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Mês: Dezembro 2006

12 de Dezembro, 2006 Palmira Silva

A homofobia é tão gay

No rescaldo do escândalo drogas e homossexualidade envolvendo Ted Haggard, que abalou as recentes eleições norte-americanas, o Reverendo Paul Barnes da Grace Chapel em Douglas County no Colorado aproveitou a oportunidade para mimosear a sua congregação de 2100 almas com um sermão tonitruante sobre «Integridade, pecado e graça» relembrando ser a homossexualidade (mas não só) um pecado abominável.

Desde a semana passada, depois de um devoto anónimo ter telefonado para a mega-igreja de Barnes avisando que ouvira uma conversa em que alguém se preparava para denunciar pastores evangélicos homossexuais de entre os quais mencionava Barnes, Barnes acompanha Haggard no rebanho de hipócritas que pregavam contra a homossexualidade em público e em privado levavam uma vida dupla. Rebanho que, como prevê o presidente do seminário de Denver, Craig Williford, se vai alargar, já que o escândalo Ted Haggard vai encorajar os parceiros de homofóbicos pastores a denunciar a respectiva hipocrisia!

De facto, depois do aviso da expectável exposição pública da vida dupla de Barnes, este apresentou a sua demissão e uma estupefacta congregação assistiu a um vídeo protagonizando o desconsolado e lacrimejante pastor revelando a sua homossexualidade, algo com que «luta» desde os cinco anos.

Não fora a anónima chamada, suspeito que Barnes continuaria, tal como muitos continuam a fazê-lo, a pregar contra a homossexualidade do púlpito – alimentando a homofobia do seu rebanho – continuando em privado as práticas que execram nos outros.

Nota: Título do post plagiado sem apelo nem agravo do Renas e Veados

11 de Dezembro, 2006 jvasco

O paradoxo do mal – III

Imaginemos um pai que tem dois filhos de 6 anos: o Joel e o Augusto. Ele diz o seguinte: «brinquem à vontade no quarto, eu não vou intervir. Mas não se portem mal.»

Eu encaro agora duas possibilidades.

a) o Joel parte uma jarra chinesa muito cara.

Seria comum a situação em que o pai iria ter com os filhos e lhes perguntaria: «quem foi?». Como que cada um dos filhos acusasse o outro, o pai resolveria castigar os dois. Poderá não ser a opção mais justa, mas é a melhor forma do pai lidar com a ignorância a respeito da indentidade do culpado: pior seria que quem cometeu o acto ficasse sem castigo. Quanto à gritante injustiça que o pai comete para com o inocente, este tem esperanças que numa outra situação parecida em que o culpado é o outro filho e ele não o souber e for forçado a agir da mesma forma, as contas fiquem saldadas.

Mas se o pai tivesse visto que o Joel era o único responsável por ter partido a jarra, seria absurdo e terrivelmente injusto castigar também Augusto.

É um marco civilizacional, uma conquista, que os sistemas penais actuais apenas penalisem quem tem responsabilidade numa determinada transgressão à lei. Nem sempre foi assim: bem sabemos que já existiram sistemas penais em que o castigo de um indivíduo passava para os seus descendentes.
Temos alguma condescendência com essa forma bárbara de encarar a justiça: que indigno que é responsabilizar um filho, uma pessoa independente e autónoma, pelos actos do pai. Entendemos facilmente que tal responsabilização constituiria uma flagrante injustiça.

É engraçada a forma como esta clareza se some quando se fala do paradoxo do mal. Aí, temos quem justifique as crianças que morrem em sofrimento 48h depois de nascer com os pecados dos pais, temos quem justifique terramotos, tsunamis, cheias, com vários pecados de outros indivíduos que não os que sofreram tais catástrofes.
Mas a derradeira prova de que a mentalidade da punição alheia prevalece está na obscena metáfora que é o episódio da criação – as doenças e as mortes que nos asolam são consequência do homem ter optado pelo mal. Mas o facto do mal atingir o homem em geral e não os pecadores em particular deveria salientar um ponto em particular desta metáfora: Deus castiga todos os descendentes de Adão pelos actos deste.
O rapazinho que morre em dois dias não tem culpa – se Deus fosse omnisciente, omnipotente e benevolente, salvá-lo-ia. Como existe quem morra nestas condições, nunca Deus poderá reúnir a benevolência à omnipotência. Não reúne porque não existe.

b) o Augusto pega numa faca e vai matar Joel.

