserem vender um carro em segunda mão são tão cépticos como qualquer outra pessoa. Mas no que toca a curas milagrosas, santinhos e histórias da carochinha, desde que venham da sua religião engolem tudo. Os religiosos mais doutos tentam disfarçar esses detalhes e engavetam os métodos. A ciência, admitem, serve para conhecer a idade do universo, compreender a geometria do espaço-tempo e fazer vacinas. Mas para saber se Maria era virgem ou se o Papa é infalível tem de ser com a teologia. Como e porquê, nunca se percebe bem. O que importa é pôr cada uma na sua gaveta, porque se vão testar as alegações dos teólogos como testam quaisquer outras nenhuma religião se safa.

Eu não consigo provar que a posição de Marte não afecta a minha carreira profissional, nem que a epilepsia não seja causada por demónios, nem que é falsa a hipótese do criador do universo se ralar com a minha vida sexual. Ainda assim, posso justificar rejeitar estas alegações – e outras afins – porque não encaixam nos dados que tenho nem nas explicações que encontro. Rejeito-as por consistência, tal como rejeito os contos de fadas ou as promessas do Sócrates. Se para aceitar uma hipótese tenho de abrir uma excepção só para ela e avaliá-la por critérios opostos aos que aplico a todas as outras, parece-me mais honesto admitir que essa hipótese não tem fundamento. A sabedoria não se pode reduzir a uma gaveta para cada treta.

* O Mats é capaz de dizer que os morcegos só comem grilos por causa do pecado original, que dantes usavam o sonar para apanhar uvas em pleno voo e que Deus só deu o detector ao grilo à cautela, porque já sabia como era a Eva. Mas isso será apenas mais um exemplo daquilo que quero ilustrar aqui.

1- Mats, O grilo e o seu alarme ultra-sónico

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