Loading

Um Amigo e Pêras

O melhor amigo do meu pai ainda se mantém vivo na minha memória. Era ateu, activista político e considerado um engenheiro civil notável.
Por vários motivos não o posso esquecer: Porque tinha muita paciência comigo; Porque me acarinhava muito (talvez por não ter tido um filho, era pai de duas filhas bem mais velhas do que eu); Porque me explicou coisas que o meu pai não me explicou. Eu era visita constante na sua casa. Havia motivos fortes para isso: Um piano que me atraía e onde eu martelava as teclas, um violino que eu ouvia, pegava mas não me atraía e um carro descapotável onde eu me sentava e sonhava que conduzia. Sua esposa dava aulas particulares de música. Complementava o orçamento familiar em virtude das dificuldades que ele enfrentava constantemente por ser avesso ao regime. Tão avesso foi que volta e meia a PIDE ia a casa prendê-lo. Uma vez ouvi o meu pai contar a um amigo que ele construiu um esconderijo por baixo do monte da lenha na garagem para aí delinear o orçamento possível de forma a família viver enquanto estivesse na prisão. Terminado o esquema de sobrevivência familiar foi-se entregar voluntariamente. Da última vez não voltou vivo, vítima das torturas infligidas.
Um exemplo do seu elevado nível cultural: Numa das noites que ele me acompanhou até casa dos meus avós (nesse tempo eu tinha 7 anos), perguntei-lhe como é que as cegonhas traziam os bebés. Então ele com a sua habitual calma, tanto no falar como no caminhar, foi-me explicando com todos os pormenores o processo desde a concepção até ao nascimento. Fiquei completamente esclarecido e com a certeza que sabia mais que os meus amigos e olhem que nessa altura nós até já sabíamos umas malandrices. Agora, ao lembrar-me de tantas coisas que ele me ensinou fico admirado comigo mesmo pelo facto de sempre o ouvir com atenção e compreender sem ficar constrangido mesmo nos assuntos que envolveram educação sexual, coisa por muitos impensável ainda nos dias de hoje.
Bom, o motivo desta crónica é simples. Apenas contar a troca de galhardetes entre ele e um outro cidadão (ou vilão, pois nessa época era ainda vila).

Todos sabendo o seu ateísmo, numa conversa de rua há um que dispara:
Oh engenheiro, com essas barbas só lhe faltam os cornos para parecer o diabo.
Resposta na ponta da língua: Meu caro pois a si só lhe faltam as barbas!