Parece uma cena horrível, mas com crianças pequeninas nunca se sabe. É algo que pode acontecer.

Nenhum pai que se preze hesitará. Com a maior velocidade que pode (e o coração nas mãos) interromperá a brincadeira dos meninos e impedirá, pela força, o Ausgusto de matar o Joel.

Um pai que deixasse Joel morrer, dizendo «Eu prometi que não intervinha na brincadeira deles, e não queria faltar à minha palavra» seria visto como um louco patético, quiçá criminoso na sua loucura.

Isto não se passa apenas em relação a filhos de 6 anos, em relação aos quais se pode alegar não serem responsáveis. Se o leitor estiver a passar na rua e vir dois desconhecidos adultos, um dos quais está prestes a matar o outro, dificilmente tomará a opção eticamente errada se impedir qualquer morte de acontecer. Se conseguir fazê-lo sem se arriscar, mais obrigação terá de impedir a morte eminente.

Ninguém compreenderia que discordasse dizendo «Se o fizesse, estaria a interferir na esfera de liberdade daquele grupo. Estaria a impedir o presumível assassino de agir em conformidade com a opção livremente tomada, negando-lhe o livre arbítrio. Aquele grupo de duas pessoas seria menos livre, e eu prezo mais a liberdade que a vida.»

Alguns (poucos) poderiam concordar consigo se o segundo quisesse morrer, se a morte deste fosse voluntária. Mas se não fosse esse o caso, se o segundo quisesse viver, por mais que o leitor valorizasse a liberdade, nada justificaria a sua passividade: ao agir, estaria obviamente a negar a liberdade ao assassino de matar quem quisesse, mas estaria a dar a liberdade à vítima de não morrer, quando esta o não queria.

O saldo da sua intervenção teria sido o de uma vida humana, mas não teria havido quaqluer contrapartida em termos de liberdade humana. Aquele grupo não se tornou menos livre devido à sua intervenção (mesmo eventualmente com o assassino atrás das grades, a possível vítima viva é mais livre do que morta).

Suponho que até este ponto, poucos terão discordado das minhas considerações, bastante consensuais. É engraçada a forma como esta clareza se some quando se fala do paradoxo do mal.
Quando um assassino tenta matar alguém, Deus poderia intervir, impedindo a morte de acontecer. Certamente que isso negaria ao assassino a liberdade de matar, mas daria à possível vítima a liberdade de viver.
Se nós valorizamos a liberdade do assassino ao ponto de não querer a intervenção de Deus, porque tentamos negar-lha com a polícia, o sistema de justiça, as celas onde o prendemos? Será por considerar que ele ainda tem a liberdade de matar, mesmo que sofra as consequências? Então que direito temos nós de usar vidros e coletes à prova de balas, e um sistema de segurança que faz com que muitas pessoas não possam matar quem querem, mesmo que estejam dispostas a morrer por isso?

Nós não consideramos que uma intervenção que impeça o assassínio seja um atentado à liberdade. Em boa verdade é isso que tentamos criar com a polícia, o sistema de justiça, o sistema prisional, os sistemas de segurança, os colectes e vidros à prova de balas. Estes sistemas falham, há inocentes condenados injustamente e homicídios impunes, mas nós não somos mais livres quanto mais falharem: é o contrário.

Se eu encerrasse o artigo com estas considerações, certamente alguém me lembraria o «Minority Report»: «será que é esse o mundo que eu desejo?». Mas este filme fortalece o meu argumento. E como é que o faz?

Ao termos um sistema que pretende impedir os assassínios (o que, em si, não nega liberdade ao homem), temos de vigiar esse sistema, pois ele é feito por homens. Que podem ser ambiciosos, gananciosos, e partilhar muitas das falhas daqueles de quem pretendemos que nos protejam. É bom que a sociedade esteja vigilante, impedindo os abusos. É bom que a sociedade não dê poderes ilimitados a quem gere estes sistemas. Estas questões são colocadas a nível prático em relação a leis como o patriot act, mas no filme é feita uma metáfora: neste caso dá-se um poder de semi-omnisciência ao sistema que pretende impedir os homicídios. E a ganância humana materializa-se em Lamar Burgess, que tenta imediatamente aproveitar-se de tão grande poder para os seus fins pessoais.

