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O paradoxo do mal – III

Imaginemos um pai que tem dois filhos de 6 anos: o Joel e o Augusto. Ele diz o seguinte: «brinquem à vontade no quarto, eu não vou intervir. Mas não se portem mal.»

Eu encaro agora duas possibilidades.

a) o Joel parte uma jarra chinesa muito cara.

Seria comum a situação em que o pai iria ter com os filhos e lhes perguntaria: «quem foi?». Como que cada um dos filhos acusasse o outro, o pai resolveria castigar os dois. Poderá não ser a opção mais justa, mas é a melhor forma do pai lidar com a ignorância a respeito da indentidade do culpado: pior seria que quem cometeu o acto ficasse sem castigo. Quanto à gritante injustiça que o pai comete para com o inocente, este tem esperanças que numa outra situação parecida em que o culpado é o outro filho e ele não o souber e for forçado a agir da mesma forma, as contas fiquem saldadas.

Mas se o pai tivesse visto que o Joel era o único responsável por ter partido a jarra, seria absurdo e terrivelmente injusto castigar também Augusto.

É um marco civilizacional, uma conquista, que os sistemas penais actuais apenas penalisem quem tem responsabilidade numa determinada transgressão à lei. Nem sempre foi assim: bem sabemos que já existiram sistemas penais em que o castigo de um indivíduo passava para os seus descendentes.
Temos alguma condescendência com essa forma bárbara de encarar a justiça: que indigno que é responsabilizar um filho, uma pessoa independente e autónoma, pelos actos do pai. Entendemos facilmente que tal responsabilização constituiria uma flagrante injustiça.

É engraçada a forma como esta clareza se some quando se fala do paradoxo do mal. Aí, temos quem justifique as crianças que morrem em sofrimento 48h depois de nascer com os pecados dos pais, temos quem justifique terramotos, tsunamis, cheias, com vários pecados de outros indivíduos que não os que sofreram tais catástrofes.
Mas a derradeira prova de que a mentalidade da punição alheia prevalece está na obscena metáfora que é o episódio da criação – as doenças e as mortes que nos asolam são consequência do homem ter optado pelo mal. Mas o facto do mal atingir o homem em geral e não os pecadores em particular deveria salientar um ponto em particular desta metáfora: Deus castiga todos os descendentes de Adão pelos actos deste.
O rapazinho que morre em dois dias não tem culpa – se Deus fosse omnisciente, omnipotente e benevolente, salvá-lo-ia. Como existe quem morra nestas condições, nunca Deus poderá reúnir a benevolência à omnipotência. Não reúne porque não existe.

b) o Augusto pega numa faca e vai matar Joel.

Parece uma cena horrível, mas com crianças pequeninas nunca se sabe. É algo que pode acontecer.

Nenhum pai que se preze hesitará. Com a maior velocidade que pode (e o coração nas mãos) interromperá a brincadeira dos meninos e impedirá, pela força, o Ausgusto de matar o Joel.

Um pai que deixasse Joel morrer, dizendo «Eu prometi que não intervinha na brincadeira deles, e não queria faltar à minha palavra» seria visto como um louco patético, quiçá criminoso na sua loucura.

Isto não se passa apenas em relação a filhos de 6 anos, em relação aos quais se pode alegar não serem responsáveis. Se o leitor estiver a passar na rua e vir dois desconhecidos adultos, um dos quais está prestes a matar o outro, dificilmente tomará a opção eticamente errada se impedir qualquer morte de acontecer. Se conseguir fazê-lo sem se arriscar, mais obrigação terá de impedir a morte eminente.

Ninguém compreenderia que discordasse dizendo «Se o fizesse, estaria a interferir na esfera de liberdade daquele grupo. Estaria a impedir o presumível assassino de agir em conformidade com a opção livremente tomada, negando-lhe o livre arbítrio. Aquele grupo de duas pessoas seria menos livre, e eu prezo mais a liberdade que a vida.»

