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Dia: 29 de Junho, 2007

29 de Junho, 2007 jvasco

Profecias auto-concretizadas

Eduarda lê a sina ao Gustavo. «As coisas podem ter sido difícieis, mas agora vais conhecer muita gente. Uma dessas pessoas será uma rapariga, ruiva, a mulher da tua vida. Vocês vão ter problemas difíceis, que podem não superar, mas os sentimentos um pelo outro são fortes. Também vejo uma viagem, mas não consigo ver onde, apenas sei que será importante. E vejo um problema de saúde grave na tua família».

O Gustavo sabe que estas previsões não correspondem necessariamente ao que acontecerá. Correspondem, tanto quanto acredita, ao que previsivelmente aconteceria caso ele não venha a alterar o rumo do seu destino (acredita que tem liberdade para o fazer).

Quinze anos depois, casado com Madalena, está convencido que é preciso ser muito fechado para recusar as evidências a favor da leitura da sina. Tanto quanto acredita, o seu caso pessoal é paradigmático: passados aqueles tempos difíceis, conheceu de facto muita gente. Conheceu e namorou com uma rapariga ruiva, com a qual veio a casar, e teve vários problemas no casamento. Numa viagem a Paris ficaram furiosos um com o outro, mas passados 3 dias reconciliaram-se. Quanto ao seu tio Alberto, foi-lhe diagonosticado um cancro de pele.

Muitos amigos alegam que o cumprimento desta profecia não tem nada de especial. Quem pode dizer que nunca fez uma viagem com algo de relevante? Será que não era possível que Eduarda adivinhasse os seus problemas pela sua expressão cabisbaixa? Quem nunca teve problemas no casamento? E por aí fora… E quanto à mulher ruiva? «Coincidência», respondem os amigos.

Gustavo ri-se. É preciso ser cego e fechado, é negar as evidências. Coincidência? Que disparate!
E Gustavo tem razão. Não foi coincidência, muito provavelmente.

Foi uma profecia que se auto-concretizou.
Como Gustavo deu algum crédito à profecia, passou a dar muito mais atenção a todas as ruivas que viesse a conhecer. Por um lado confiante («O destino está do meu lado. Ela será minha»), mas por outro disposto a esforçar-se e insistir, mesmo que os primeiros convites não fossem aceites com tanto entusiasmo.
Por causa do crédito que deu à profecia, os acontecimentos previstos tornaram-se, de facto, bem mais prováveis.

E ainda bem que Eduarda não decidiu prever que o Gustavo se suicidaria…

Este fenómeno é recorrente em várias crenças supersticiosas, entre as quais as várias religiões.
O caso do cristianismo é um bom exemplo. A Bíblia está repleta de profecias vagas e confusas, que, tal como os textos de Nostradamus, para se verificarem apenas precisam da interpretação certa (“as nações tremerão depois da destruição vinda do céu” encaixa numa tempestade mediatizada, num bombardeamento polémico, numa praga de mosquitos que cause muitas mortes, ou até na queda de um meteorito maiorzito. Com o quadro interpretativo certo, é quase impossível que uma profecia destas não se cumpra…).
Por outro lado, a Bíblia está cheia de profecias mais concretas que não se verificaram, de todo.
Por fim, tem algumas profecias que se concretizaram desta forma: as pessoas deram-lhes crédito, e isso fez com que acontecessem. Profecias auto-concretizadas.

Esperemos que o número razoável de cristãos que acredita no Armagedão não torne a ocorrência desse evento apocalíptico mais provável…

29 de Junho, 2007 Ricardo Alves

Os efeitos civis dos casamentos religiosos e as desigualdades entre comunidades religiosas

No Boina Frígia, o Pedro Delgado Alves escreve sobre os efeitos civis dos casamentos religiosos, ontem regulamentados pelo Governo.

  • «O que a alteração legislativa vem permitir é tratar em igualdade todas as confissões, acabando com o estatuto privilegiado de determinados ministros de culto, cujas cerimónias adquiriam efeitos civis automáticos.»