Assim sendo, negar ao um assassino a possibilidade de matar não afecta a nossa liberdade. Dar a um ser humano que promete impedir os assassinos, plenos poderes para o fazer, já pode bem afectar…

Assim sendo, quando Deus, que pode impedir qualquer homocídio sem se arriscar, não o faz, no mínimo ele mata por omissão. Qualquer pessoa decente se sentiria culpada se, podendo evitar um homicídio sem se arriscar, o não tivesse feito. Ninguém diria a si próprio: «não, eu fiz bem. Dei liberdade ao assassino e à vítima para resolverem os seus problemas sem a minha intervenção. Não lhes neguei a liberdade de agirem conforme as suas escolhas livres.»

Será que um mundo em que Deus impedisse alguns dos homicídios e violações que não impede neste seria necessariamente pior? Será que seria impossível impedir qualquer das milhões de violações que acontecem no mundo sem que este piorasse?

Só acreditando que sim é que faz sentido acreditar num Deus benevolente, omnisciente e omnipotente. Mas o leitor dificilmente responderá afirmativamente à última pergunta que fiz. Estarei enganado?

10 de Dezembro, 2006 Palmira Silva

Funeral militar para Pinochet

Abril de 1987 – O católico exemplar posa ao lado de João Paulo II no balcão do Palácio de La Moneda

O funeral do ex-ditador Augusto Pinochet será realizado na terça-feira, sem honras de chefe de Estado. O ministro chileno Ricardo Lagos Weber informou ainda que o corpo será cremado e os restos mortais serão entregues à família do ex-ditador.

Em compensação, a capela da Escola Militar abrigará uma série de missas em homenagem a Pinochet. O funeral decorrerá no pátio da Escola Militar.

10 de Dezembro, 2006 Palmira Silva

Morreu Pinochet

Morreu há umas horas o ex-ditador chileno Augusto Pinochet, um crente tão dedicado que mereceu de João Paulo II o epíteto de católico exemplar. Aparentemente o milagre a que a filha atribuiu a recuperação do ataque cardíaco que lhe mereceu a extrema-unção era de má qualidade…

Pinochet morreu convicto de ir direitinho ao Paraíso, já que o «Deus» católico perdoar-lhe-ia certamente todos os «ligeiros» atropelos aos direitos humanos, incluindo o assassinato de pelo menos 3200 opositores políticos, que cometeu durante os 17 anos da sua abençoada ditadura, uma vez que todas as suas acções tiveram inspiração «divina».

Em breve saberemos se a Presidente Michelle Bachelet, prisioneira e torturada pela ditadura, traduz por actos o que pensa e expressou na campanha eleitoral, que depois de todos os crimes cometidos pelo ditador – católico convicto actuando em nome de «Deus» é certo e por isso muitos chilenos o perdoam – «seria muito violento para a consciência chilena realizar um funeral de estado» a Pinochet!

Pelo menos reiterou recentemente que seria uma violação da sua consciência assistir a um funeral de estado pelo ditador…

Desenvolvimentos: O corpo de Pinochet será transferido em breve para a Escola Militar de Santiago onde permanecerá até ser decidido se tem ou não direito a um funeral de Estado, com três dias de luto nacional e bandeiras a meia haste. As minhas previsões é que não terá mas o poder da Igreja Católica no Chile é ainda muito grande não obstante os ventos de mudança que sopram as teias de aranha do totalitarismo católico do Chile!

Entretanto nas ruas de Santiago milhares de chilenos celebram as notícias, muitos com champanhe. A polícia chilena recusou baixar as bandeiras, e houve confrontos entre a polícia e os católicos pró-Pinochet que exigiam as bandeiras a meia-haste. Embora a presidente chilena já tenha sido informada da morte do ditador nenhum comunicado saiu do palácio de La Moneda. Diria que são cada vez mais fortes as probabilidades de um funeral militar para Pinochet.