Alguns (poucos) poderiam concordar consigo se o segundo quisesse morrer, se a morte deste fosse voluntária. Mas se não fosse esse o caso, se o segundo quisesse viver, por mais que o leitor valorizasse a liberdade, nada justificaria a sua passividade: ao agir, estaria obviamente a negar a liberdade ao assassino de matar quem quisesse, mas estaria a dar a liberdade à vítima de não morrer, quando esta o não queria.

O saldo da sua intervenção teria sido o de uma vida humana, mas não teria havido quaqluer contrapartida em termos de liberdade humana. Aquele grupo não se tornou menos livre devido à sua intervenção (mesmo eventualmente com o assassino atrás das grades, a possível vítima viva é mais livre do que morta).

Suponho que até este ponto, poucos terão discordado das minhas considerações, bastante consensuais. É engraçada a forma como esta clareza se some quando se fala do paradoxo do mal.
Quando um assassino tenta matar alguém, Deus poderia intervir, impedindo a morte de acontecer. Certamente que isso negaria ao assassino a liberdade de matar, mas daria à possível vítima a liberdade de viver.
Se nós valorizamos a liberdade do assassino ao ponto de não querer a intervenção de Deus, porque tentamos negar-lha com a polícia, o sistema de justiça, as celas onde o prendemos? Será por considerar que ele ainda tem a liberdade de matar, mesmo que sofra as consequências? Então que direito temos nós de usar vidros e coletes à prova de balas, e um sistema de segurança que faz com que muitas pessoas não possam matar quem querem, mesmo que estejam dispostas a morrer por isso?

Nós não consideramos que uma intervenção que impeça o assassínio seja um atentado à liberdade. Em boa verdade é isso que tentamos criar com a polícia, o sistema de justiça, o sistema prisional, os sistemas de segurança, os colectes e vidros à prova de balas. Estes sistemas falham, há inocentes condenados injustamente e homicídios impunes, mas nós não somos mais livres quanto mais falharem: é o contrário.

Se eu encerrasse o artigo com estas considerações, certamente alguém me lembraria o «Minority Report»: «será que é esse o mundo que eu desejo?». Mas este filme fortalece o meu argumento. E como é que o faz?

Ao termos um sistema que pretende impedir os assassínios (o que, em si, não nega liberdade ao homem), temos de vigiar esse sistema, pois ele é feito por homens. Que podem ser ambiciosos, gananciosos, e partilhar muitas das falhas daqueles de quem pretendemos que nos protejam. É bom que a sociedade esteja vigilante, impedindo os abusos. É bom que a sociedade não dê poderes ilimitados a quem gere estes sistemas. Estas questões são colocadas a nível prático em relação a leis como o patriot act, mas no filme é feita uma metáfora: neste caso dá-se um poder de semi-omnisciência ao sistema que pretende impedir os homicídios. E a ganância humana materializa-se em Lamar Burgess, que tenta imediatamente aproveitar-se de tão grande poder para os seus fins pessoais.

Assim sendo, negar ao um assassino a possibilidade de matar não afecta a nossa liberdade. Dar a um ser humano que promete impedir os assassinos, plenos poderes para o fazer, já pode bem afectar…

Assim sendo, quando Deus, que pode impedir qualquer homocídio sem se arriscar, não o faz, no mínimo ele mata por omissão. Qualquer pessoa decente se sentiria culpada se, podendo evitar um homicídio sem se arriscar, o não tivesse feito. Ninguém diria a si próprio: «não, eu fiz bem. Dei liberdade ao assassino e à vítima para resolverem os seus problemas sem a minha intervenção. Não lhes neguei a liberdade de agirem conforme as suas escolhas livres.»

Será que um mundo em que Deus impedisse alguns dos homicídios e violações que não impede neste seria necessariamente pior? Será que seria impossível impedir qualquer das milhões de violações que acontecem no mundo sem que este piorasse?

Só acreditando que sim é que faz sentido acreditar num Deus benevolente, omnisciente e omnipotente. Mas o leitor dificilmente responderá afirmativamente à última pergunta que fiz. Estarei enganado?