Ao contrário do Pedro Delgado Alves, parece-me evidente que se está a tratar de forma não igualitária as diferentes confissões religiosas nesta matéria, pois a Concordata de 2004 prevê várias especificidades para o casamento católico que não serão reconhecidas a outras confissões religiosas: os casamentos «in articulo mortis, em iminência de parto, ou cuja imediata celebração seja expressamente autorizada pelo ordinário próprio por grave motivo de ordem moral» (§3 do artigo 13); a não exigência de que o ministro do culto católico seja português ou tenha autorização de residência em Portugal (enquanto tal exigência é feita para os ministros do culto não católicos no §1 do artigo 19º da Lei da Liberdade Religiosa); a condução do processo burocrático pelas autoridades eclesiásticas católicas no caso do casamento católico, e pelo conservador do registo civil no caso das outras comunidades religiosas (comparar os artigos 13 e 14 da Concordata com o artigo 19º da Lei da Liberdade Religiosa); os efeitos civis da nulidade canónica (artigo 16 da Concordata); finalmente, os conselhos moralistas do artigo 15 da Concordata, exarados para nossa vergonha num Tratado internacional ratificado pela República portuguesa. Acrescente-se que, se houvesse qualquer preocupação com a igualdade entre confissões religiosas, a faculdade de celebrar casamentos com efeitos civis seria conferida a todas as comunidades religiosas reconhecidas, e não apenas às comunidades religiosas radicadas. O próprio conceito de «comunidade religiosa radicada» é uma quase perversidade instaurada pela Lei da Liberdade Religiosa, que restringe este nível de reconhecimento estatal às confissões religiosas toleradas pelo Estado Novo (esse caso exemplar de laicidade), e que sejam devidamente aprovadas por uma Comissão de Liberdade Religiosa de que fazem parte elementos directamente nomeados por uma certa e determinada confissão religiosa.

Como é evidente, partilho com o cidadão Pedro Delgado Alves a preferência pelo «modelo de tipo francês em que não há reconhecimentos automáticos de coisa alguma – quem quer ter efeitos civis do casamento casa civilmente perante uma autoridade pública, podendo, se quiser, casar de acordo com os ritos da sua fé, antes ou depois, mas sem reconhecimento de efeitos pelo Estado». Acontece que desde a Lei nº16/2001, dita da «Liberdade Religiosa», que o caminho seguido parece ser o do reconhecimento estatal de todas as peculiaridades religiosas, e da institucionalização das desigualdades entre comunidades religiosas.

[Esquerda Republicana/Diário Ateísta]

29 de Junho, 2007 Carlos Esperança

Viagem de autocarro

Há meia dúzia de horas, entrei num autocarro com um padre católico sentado no banco ao lado do meu, do outro lado da coxia.

Olhei aquele rosto triste de um homem de 70 anos, com o colar romano a apertar-lhe o pescoço como o cincho onde se estreita o queijo para extrair o soro. Há muito que não via tal adereço na via pública. O uso manteve-se com a resignada dedicação ao múnus.

Não pude deixar de apreciar aquele homem só, a caminho de uma casa da Igreja ou de um ritual que perdeu o sentido e de que a sociedade se desinteressou.

Que sofrimento ajudou a desenhar aquelas rugas? Quantos desejos reprimidos e quantos anos perdidos com o pescoço apertado por um colar e a lapela ornada com uma cruz?

Terá amado, teve sonhos, realizou-os? A meu lado um cidadão, sozinho, levava os olhos vazios e o ar de quem cumpriu a vida sem a viver.

Era preciso ser cínico ou mau para não sentir compaixão por quem dedicou o tempo e a juventude a uma quimera, perdeu a vida perseguindo o sonho do Paraíso e chega ao fim da estrada sem saber por que a percorreu.

Somos ambos da mesma massa. Com poucos anos de distância ensinaram-nos a ajoelhar e a rezar. Eu levantei-me, ele ficou de joelhos. Eu vivi a vida, amei e passei incógnito na estúrdia, sem um colar a que só falta a trela e sem a cruz a que não faltaram espinhos. Ele imolou a vida por um mito e esqueceu-se de si próprio por coisa nenhuma.

É injusto que aquele homem que sofreu o que eu não sofri, que trocou a vida por outra que não existe, tenha os mesmos sete palmos de terra à sua espera sem um filho que lhe recorde o nome ou guarde o retrato. Por um deus que inventaram para lhe tramar a vida.