10 de Dezembro, 2006 Palmira Silva

8 de Dezembro – V

Segundo Küng (um dos teólogos silenciados pelo actual Papa), o Vaticano I definiu a Igreja como uma monarquia papal absoluta e a infalibilidade papal como uma infalibilidade a priori, introduzindo elementos incompatíveis com a Bíblia e a tradição da Igreja. De facto, a principal decisão do Concílio, para além de uma Constituição dogmática intitulada Dei Filius, que reafirmava a ortodoxia da fé católica, foi a Constituição Dogmática Pastor Aeternus, que instituia o primado e infalibilidade do Papa quando se pronuncia ex-cathedra, em assuntos de fé e de moral.

O Concílio Vaticano I não o foi de facto já que Pio IX usou de todos os meios para obrigar os participantes a aceitar a sua controversa doutrina da «infalibilidade». As reuniões foram marcadas por violentas controvérsias até que os conciliares se dividiram em dois grupos: os antiinfalibilistas (que rejeitavam o dogma) e os infalibilistas (que apoiavam o dogma), estes últimos liderados pela recém-restaurada ordem dos Jesuítas.

Enquanto isso os media controlados pelo Papa e pelos jesuítas, forjavam uma imagem de unidade sobre o tema, asseverando que em breve se assistiria a uma aclamação por unanimidade do dogma.

Como tal se afigurava impossível, a corrente infalibilista propôs que o grupo contrário ao dogma fosse excomungado como herege e excluído do concílio. Finalmente após muitas contradições, ameaças, intrigas e pressões foi definido o dogma nos seguintes termos:

«…definimos como dogma divinamente revelado que o Romano Pontífice, quando fala ex cathedra, isto é, quando, no desempenho do ministério de pastor e doutor de todos os cristãos, define com sua suprema autoridade apostólica alguma doutrina referente à fé e à moral para toda a Igreja, em virtude da assistência divina prometida a ele na pessoa de São Pedro, goza daquela infalibilidade com a qual Cristo quis munir a sua Igreja quando define alguma doutrina sobre a fé e a moral; e que, portanto, tais declarações do Romano Pontífice são por si mesmas, e não apenas em virtude do consenso da Igreja, irreformáveis. Se, porém, alguém ousar contrariar esta nossa definição, o que Deus não permita, – seja excomungado» [Concílio Vaticano I, «Primeira Constituição dogmática sobre a Igreja de Cristo» – sessão IV, cap. IV (18-7-1870)]

Uma das primeiras vítmas do concílio foi um dos teólogos liberais da época, o historiador Johann von Dollinger, que protestou veementemente o que considerou a «exaltação de um homem que determinou o baptismo compulsório de judeus e depois os torturava para se convencer que as conversões eram sinceras».

Dollinger, que considerava ser a Inquisição a mola impulsionadora do domínio mundano da Igreja e do seu poder sem limites sobre as vidas e propriedades dos homens, associava o anti-semitismo da Igreja com o poder temporal coercivo do papado e com a pretensão da Igreja de ser apenas ela a detentora da «verdade absoluta».

A sua denúncia do Sílabo dos Erros – que reforça a enciclica Quanta Cura na condenação de tudo o que ameaçasse o poder absoluto papal, a começar pela impossibilidade de a Igreja impor à força a sua doutrina (erro 24º), até à liberdade de expressão, que corrompe as almas, passando pela tolerância religiosa, a liberdade de consciência e de imprensa, até à possibilidade de um governo legislar sem os auspícios de Roma – como um instrumento de obscurantismo, incompatível com o conhecimento científico da época e uma evidência clara do despotismo papal assim como a sua demonstração das provas históricas contra a infalibilidade papal valeram-lhe a excomunhão exactamente 4 meses após o fim do concílio, em 18 de Abril de 1871.

(continua)
10 de Dezembro, 2006 Palmira Silva

8 de Dezembro – IV

«1817. Cân. 2 – Se alguém disser que as ciências humanas devem ser tratadas com tal liberdade que as suas conclusões, embora contrárias à doutrina revelada, possam ser retidas como verdadeiras e não possam ser proscritas pela Igreja – seja excomungado [cf. nº 1797-1799].

