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ECR 3: Ética, religião e ciência.

O quinto capítulo do livro Educação, Ciência e Religião (ECR) pergunta «Qual o papel das questões éticas na relação entre a ciência e a religião?»(1). A ideia base é consensual: considerações éticas podem abrandar o progresso científico porque a aquisição de conhecimento não é uma prioridade absoluta. É óbvio que a ética deve impor limites à actividade científica. No entanto, os autores desviam a resposta com algumas confusões.

No “aprofundamento” da resposta, uma adaptação de um texto do Miguel Panão, afirmam que «uma ética orientada para o valor fundamental da vida designa-se “bioética”.» Mas, normalmente, “uma ética” refere um sistema normativo, como o utilitarismo, o contratualismo ou o imperativo categórico de Kant, por exemplo. Nesse sentido, a bioética não é uma ética, porque o termo não designa um sistema normativo em particular; designa uma categoria de problemas éticos que surgem do uso de animais em experiências, da bio-tecnologia, do impacto sobre ambiente e questões afins. Desta confusão, defendem ser ilegítimo sacrificar embriões para curar doenças com células estaminais porque «Toda e qualquer vida vale, e esse valor é o mesmo em toda e qualquer circunstância.»

Esta premissa não é nada consensual, mesmo ignorando a restrição implícita – e problemática – de “vida” referir apenas alguns seres vivos, pois por certo não incluem as baratas ou os cogumelos nesta consideração. Criar um embrião num tubo de ensaio e depois sacrificá-lo para obter células estaminais mata esse ser humano. No entanto, se as alternativas são apenas nunca o ter criado ou deixá-lo morrer sem aproveitar as suas células, então a possibilidade de tratar alguém é um bem acrescido sem qualquer perda. Se o embrião pudesse crescer e estivesse a sacrificar a sua vida inteira justificava-se esta objecção. Mas se não tem qualquer hipótese de sobreviver e não há alternativa melhor, esta objecção não tem fundamento.

Acrescentam os autores que a sua “bioética” é necessária para «dignificar a vida humana na forma do embrião, assim como dar sentido ao sofrimento humano». Esta afirmação nem sequer errada consegue estar, porque, para isso, tinha de dizer alguma coisa. “Dignificar” esse embrião é apenas um eufemismo para nunca o criar, opção que nem serve os interesses dele nem de mais ninguém. E se bem que “dar sentido ao sofrimento” soa bem a quem está confortável na vida, não serve de nada para quem sofre. Quem sofre merece alívio em vez da promessa de um vago “sentido” para o seu sofrimento.

O problema fundamental, na raiz destas confusões, é uma percepção incorrecta da relação entre a religião, a ética e a ciência. Nas “primeiras pistas”, os autores escrevem: «Se entendermos a ciência como uma actividade avulsa […] então talvez a religião atrase a ciência. A ética coloca no cenário do desenvolvimento científico argumentos [que] podem desacelerar a aquisição de conhecimento. Mas os argumentos do lado da ética promovem o ser humano no seu todo». Ou seja, apresentam a ética como algo que vem da religião e impõe normas à ciência. A segunda parte está correcta. Como qualquer actividade, a ciência deve ser praticada em conformidade com a ética. Mas a primeira parte está ao contrário.

Cada religião tenta impor regras a todos os aspectos da nossa vida, desde o que se pode comer e que dias são feriados até regras morais acerca de quem deve casar com quem, peregrinar a Meca ou até acreditar que três é um e um são três. Em todos os casos, o fundamento último destas regras é que um deus muito poderoso mandou que assim fosse. Isto não tem nada que ver com a ética, porque a ética não se constitui com base nas ordens do mais forte. É precisamente o contrário. A ética é aquele fundamento de valores pelos quais se julgam todos, até o deus mais poderoso. Se um deus omnipotente arrasou Sodoma e Gomorra por discordar das preferências sexuais dos seus habitantes, torturou Jó por uma aposta ou deu dores de parto a todas as mulheres só porque uma comeu o fruto errado, a ética é aquilo que lhe aponta o dedo e o condena como malvado, cruel e imoral. Não importa que ele seja o Grande Chefe.

Respondendo à pergunta deste capítulo, o papel da ética é dar à religião e à ciência um fundamento normativo comum, ditando a ambas o que é legítimo fazerem. É aquilo que nos diz que não devemos torturar animais ou pessoas, quer seja para obter dados experimentais, quer seja para celebrar rituais religiosos. É aquilo que condena como desonesto o cientista que diga saber que há vida em Marte sem ter evidências disso. E é aquilo que condena como desonesto o padre que diga saber que há vida depois da morte sem ter evidências disso.

Uma grande diferença entre a religião e a ciência é que todos exigem que a ciência se guie pela ética e condenam quem viole a ética em nome da ciência. E é assim que deve ser. Mas muitos aplaudem, e muitos outros ficam indiferentes, quando as religiões atropelam a ética ou fingem que cada uma pode inventar a sua. E isso não devia ser assim.

1- Alfredo Dinis e João Paiva, Educação, Ciência e Religião, Gradiva 2010, pp 47-56.

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