1818. Cân. 3 – Se alguém disser que às vezes, conforme o progresso das ciências, se pode atribuir aos dogmas propostos pela Igreja um sentido diverso daquele que ensinou e ensina a Igreja – seja excomungado [cf. nº 1800].

1825. [Cânon] Se, portanto, alguém negar ser de direito divino e por instituição do próprio Cristo que S. Pedro tem perpétuos sucessores no primado da Igreja universal; ou que o Romano Pontífice é o sucessor de S. Pedro no mesmo primado – seja excomungado

1831. [Cânon] Se, pois alguém disser que ao Romano Pontífice cabe apenas o ofício de inspecção ou direcção, mas não o pleno e supremo poder de jurisdição sobre toda a Igreja,[…] – seja excomungado.» Concílio Vaticano I, Sessões III e IV.

Para além da Revolução Francesa outro duro golpe recebido pelo poder papal foi a supressão da ordem dos jesuítas, um poderoso instrumento das políticas pontifícias. Após ser expulsa pelo Marquês de Pombal de Portugal e suas colónias, exemplo seguido rapidamente por Espanha e França, a Companhia de Jesus foi dissolvida em 1773 pelo papa Clemente XIV. Assim, ironicamente, enquanto os papas insistiam na sua jurisdição universal, eles estavam de facto perdendo poder e autoridade.

No século XIX, com a Companhia entretanto restaurada em 1814 pelo Decreto do Papa Pio VII Solicitudo omnium Ecclesiarum, Pio IX assistia impotente à queda do poder temporal absoluto de Roma que tão ardentemente desejava. Os domínios papais começaram a ser perdidos no Risorgimento, primeiro Toscana, Parma, Módena e Romagna (1859), depois a região da Úmbria, Marcas (1860) e finalmente Roma (1870). O Papa ficou restrito ao Estado do Vaticano e a igreja de Roma não era mais a soberana absoluta que ditava com mão-de-ferro os destinos da Europa.

Existiam ainda fortes conflitos doutrinários que dividiam os teólogos católicos e ameaçavam a hegemonia de Roma, nomeadamente o galicanismo que Pio IX queria suprimir, cujas principais teses eram inadmissíveis para o Papa:

1) Total independência do rei (ou governo) em assuntos temporais em relação ao papa;
2) a autoridade papal é inferior à do Concílio;
3) obrigação por parte do papa de respeitar as antigas tradições da igreja francesa (ou outras);
4) necessidade de consentimento da Igreja Universal para a ratificação dos dogmas proclamados pelo papa.

A igreja, durante séculos considerada infalível e omnipotente, assistia assim à derrocada do seu poder absoluto. Não só as novas ideias seculares que emergiam – as quais o Papa condenou como «erros modernos» – se espalhavam por toda a Europa, nomeadamente a «peregrina» ideia de que os judeus tinham direitos, como dentro da própria Igreja muitos não aceitavam os ditames de Roma.

Para obstar a estas situações pré-cismáticas e consolidar o poder que a Igreja ainda detinha nas mãos de um agente único – o Papa – Pio IX convocou o concílio Vaticano I, que decorreu entre 8 de Dezembro de 1869 a 18 de Dezembro de 1870 (e que não foi concluído devido à eclosão da guerra franco-prussiana, em 1870 e se encontra até hoje suspenso).

* O terramoto de 1755 abalou muito mais que a cidade e os seus edifícios. Lisboa era a capital de um país católico, com uma larga tradição de evangelização das suas colónias. O facto de o terramoto ocorrer num feriado religioso e destruir várias igrejas importantes levantou muitas questões religiosas por toda a Europa. Para a mentalidade religiosa do século XVIII esta manifestação da ira divina era de difícil explicação.

O sismo influenciou assim de forma determinante muitos pensadores europeus do Iluminismo. De facto, muitos filósofos fizeram menção ou aludiram ao terramoto nos seus escritos, dos quais se destaca Voltaire, no seu Candide e no Poème sur le désastre de Lisbonne (Poema sobre o desastre de Lisboa). A arbitrariedade da sobrevivência foi, provavelmente, o que mais marcou o autor, que satirizou a ideia, defendida por autores como Gottfried Wilhelm Leibniz e Alexander Pope, de que «este é o melhor dos mundos possíveis»; como escreveu Theodor Adorno, o terramoto de Lisboa o foi suficiente para Voltaire para refutar a teodiceia de Leibniz (Negative Dialectics 361).

Como adenda aos textos do João Vasco sobre o paradoxo do mal, o termo teodiceia, do grego theós, Deus e díke, «justiça», significa literalmente «justiça de Deus».

(continua)
9 de Dezembro, 2006 jvasco

O paradoxo do mal – II

A refutação mais simples da ideia que o mal é causado pelo livre arbítrio é lembrar os males que não o são.

Terramotos, tsunamis, cheias, além de grande parte das doenças que vão matando as pessoas.

A este argumento, muitos crentes respondem com a ideia de castigo. Muitas vezes a discussão não evolui a partir desse ponto – é frequente que a pessoa que os oiça dar tal resposta fique demasiado indignada para manter um tom frio e sério. Afinal, pode parecer monstruoso acreditar que as pessoas que morrem de cancro «mereciam-no», tal como outras doenças que envolvem muito mais sofrimento e dor. Pode parecer um tanto monstruoso considerar que quando milhares de pessoas numa determinada região do mundo morrem em cheias, tsunamis ou tremores de terra, estas o mereciam.
E quanto mais se pensa no sofrimento concreto que esses males infligem, mais mesquinhas, insensíveis e abjctas podem parecer tais considerações. Mais indignação tendem a provocar.

Mas indignação não é argumento.

É por isso que pretendo, ao invés de me indignar, responder com um contra-exemplo. Tomemos um feto, no útero de uma mãe, que tem uma doença. Ele nasce e, devido à sua doença, passa dois dias em sofrimento no hospital até que morre. Não é um exemplo impossível: já aconteceu, continuará a acontecer.
Em que medida é que este mal foi resultado da escolha de quem o sofreu?

Que livre arbítrio teve esta criança com dois dias de vida? Que liberdade é que Deus lhe terá dado? Deus, que alegadamente respeita a liberdade, respeitou a escolha desta criança, que era não sofrer, que era viver? Ou todas estas crianças escolhem morrer em sofrimento?
Deus teria criado um mundo em que o livre-arbítrio desta criança não foi respeitado, em que ela não teve liberdade, nem escolha, em relação ao que lhe aconteceu. E o mal não deixou de lhe acontecer.

Podemos entrever aqui o meu argumento, portanto. Notemos que, neste caso, a ausência de liberdade da criança foi, em si, um mal. Nós gostamos de ser livres e sofremos quando não o somos, então a ausência de liberdade é um mal.

Se um Deus for benevolente, ele apenas optaria por nos dar liberdade na medida em que o mal que dela resultasse fosse inferior ao mal que representa a ausência de liberdade. Assim sendo, com um Deus benevolente, o mundo seria necessariamente o melhor mundo possível. Qualquer mundo diferente (por exemplo um em que Deus interviesse mais, com a limitação à liberdade que cada intervenção implicasse) seria pior.

Notem que, sendo Deus omnipotente e omnisciente, ele poderia criar qualquer mundo concebível. Isto quer dizer que, para Deus ser benevolente, omnipotente e omnisciente, não poderá existir nenhum mundo concebível melhor que este – o que é notoriamente falso: basta conceber um mundo em que, apesar dos pecados do homem, o bebé do exemplo não morreu ao fim de 2 dias.

9 de Dezembro, 2006 Palmira Silva

8 de Dezembro – III

«Portanto[…]os Bispos, que são os sucessores dos Apóstolos, pertencem à ordem hierárquica[…]estabelecida pelo Espírito Santo para governar a Igreja de Deus (At 20, 28)[…]Ensina ademais[…]na ordenação dos Bispos e sacerdotes[…]não se requer o consentimento do povo nem de qualquer poder ou magistrado secular.

Se alguém disser que na Igreja Católica não há hierarquia eclesiástica estabelecida por ordem de Deus, que se compõe de Bispos, presbíteros e ministros, seja excomungado». Concílio Ecuménico de Trento. Sessão XXIII

A oposição ao conceito de uma igreja centralizada sob a autoridade papal recebeu o nome de «galicanismo», por se ter manifestado com mais vigor em França. De facto, o rei, que até aí nomeava os bispos, opôs-se veeementemente à aplicação em território francês da reforma estabelecida pelo Concílio de Trento e apenas em 1615 os decretos de Trento foram promulgados neste país.

Durante os séculos XVII e XVIII, a intromissão da Igreja em assuntos seculares, a norma até a Reforma em que a Igreja ditava as leis – e recebia boa parte das receitas – em toda a Europa, conheceu uma crescente oposição por parte dos governos europeus que procuravam afirmar a plena soberania sobre os seus territórios.

Dentro da própria Igreja muitos dignitários afirmavam-se galicanos, isto é, acreditavam que a autoridade eclesiástica residia nos bispos, e não no papa. Por outro lado, os defensores da autoridade suprema dos papas, os «ultramontanistas» ou «ultramontanos», que afirmavam estar toda a autoridade da Igreja «além montanhas» (os Alpes), não aceitavam a reinvidicação do episcopado em participar na direcção da Igreja declarando o papa monarca absoluto da Igreja.

O galicanismo foi retomado mais tarde pela Revolução Francesa e, depois, pela monarquia francesa restaurada, tornando-se no século XIX o modelo seguido por grande parte dos Estados onde a maioria da população era católica.

Na realidade, até hoje o termo «jacobino» reflecte o golpe devastador contra o poder do papado desferido em 1789 pela Revolução Francesa. Não apenas pelo que se passou em França – onde desde os primórdios houve, no país anteriormente considerado por muitos papas como o «filho predilecto da Igreja», um profundo conflito entre a Igreja e o ideal republicano da revolução – mas essencialmente porque propagou os ideais iluministas a todo o mundo ocidental.

Só para dar um exemplo do poder da Igreja em França antes da Revolução Francesa, em 1766 um jovem de 19 anos, Jean François de Le Fabvre, o Cavaleiro de la Barre, passa «a vinte passos duma procissão, sem tirar o chapéu». É preso e torturado. É condenado por sacrilégio e decapitado depois de lhe terem cortado a língua. Finalmente o seu corpo é queimado junto com um exemplar do Dicionário Filosófico de Voltaire, numa orgia de fé participada por uma multidão entusiasmada.

Os ideais iluministas assentes na «Liberdade, Igualdade e Fraternidade» (Liberté, Egalité, Fraternité) entravam necessariamente em conflito total com este poder da Igreja, para além de recusarem os muitos privilégios do clero ou Primeiro Estado. Uma das primeiras medidas revolucionárias, violentamente contestada por Roma, numa França em profunda crise económica, foi a supressão do pagamento do dizimo à Igreja e a confiscação de alguns dos seus bens.

Mas o golpe final no poder de Roma foi desferido pela aprovação, em Agosto de 1790, da Constituição Civil do Clero, que separava a Igreja e Estado e, considerando que a Igreja era sustentada pelo Estado, determinava que os clérigos lhe deviam obediência. Determinava assim que os clérigos deveriam jurar a nova Constituição – os que o fizeram ficaram conhecidos como juramentados; os que se recusaram passaram a ser chamados de refractários – para além de retirar a Roma o poder de ordenação de bispos e padres de paróquia que seriam eleitos pelos membros das congregações respectivas.

Claro que o Vaticano não aceitou perder o poder quasi absoluto que anteriormente detinha em França e acirrou os refractários ultramontanos a combater os «hereges». A luta entre a Igreja Católica e a Revolução Francesa e os seus partidários culminou no levantamento dos camponeses católicos na Vendeia, no oeste da França, entre 1791 e 1793 e numa selvagem luta de extermínio entre os habitantes da Vendeia e os jacobinos, luta que depois se estendeu a mais pontos de França na guerrilha camponesa dos Chouans – a Chouannerie, da qual participaram o clero refractário e a aristocracia.

(continua)
8 de Dezembro, 2006 Palmira Silva

8 de Dezembro – II

O final do século XIV e o século XV marcaram o fim da supremacia absoluta da Igreja de Roma na Europa. Para além da ameaça que o conhecimento científico leigo apresentava, esta viu-se confrontada com a Reforma protestante, despoletada pelo empenho que Leão X devotou à construção da Basílica de S. Pedro, intento iniciado em 1510 pelo papa anterior, Júlio II, que lançara a Indulgência do Jubileu para esse fim.

Leão X concentrou a recolha de fundos para a edificação da sumptuosa Basílica no comércio intensivo de «indulgências», perdão garantido para todos os pecados possíveis e imagináveis, passados, presentes ou futuros, comércio esse que atingiu dimensões e contornos que escandalizaram o então monge agostiniano Martinho Lutero.

Também ajudou à Reforma protestante e consequente perda de poder da Igreja Católica o nepotismo dos papas precedentes, especialmente Alexandre VI (1492-1503), nascido Rodrigo de Bórgia e pai do infamemente conhecido César Bórgia, que deixou Roma refém do caos, da corrupção e da violência, algo absolutamente evidente para Lutero durante o Jubileu de 1500 lançado por este Papa.

O Jubileu seguinte, em 1525, decorreu assim em plena crise religiosa, com as reivindicações de Martinho Lutero a despoletar a crítica e o reconhecimento generalizado em toda a Europa da ganância e corrupção do papado. O queda do poder de Roma acelerou-se com o desmembramento das igrejas, primeiro na Alemanha e Inglaterra e depois em todo o norte da Europa.

O Papa Paulo III (1534-1549), um dos papas mais nepotistas, que separou Parma e Piacenza dos Estados Pontifícios para criar um ducado independente para o seu filho Pier Luigi, esforçou-se por remediar a situação. Para combater o conhecimento científico fora dos auspícios da Igreja formou em 1540 a nova ordem dos jesuítas ou Companhia de Jesus.

Para reafirmar as doutrinas católicas tradicionais e fazer frente à reforma protestante que se tinha espalhado por toda a Europa, com vários reformadores a reinterpretar o cristianismo para além de Lutero, como Ulrico Zuínglio, Guilherme Farel, Filipe Melanchton, João Calvino e João Knox, convocou em Dezembro de 1545 o Concílio de Trento, que marcou a Contra-Reforma.

A última sessão do Concílio de Trento decorreu no dia 4 de Dezembro de 1563. Nesse dia foram lidas todas as decisões tridentinas, formalmente aprovadas pelo Papa Pio IV em 26 de janeiro de 1564.

Para além de reafirmar a doutrina da transubstanciação, defender a concessão de indulgências, aprovar as preces dirigidas aos santos e de insistir na existência do purgatório, a profissão de fé tridentina marca a ascendência de Tomás de Aquino, isto é Aristóteles, no catolicismo. Assim, a doutrina é definida sob um ponto de vista teológico, imiscuindo-se, por outro lado, no domínio científico. A Terra imóvel, centro do mundo, torna-se palavra do Evangelho. Os Santos Padres arrogam-se ao direito de decidirem acerca de tudo, mesmo em matéria «científica», e quem passe para lá destes ditames incorre a partir do Concílio de Trento nas sanções mais severas.

Por outro lado, a preocupação dominante do concílio de Trento, que ignorou totalmente os fiéis e as pessoas em geral, é a afirmação do poder de Roma através da regulação total das sociedades. Regulação intolerante conseguida através de uma doutrina (a «ortodoxia») consagrada numa liturgia rígida e ditando as leis pelas quais as sociedades se deviam reger, condensadas nos 2414 cânones do primeiro Código de Direito Canónico de 1917.

Aos leigos só era reconhecido o direito de «receber» os meios necessários à salvação da alma, ministrados pelos prelados da Igreja de Roma, claro. Considerações de felicidade ou bem estar terrenos são completamente ignoradas.

De forma a assegurar a hegemonia papal e uma vez que as suas ambições de poder temporal absoluto não foram satisfeitas, os papas utilizaram Concílio de Trento para assegurar o poder «espiritual» do Vaticano centralizando todo o poder da Igreja no papado.

(continua)